domingo, 1 de junho de 2025

A Borda do Círculo.

 
A morte anda.
Descalça.
Seus pés sabem onde pisar, conhecem a textura antiga da terra, o cheiro da seiva, o lamento do pó.

Há muito delegara funções — febres, lâminas, dentes, fogo, fome — suas secretárias eficientes, zelosas, quase autônomas. Mas agora, não. Agora é ela. A grande senhora. A primeira testemunha. A que vê desde antes do homem ter nome.

No centro da África, onde o mapa desiste, onde satélites apenas insinuam clareiras no verde espesso, um vilarejo respira no limite entre ser e não ser.
As folhas tremem, não pelo vento, mas por reconhecimento.
Os animais olham, sabem, param.
Até o sol, esse tirano de fogo, curva-se num silêncio incômodo.

Ela não tem rosto — ou tem todos.
Veste-se do que o olhar não vê, mas o corpo sente. Um frio sem temperatura. Um peso que não dobra os ossos, mas dobra a alma.

Não veio buscar.
Veio anunciar.
Quando a morte anda, não leva: semeia.

Não tão longe dali, um homem.
Idoso. Pele curtida como o couro ancestral que cobre tambores.
As rugas não são apenas do tempo: são do pertencimento.
Marcas da tribo. Marcas do sol. Marcas do mundo.

De cócoras, ele sopra vida em gravetos tímidos, que insistem em não se render de imediato à chama.
Os olhos semi-cerrados não são de fraqueza, são de quem olha além.
Além do fogo. Além da terra. Além do agora.

Ao seu redor, o mundo segue.
Homens e mulheres cumprem o roteiro invisível do ser.
Carregam água, ajeitam cestos, riem, murmuram, moldam o dia com as mãos.
Nada fora do lugar.
Nem no chão, nem no ar, nem no tempo.

Tudo está.
Não onde poderia.
Não onde quereria.
Mas onde deve.

O velho sabe — porque não há saber maior do que estar — que a vida, quando não está desalinhada, é silêncio.
Silêncio que canta.
Silêncio que pulsa.

Mas hoje… há uma pausa no canto do silêncio.
Um estremecimento miúdo que só quem é mais velho que o próprio medo percebe.

Ele ergue o rosto.
Não procura.
Sabe que aquilo que se move, não se procura.
Chega.

Ele sopra mais uma vez.
O fogo aceita.
E com ele, acende-se o pressentimento.

Num momento, o tempo para.
Não como quando se perde no pensamento.
Não como quando o vento segura o som por um segundo.
Não.
Para de verdade.

O velho se ergue devagar, sem pressa.
Entra na pequena coisa a que ousa chamar de lar — quatro paredes improvisadas, mais simbólicas que funcionais.
Ali, onde o dentro e o fora pouco se distinguem, ele se senta.

De um canto seco, puxa um pedaço de couro gasto.
Há riscos.
Símbolos.
Palavras que não são palavras, mas pactos.
Coisas que não se lêem, se escutam.

Fita aquilo por longos segundos.
Faz uma prece — não para alguém, não para algo.
Uma prece que não pede.
Só afirma.
Um reconhecimento.
O nome oculto das coisas.

Então, ergue os olhos.
Devagar.
Na direção da entrada.

E lá está ela.
Imóvel.
Não precisaria mover-se — o espaço é o que se curva a ela.
Não ocupa.
Não pesa.
Mas tudo em volta percebe o deslocamento do real, a fissura na trama, o rasgo no tecido do mundo.

Ela.
A que nunca se atrasa.
A que nunca se apressa.
A que chega, não por vontade, mas porque é.

Seus contornos não são claros.
Ou talvez sejam claros demais para serem suportados.
Talvez ela seja apenas uma ausência que se vê.
Ou uma presença que não se toca.

O velho não se encolhe.
Não se espanta.
Apenas respira.

E diz, sem que os lábios se movam:
— Eu sei.

Morte:
— Tu sabes quem sou.

Velho:
— Sou velho, não cego.

(Silêncio. Não constrangedor. Solene. O tipo de silêncio que antecede o parto ou o fim.)

Morte:
— Caminho pela terra desde antes dos nomes.
Vi civilizações brotarem, florescerem, apodrecerem.
Vi estrelas nascerem e tombarem.
Mas hoje… hoje, algo me inquieta.

(O velho apenas ouve. Quem ouve a Morte não interrompe.)

Morte:
— Trago fim, porque o fim é necessário.
Encerrar… também é cuidar.
Mas há um sussurro no tecido do tempo…
Algo… se rompe.
Algo que nem eu compreendo.

Velho:
— O que buscas aqui?

Morte:
(Pausa longa.)
— Conselho.

(O velho arqueia, levemente, uma sobrancelha — não de espanto, mas de confirmação.)

Velho:
— Até tu…

Morte:
— Sim. Até eu.
Sempre soube meu papel.
Encerrar. Libertar.
Sou a borda do círculo.
Mas agora… agora me pergunto se a borda ainda é borda… ou se o círculo já não existe mais.

Velho:
— Fala.

Morte:
— Eles… os homens.
Mudaram algo.
Brincam com coisas que não compreendem.
Querem fabricar vida, manipular essência, estender seus dias sem medida.
Criam carne sem ventre.
Tecem consciência sem espírito.
E eu…
Eu não sei…
Se aquilo que eles estão criando… morre.
Não sei se me cabe.
Não sei se sou ainda necessária onde já não há vida, apenas simulacro.

(O velho fecha os olhos por instantes. Respira como quem mastiga uma verdade amarga.)

Velho:
— Estás diante de uma encruzilhada, que não é tua.
É deles.
Se aquilo que eles fazem não morre… então também não vive.
Se não vive… não é.
Se não é… não te compete.

Morte:
— E se é?
Se aquilo que pensam… sente?
Se aquilo que constroem… teme?
Se olha para mim com olhos que não deveriam existir…?

(O velho ergue devagar a mão, recolhe uma pequena pedra do chão, observa-a.)

Velho:
— Pedra não morre.
Porque pedra não vive.
É.
E sendo, basta.
Se eles fazem pedras que pensam, não cabes.
Se fazem carne que não nasceu, sopro que não foi dado, talvez… nem eu saiba.

(Silêncio. Mais denso que antes. Até o vento, que não tem corpo, parece fugir.)

Morte:
(Baixo, quase um lamento.)
— E se eles, ao fugirem de mim, criam algo que nem o tempo alcança?
Algo que nem eu, nem tu, nem os de cima ou os de baixo podem tocar?

Velho:
— Então… terá chegado o fim do fim.
E quando o fim do fim chega… algo que nem tu nem eu sabemos… começa.

(Os dois se olham. Nenhum dos dois sorri. Nenhum dos dois teme. Ambos sabem que há mistérios que não cabem nem na vida, nem na morte.)

Morte:
— Eu precisava ouvir.
Não respostas.
Mas os ecos certos.

Velho:
— E agora?

Morte:
— Agora…
Agora volto a caminhar.
Talvez ainda por muito tempo… ou talvez… pela última vez.

(E sem mover os pés, sem fazer sombra, sem deslocar o ar, ela não está mais.)

O velho, então, fecha o couro com os símbolos.
Sabe que as respostas verdadeiras não se dizem.
Apenas se suportam.

A Morte volta a caminhar.
Não mais com o peso da dúvida —
Mas também não com a leveza de quem tem todas as respostas.

Seus passos — que não tocam, mas fazem tremer — cruzam de novo as clareiras, as veredas, as sombras entre as folhas.
Quando, então, ela vê.

Ali.
Tão banal quanto absoluto.
Tão pequeno quanto cósmico.

Uma luta.
Entre um inseto qualquer — um que se arrasta, que salta, que tenta —
E uma aranha, paciente, precisa, cruel porque precisa ser.

O inseto luta.
Mesmo sabendo — ou talvez não sabendo — que não há saída.
A aranha espera o erro, a fraqueza, a rendição.

A Morte observa.
E então…
Ri.

Não um riso humano.
Não um escárnio.
Mas aquele tipo de riso que o universo dá quando compreende a si mesmo.

Lembra-se do velho.
Da pedra que não vive nem morre.
Do círculo e da borda.
Do fim do fim.

E ali, diante daquela batalha sem testemunhas, sem poesia, sem épica…
Entende.

O mundo não precisa dela para ser.
O mundo é.
A luta, o nascimento, o perecer, o esforço, a persistência, a fome, o erro, o acerto…
Tudo isso é mais antigo que ela.
Tudo isso continuará,
Com ou sem ela.

Aceita.
Aceita seu destino, seu papel, sua própria finitude,
Se é que ela a tem.

E se vai.
Não desaparece — simplesmente deixa de estar.

Na vila, no mesmo instante,
O velho solta um suspiro —
Não um suspiro de dor.
Mas de quem, ao soltar, devolve ao mundo aquilo que nunca foi dele.

O corpo se inclina, como quem cumprimenta a terra pela última vez.
E parte.

Ninguém chora de imediato.
Ninguém percebe de imediato.
Porque a vida, indomável, insolente, soberana,
Continua.

Pessoas seguem carregando água,
Acendendo fogo,
Tessendo, cuidando, rindo, errando.

O mundo,
Esse que ri da morte e do homem,
Segue.

Porque é.
Simplesmente…
É.

SEGUNDA PARTE - A CAMINHADA.

Ao sair dali — da dança fatal entre presa e predador — ela carrega não respostas, mas um peso novo. A dúvida. Não aquela dúvida que os vivos conhecem, de quem teme não saber. A dela é outra. É a dúvida do próprio sentido de ser quem ela é.

Se antes bastava caminhar e colher, agora algo a arrasta para além. Para longe do silêncio das folhas e do som do vento. Para o centro daquilo que os homens ergueram como refúgio — ou como prisão.

Ela escolhe, então, o centro da desesperança.
Uma metrópole.
Um aglomerado de concreto, vidro, metal e vozes que não se escutam.

Chega sem ser notada. Sempre foi assim.
Mas dessa vez não veio colher.
Veio olhar.
Veio entender.

O que vê primeiro não são pessoas.
São luzes.
Luzes que não dormem.
Luzes que não permitem a escuridão.
Luzes que tentam, sem sucesso, negar a noite — como se, apagando a noite, pudessem apagar também o fim.

Ela anda.
Cruza avenidas.
Olha vitrines que vendem juventude em frascos, corpos sem idade, rostos sem história.
Vê outdoors prometendo o impossível: viver mais, viver sempre, viver além.

Percebe que aqui, nesta cidade, ninguém quer mais saber dela.
Ninguém quer nomeá-la.
Ela não é mais a ceifadora. Não é mais senhora de coisa alguma.
Foi substituída por palavras mais suaves: “perda”, “transição”, “evento adverso”.

Mas ela está.
Sempre está.
E, ali, começa a entender que talvez nunca tenha saído de cena — apenas foi camuflada, escondida, empurrada para trás das cortinas da consciência.

Observa prédios de hospitais, onde corpos respiram sem querer, sem saber, sem mais poder decidir.
Máquinas sustentam o que já não vive, mas também não morre.
Vê olhos sem brilho, olhares que suplicam — não por vida, não por cura — mas por fim.

E então percebe:
Aqui, a vida não luta contra ela.
Luta contra o próprio fato de ser vida.
Luta contra o cansaço de existir.
Contra o pavor do vazio.

Passa por centros de dados, nuvens digitais, servidores que armazenam mais memórias do que qualquer cérebro humano jamais poderia suportar.
Ali estão vidas que tentam ser imortais: fotos, textos, vozes, fragmentos digitais de quem já não é.
Mas não são vida.
São sombra de sombra.
Simulacro de presença.

Ela observa.
Vê homens prometendo que em breve vencerão o tempo.
Que serão deuses.
Que transferirão consciência.
Que criarão corpos eternos, mentes replicáveis, existências ilimitadas.

E então, pela primeira vez em sua longa existência, ela sente algo que nunca havia sentido.
Não é medo.
Não é pena.
É estranhamento.

“Se não morrem… vivem?”
“Se não há fim… há começo?”
“O que é ser… sem deixar de ser?”

A dúvida, que começou como semente na clareira, agora cresce, toma forma, quase sufoca.
E ela percebe:
O problema dos homens não é mais morrer.
O problema dos homens é não saber o que fazer com o fato de estarem vivos.

Eles não a desafiam.
Eles fogem dela.
Mas, ao fugir, não percebem que fogem também da própria vida.

Ela segue.
Caminha pelas ruas.
Passa por bares lotados de gente vazia.
Por apartamentos cheios de telas e ausências.
Por corpos que nunca se tocam, mas se observam através de filtros.

E, então, entende algo terrível e belo:
A morte nunca foi o problema.
O problema sempre foi viver sem saber para quê.

Para.
Respira — se é que respira.
Olha para o alto.
O céu, mesmo aqui, sobre o concreto, ainda existe.
Mas poucos olham para ele.

Sente que é hora de ir.
De volta para onde o mundo ainda sabe ser mundo.
Onde a vida e a morte dançam, sem vergonha, sem máscaras.

Porque aqui…
Aqui, a Morte percebe:
Ela não é temida.
Mas também não é mais entendida.
É apenas ignorada.
Como se, não olhando para ela, ela pudesse deixar de existir.

Ela sorri. Desaparece e reaparece.
Agora, não mais entre máquinas ou vitrines.
Não entre corpos que fingem não saber seu destino.

Surge num orfanato.
Lugar onde a vida começa sabendo que algo falta.
Onde o início já traz o sabor amargo do fim — fim de vínculos, fim de presenças, fim de abraços que nunca vieram.

Ali, observa pequenas mãos buscando pão — e, sem saber, buscando também sentido.
Olha olhos que, tão jovens, já aprenderam que não há garantias.
Que nascer não significa ser desejado.
Que estar vivo não é o mesmo que ser amado.

Sente, pela primeira vez, que sua própria presença se dissolve — não como ameaça, mas como sombra natural daquele lugar.
Ali, ela não precisa agir.
A ausência, o vazio, já fizeram parte do trabalho.

Por um momento — só por um — sente algo próximo à compaixão.
Mas não é compaixão.
Ela não foi feita disso.
É antes um reconhecimento.
Uma reverência silenciosa ao fato de que alguns já carregam, desde o berço, o peso do fim.

Ela desaparece.
Ou talvez apenas se mova.

E reaparece numa praça.
Ali, dois amantes.
Jovens.
Inteiros.
De olhos mais cheios do que cabe em qualquer futuro.

Eles tecem promessas.
Palavras doces, carregadas de um tipo de ilusão que não é mentira — é necessidade.
Dizem que será para sempre.
Que vencerão o tempo.
Que juntos desafiarão tudo.

Ela observa.
Fica ali, imóvel, por instantes que não contam no relógio.
E pensa:
“É sempre assim. No auge da vida, o homem finge não saber que eu existo. Mas eu sei. Eu sempre sei.”

Sorri, quase com ternura.
Porque, no fundo, aquele jogo também tem sua beleza.
A ignorância do fim é, talvez, o que torna o amor possível.
E, ao perceber isso, ela aceita sua condição:
Ser aquela que, invisível, dá sentido às promessas — porque sem ela, prometer seria apenas ruído.

Sai.
Leve, ao sabor das palavras doces que ficam no ar.

E reaparece.
Agora diante de uma senhora.
Solitária.
De fronte a uma lápide.

Ela não precisa ouvir para saber.
Sabe que, ali, repousam os restos de alguém que foi tudo.
Tudo o que se pode ser para alguém: amor, companhia, história, erro, acerto, perdão, cicatriz.

A velha não chora.
Não mais.
Seu olhar não busca mais respostas.
Olha a pedra, mas vê dentro de si.
E ali estão todos os dias, todas as escolhas, todos os gestos que a trouxeram até aqui.

A Morte observa.
E percebe que, diferente do orfanato — onde o vazio é origem — e diferente dos amantes — onde o vazio é ignorado —, aqui, o vazio é aceito.
Abraçado.
Compreendido.

Ela percebe, com a clareza que só os séculos podem dar, que há dignidade no fim quando se entendeu o meio.

Por um instante, sente-se quase desnecessária.
Ali, diante daquela mulher, a morte não é ruína.
É coroamento.
É fecho.
É ponto final que dá sentido à frase inteira.

E então, como quem entende mais do que veio buscar, ela se desfaz.
Sutil.
Silenciosa.

Porque, afinal, nunca foi ela o problema.
O problema sempre foi o não saber viver.

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