Ao longo da história, o riso sempre foi uma arma de altíssimo potencial subversivo. Não é por acaso que, em praticamente todas as tiranias, o humor foi perseguido com zelo. Reis, imperadores, ditadores — todos, sem exceção — temeram profundamente aquele que, com uma simples piada, desnudava o grotesco do poder, desmontava a pompa das hierarquias e expunha o ridículo das pretensas autoridades. Não há nada mais humilhante para o poder do que ser alvo do riso. O cômico, como dizia Bergson, é uma sanção social: ele corrige, denuncia e desmascara.
Historicamente, a censura ao humor foi monopólio dos regimes despóticos. As fogueiras da Inquisição, os paredões comunistas, os campos de reeducação, as polícias secretas, os livros queimados — tudo isso teve, invariavelmente, humoristas, artistas e pensadores entre seus alvos prediletos. Onde há opressão, há silêncio forçado. Onde há liberdade, o riso flui.
Nas democracias autênticas, a liberdade de expressão jamais foi negociável. Justamente porque se entende que uma sociedade livre não tem o direito de ser protegida contra o desconforto, contra a crítica, contra a ironia — muito menos contra o próprio ridículo. O humor, por definição, não se curva a sensibilidades. A democracia não protege sentimentos; protege direitos. E entre esses, o direito inalienável de falar, rir, zombar, satirizar, ironizar — inclusive e, sobretudo, contra aquilo que se julga sagrado, intocável ou sensível.
Porém, algo estranho vem ocorrendo no espírito do tempo. Um tipo de censura disfarçada de virtude começa a ganhar terreno. Não mais imposta por tanques, baionetas ou tribunais inquisitoriais, mas por uma maquinaria psicológica sutil, sorrateira e profundamente corrosiva: o politicamente correto. Uma nova ortodoxia que não veste fardas, mas traja as roupagens do humanismo afetado, do moralismo sentimental, da falsa empatia — e que se ergue não mais para proteger a liberdade, mas para amputá-la em nome da sensibilidade alheia.
Na superfície, seus porta-vozes alegam lutar contra “discursos de ódio”, “opressões” e “microagressões”. Na prática, constroem um mundo onde a simples possibilidade de alguém se sentir ofendido é suficiente para justificar a mutilação do discurso, o silenciamento da comédia, a lapidação pública do humorista, o ostracismo do pensador, a execração do artista. Eis a tirania sem rosto — onde o verdugo é a própria multidão anestesiada, guiada por um moralismo histérico que transforma fragilidades subjetivas em armas de controle social.
Trata-se de um fenômeno novo, mas não menos tirânico do que seus predecessores. A censura deixou de ser instrumento de Estados totalitários e passou a ser terceirizada à sociedade — especialmente àquelas frações que, travestidas de “minorias”, instrumentalizam a própria condição em moeda de chantagem moral. Minorias não são doentes mentais, mas parte de suas vanguardas militantes se comportam como se o fossem — encasteladas numa neurose narcísica que exige que o mundo inteiro se curve diante de seus traumas, suas feridas, suas hipersensibilidades.
O novo dogma é claro: se me fere, deve ser proibido. Se me constrange, deve ser silenciado. Se me incomoda, deve ser eliminado. Uma lógica infantil, regressiva, profundamente autoritária — e que, paradoxalmente, se arvora como progressista. Mas é exatamente nesse ponto que se revela sua essência: o politicamente correto não é evolução ética da humanidade; é sua infantilização patológica.
O humor não tem compromisso com a sua dor, nem com sua raça, seu gênero, sua religião, sua ideologia, sua bandeira ou sua identidade sexual. O humor é um espelho que devolve ao mundo a imagem do grotesco que ele mesmo produz. E se não gostas do que vês, não culpes o espelho.
A questão, portanto, é muito mais grave do que parece. Não se trata apenas de humor. Trata-se do direito de dizer. Porque uma sociedade que concede a certas sensibilidades o poder de definir o que pode ou não ser dito é uma sociedade que entrega seu próprio futuro às mãos de tiranetes emocionais — doentes não no sentido clínico, mas no sentido espiritual de uma humanidade que renuncia, dia após dia, à sua própria maturidade.
O limite do humor, portanto, nunca foi — e nunca poderá ser — a sensibilidade do outro. O limite do humor é, e sempre será, o mesmo limite da liberdade: aquilo que não impede a liberdade do próximo. Fora isso, tudo é censura. E toda censura é, no fundo, o primeiro sintoma da morte da liberdade — ainda que venha maquiada de empatia, de justiça ou de inclusão.
A comédia é, e deve ser, o último bastião da liberdade. E uma sociedade que não ri de si mesma está perigosamente próxima de não ser mais livre.
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