quarta-feira, 25 de junho de 2025

Laches — A Coragem em Suspensão.

ÍNDICE.

Capítulo I — A Máscara da Coragem: Entre o Costume e a Ignorância
Artigo I — A Cena Dialógica como Desmascaramento da Sabedoria Presumida
Artigo II — O Desfalecimento dos Conceitos: A Coragem como Pólo Evasivo do Logos

Capítulo II — O Abismo da Virtude: Aporia como Desfecho Filosófico
Artigo I — A Coragem Inapreensível: Razão, Experiência e o Naufrágio do Conceito
Artigo II — O Valor do Não-Saber: Sobre a Ignorância como Ponto de Partida Filosófico

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Capítulo I — A Máscara da Coragem: Entre o Costume e a Ignorância.
Artigo I — A Cena Dialógica como Desmascaramento da Sabedoria Presumida.

A cena do Laches instala-se sob a aparência de um diálogo pedagógico, mas desde o início expõe a ambiguidade dos que, julgando saber, perdem-se nos próprios discursos. Sócrates, como em outras ocasiões, assume o papel daquele que desestrutura a presunção dos que se acreditam senhores de um saber fundado na experiência ou no prestígio público. Os interlocutores — em especial os generais Nicias e Laques — entram no campo da definição não pela via da filosofia, mas da prática, o que torna o terreno ainda mais frágil quando confrontado com o rigor da dialética socrática. A coragem, aqui, é posta em exame como virtude cívica e militar, mas logo se vê que as definições dadas — como resistência da alma, perseverança, ou mesmo conhecimento do que deve ou não ser temido — não suportam o escrutínio lógico.

O que está em jogo não é apenas a definição de um termo, mas o desvelamento de uma atitude profundamente enraizada na cultura ateniense: a substituição do saber pelo hábito, da reflexão pela reputação. A coragem, nesse sentido, é mascarada por um discurso herdado, incapaz de sustentar-se por si mesmo. Sócrates, ao recusar qualquer definição insuficiente, expõe o quanto os próprios generais, heróis de batalha, desconhecem a essência do que praticam. O diálogo torna-se um exercício de purificação, no qual a linguagem é forçada a abandonar suas comodidades e enfrentar o desamparo de não saber. Não há aqui desejo de vitória no argumento, mas a necessidade de que o logos seja verdadeiro. A ignorância, quando admitida, vale mais do que qualquer opinião mal embasada. Nesse processo, o diálogo filosófico mostra-se como combate mais exigente que a guerra: nele não se pode vencer com a força, mas apenas com a coerência.

Artigo II — O Desfalecimento dos Conceitos: A Coragem como Pólo Evasivo do Logos.

À medida que o diálogo avança, a tentativa de fixar o conceito de coragem revela-se uma perseguição ao inatingível. Toda definição oferecida desfalece diante da prova lógica, não porque falte erudição ou experiência aos interlocutores, mas porque a própria natureza do conceito parece escapar a qualquer delimitação rígida. Quando Laques propõe que coragem é resistência da alma, Sócrates logo demonstra que tal definição abarcará tanto a obstinação insensata quanto o agir com sabedoria — confundindo assim coragem com teimosia ou com virtudes mais amplas. Quando Nicias propõe que coragem é conhecimento do que se deve temer e do que se deve ousar, a definição, embora mais refinada, expande-se a ponto de dissolver-se, englobando toda a virtude como prudência.

Aqui, Platão, pela boca de Sócrates, não conduz à resposta, mas à suspensão: a aporia. O logos, longe de resolver o problema, revela sua impotência diante de uma realidade escorregadia. E esta impotência não é sinal de fracasso, mas condição necessária do filosofar. A coragem, quando definida, ou se esvazia ou se torna abrangente demais, perdendo sua especificidade. A linguagem, quando forçada a capturar o que é vivido antes de ser pensado, tropeça em suas próprias construções.

Este é o centro da pedagogia socrática: mostrar que não saber é superior ao falso saber. O desfalecimento dos conceitos é a travessia que purifica o pensamento, pois obriga o espírito a reconhecer seus limites. A coragem, então, não aparece como definição, mas como exercício: é preciso coragem para admitir que não se sabe o que é a coragem. E esse paradoxo é a própria filosofia em ato. A ignorância, neste sentido, não é mera ausência, mas uma abertura — é o solo sobre o qual, um dia, talvez, o saber possa enraizar-se.

Capítulo II — O Abismo da Virtude: Aporia como Desfecho Filosófico.
Artigo I — A Coragem Inapreensível: Razão, Experiência e o Naufrágio do Conceito.

A estrutura do Laches é construída como uma armadilha lógica para os que supõem que a experiência, por si só, baste para definir o bem. Ao confrontar guerreiros experientes, Sócrates revela que a familiaridade com os atos de coragem não garante sua compreensão racional. A experiência, sem exame, produz apenas opiniões — doxa — que se desfazem no crivo da dialética. Assim, a coragem não se mostra como um objeto dado à razão, mas como algo que a razão persegue sem alcançar, algo que habita o espaço entre o vivido e o inteligível.

Essa característica da coragem enquanto virtude elusiva aponta para uma condição ontológica das virtudes em Platão: elas não são meras disposições de comportamento, mas participações no Bem. Como tal, não podem ser definidas apenas em função de seus efeitos empíricos. A coragem, portanto, não pode ser isolada do contexto moral inteiro, pois seu exercício legítimo depende do saber do bem — e isso exige filosofia, não mera ação. Quando Nicias tenta ligar coragem à ciência do temível e do ousável, aproxima-se da verdade, mas dissolve o objeto ao incluí-lo no todo da prudência. O naufrágio do conceito revela que não é possível falar da coragem sem referir-se a uma totalidade moral que a sustente.

A filosofia, nesse sentido, não é um método para a definição, mas para o desvelamento da insuficiência das definições. A coragem mostra-se, então, como um exemplo privilegiado daquilo que escapa ao discurso, mas que, justamente por isso, nos força ao pensamento. Seu caráter inapreensível não é deficiência do logos, mas um convite à conversão interior: o abandono da falsa clareza para o início do verdadeiro saber. É nesse ponto que o diálogo torna-se purificação, e a aporia — o não-saber confessado — torna-se condição primeira da sabedoria.

Artigo II — O Valor do Não-Saber: Sobre a Ignorância como Ponto de Partida Filosófico.

Ao encerrar-se em aporia, o Laches não fracassa; ele realiza o que propôs desde o início: abrir espaço ao verdadeiro filosofar. A impossibilidade de definir a coragem, longe de ser um limite da investigação, é o seu ápice. Sócrates, ao desmontar cada definição oferecida, não destrói o conceito, mas desarma a pretensão de capturá-lo sem a devida elevação da alma. A ignorância revelada não é o vazio, mas a fundação: é o solo firme onde o espírito, despido da ilusão do saber, pode começar a edificar a verdade.

A coragem, neste sentido, assume um duplo papel. Por um lado, é o objeto da investigação; por outro, é o movimento exigido do próprio filósofo. É preciso coragem para resistir ao apelo das respostas fáceis, coragem para sustentar o desconforto do não-saber, coragem para expor a si mesmo ao risco do ridículo diante da verdade. Assim, a virtude buscada torna-se condição da busca. O diálogo platônico realiza aqui uma espiral que não se fecha: quanto mais se tenta definir, mais se aprofunda o mistério — e quanto mais se reconhece a impotência, mais se prepara a alma para o saber verdadeiro.

Essa lógica — de que o saber começa pelo reconhecimento da ignorância — é o coração do método socrático. Não se trata de relativismo, mas de rigor: aquele que não sabe e reconhece isso encontra-se em melhor posição do que o que crê saber e está em erro. O Laches ensina, assim, que o pensamento sério não se funda em respostas, mas em perguntas autênticas. O valor da aporia não está em paralisar a mente, mas em libertá-la da tirania do improviso e da tradição não examinada.

A coragem permanece indefinida, mas o diálogo produz um efeito mais profundo que qualquer definição: move a alma. Aqueles que antes confiavam em sua autoridade agora veem-se humildes, aptos, talvez, a serem educados. É nesse gesto — o abandono da ilusão de saber — que nasce a possibilidade da verdadeira paideia. E se a coragem, afinal, não pode ser definida, ao menos se aprende que seu primeiro sinal é o reconhecimento de que ainda não se sabe o que ela é.




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