Capítulo I – A Percepção e as Estruturas Primordiais do Conhecimento.
Artigo 1 – As Categorias Aristotélicas como Núcleo Ontológico da Percepção
Artigo 2 – Predicáveis e Causas: a Anatomia Instintiva do Juízo Humano
Artigo 3 – O Senso do Real: Entre Acidentes Possíveis e Impossíveis
Capítulo II – O Erro como Degeneração das Funções Cognitivas Superiores.
Artigo 1 – A Inversão dos Níveis: Quando a Filosofia Desce Abaixo do Cidadão Comum
Artigo 2 – Crítica à Filosofia Moderna: Bacon, Descartes e o Delírio da Tábula Rasa
Artigo 3 – A Prova como Fetiche: Conhecimento, Experiência e Legado Cultural
Capítulo III – A Manipulação da Opinião Pública e o Eclipse da Realidade.
Artigo 1 – Durkheim, Taine e a Confusão entre Causa Próxima e Remota
Artigo 2 – As Sociedades de Pensamento e a Falsificação do Real
Artigo 3 – A Tirania Cultural como Obstáculo à Inteligência: Como Escapar da Opinião Dominante
///////////
Capítulo I – A Percepção e as Estruturas Primordiais do Conhecimento.
Artigo 1 – As Categorias Aristotélicas como Núcleo Ontológico da Percepção.
As categorias propostas por Aristóteles não surgem como instrumentos técnicos da filosofia, mas como uma descrição minuciosa do modo como a realidade já se apresenta à percepção humana desde o início da experiência consciente. O ser humano, antes mesmo de nomear ou refletir sobre o que percebe, já distingue, espontaneamente, o que uma coisa é (substância), como ela é (qualidade), quanto ela é (quantidade), onde está (lugar), em que relação se encontra com outras (relação), desde quando e até quando (tempo), o que faz (ação) e o que sofre (paixão ou ação passiva). Tais distinções não derivam de um aprendizado lógico ou de um treinamento discursivo, mas se encontram arraigadas na própria estrutura da percepção.
Negar a presença categorial no ato perceptivo é dissolver o próprio fundamento do real. O conceito de “pensamento pré-categorial” é, portanto, um absurdo ontológico: não há percepção de algo que não seja já dotado de forma, quantidade, localização, atividade ou receptividade. O mundo é percebido categorialmente, pois é na articulação das categorias que a realidade adquire inteligibilidade para a consciência humana. Assim, a função filosófica das categorias não é inventar instrumentos de pensamento, mas explicitar o que já se dá de maneira imediata na experiência comum. Aristóteles apenas deu nomes às distinções que a alma já realizava desde sempre.
A força dessas categorias reside em sua universalidade espontânea: todos as aplicam sem sabê-lo. A confusão entre elas é sinal de doença perceptiva ou esquizofrenia cognitiva. Saber que uma coisa é diferente de uma qualidade que ela possui, ou de sua quantidade ou posição, é uma operação tão elementar que sua ausência marca a dissolução do senso do real. A criança, o analfabeto e até o idiota político — como diz o autor — fazem essa distinção sem esforço. O que a filosofia faz é apenas trazer à luz o que já opera nas sombras da atenção ordinária. Portanto, a filosofia começa com a explicitação do evidente, e o primeiro gesto do filósofo é restaurar a consciência do que todos sabem sem saber que sabem.
Artigo 2 – Predicáveis e Causas: a Anatomia Instintiva do Juízo Humano.
A estrutura do juízo humano, longe de ser um produto artificial do raciocínio discursivo, repousa sobre distinções espontâneas que regem a maneira como os homens articulam a realidade em linguagem e pensamento. A mente, no ato ordinário de conhecer e falar, diferencia com precisão entre aquilo que define uma coisa (definição), aquilo que a insere em um gênero mais amplo (gênero), o que dela decorre necessariamente (propriedade) e o que nela se encontra de modo acidental (acidente). Essas quatro determinações — os predicáveis — não são categorias eruditas, mas elementos constitutivos da experiência comum. Todos, ao indagar "o que é isto?", rejeitam respostas genéricas e buscam aquilo que distingue a coisa de outras da mesma classe.
Da mesma forma, na vida prática, ninguém confunde o fato de um gato miar (propriedade) com o fato de estar sobre o telhado (acidente), nem confunde o gênero "móvel" com a definição de "mesa". A linguagem ordinária é estruturada por essas distinções, e o senso de realidade é a sua operação bem-sucedida. Quando a percepção ou o discurso falham, quase sempre o que ocorreu foi uma troca inconsciente de predicáveis — uma substituição da definição por uma propriedade, da propriedade por um acidente, e assim por diante.
O mesmo vale para a distinção entre os quatro tipos de causas, tal como formulados por Aristóteles: causa formal, causa material, causa eficiente e causa final. Cada uma delas responde a um tipo de pergunta, e cada uma tem sua instância de aplicação. Saber que uma tartaruga pode andar na terra porque não é um peixe é compreender a causa formal. Saber que alguém disparou um tiro porque apertou um gatilho é invocar a causa eficiente. Saber que usou uma arma de fogo é apontar a causa material. Saber que matou por vingança é explicitar a causa final. Essas distinções estruturam toda narrativa compreensiva da realidade. Confundi-las — como se faz ao tomar uma definição como explicação do impulso, ou um acidente como propriedade — dissolve o conteúdo do juízo e reduz o pensamento ao disparate.
Essas distinções são tão enraizadas que sustentam até mesmo a existência do senso de humor. Toda piada opera pela troca proposital dessas estruturas — substitui causa por efeito, acidente por definição, final por material. O riso surge do reconhecimento da incongruência. A distinção entre causa próxima e causa remota é igualmente espontânea: todos percebem que flagrar alguém em adultério é diferente de citar a crise do matrimônio como justificativa do divórcio. A filosofia, ao explicitar essas diferenciações, não as cria — apenas as preserva do colapso provocado pelo vício intelectual moderno. O juízo correto repousa sobre a ordenação instintiva dessas estruturas. A filosofia é o exercício da lucidez sobre o que a alma já realiza sem pensar.
Artigo 3 – O Senso do Real: Entre Acidentes Possíveis e Impossíveis.
A distinção entre os diversos modos de predicar algo sobre uma substância, e a clara separação entre causas de ordem formal, eficiente, material ou final, culmina na formação daquele que Olavo de Carvalho identifica como o elemento mais decisivo da inteligência humana: o senso do real. Este não é um produto de elaboração lógica nem de raciocínio abstrato, mas uma faculdade instintiva que permite ao ser humano discernir, com notável precisão, o que pode ou não pode acontecer com cada ente, segundo sua natureza. É essa capacidade de estimar a verossimilhança de um acidente que estabelece a linha divisória entre a percepção lúcida da realidade e o delírio interpretativo.
A percepção da possibilidade ou impossibilidade de um acidente não decorre de deduções formais, mas da intuição imediata de compatibilidades ontológicas. Ninguém espera que uma equação do segundo grau leve um tiro, ou que uma tartaruga fale alemão, do mesmo modo como ninguém se surpreende se um gato miar. Saber que certos acidentes são possíveis, outros apenas verossímeis, e outros ainda completamente inconcebíveis, é o que fundamenta a noção de realidade. Isso não se aprende: é um hábito perceptivo enraizado na constituição humana. O erro grave ocorre quando esse senso é corrompido por confusões categóricas ou por construções intelectuais artificiais, que deslocam a atenção da realidade concreta para uma pseudo-realidade verbal.
Olavo observa que os erros mais profundos e grotescos da filosofia moderna não são, geralmente, erros de lógica formal, mas sim confusões entre categorias, entre causas ou entre predicáveis. Quando se inverte a ordem do conhecimento e se atribui causalidade àquilo que é apenas um resultado estatístico, ou quando se tenta deduzir acidentes a partir da essência, o pensamento se desconecta do real e entra em colapso funcional. É nesse ponto que se torna possível a substituição do juízo pela ideologia, da percepção pela construção fictícia, e do real pelo discurso autorreferente.
O senso do real, por isso, é mais do que uma operação cognitiva: é uma salvaguarda ontológica. Ele distingue o ser humano não apenas dos outros animais, mas também das máquinas. Enquanto um computador pode processar dados com lógica irrepreensível, ele não pode distinguir entre o possível e o absurdo, o verossímil e o insano. Só o homem, em posse de sua estrutura perceptiva intacta, pode graduar os acidentes segundo sua compatibilidade com a natureza das coisas. Preservar essa estrutura é a primeira tarefa de quem pretende filosofar seriamente. Pois o fundamento do conhecimento verdadeiro não é a dedução a partir de premissas, mas a fidelidade ao modo como o ser se dá à percepção: ordenado, graduado e inteligível. A sabedoria começa com o reconhecimento do que é.
Capítulo II – O Erro como Degeneração das Funções Cognitivas Superiores.
Artigo 1 – A Inversão dos Níveis: Quando a Filosofia Desce Abaixo do Cidadão Comum.
A ironia mais cruel do desenvolvimento moderno do pensamento filosófico reside no fato de que, quanto mais a inteligência se aplica aos assuntos sublimes da metafísica, da epistemologia ou da ética, mais ela se arrisca a incorrer em erros que nem mesmo o senso comum toleraria. Há, segundo Olavo de Carvalho, uma queda da filosofia, uma espécie de regressão estrutural, quando se abandona o patamar de lucidez espontânea que sustenta a percepção ordinária da realidade e se mergulha em construções conceituais que ignoram as distinções elementares da experiência. Assim, o cidadão que opera uma bomba de gasolina, lida com dinheiro e julga fatos práticos do cotidiano, é mais inteligente no exercício da vida real do que muitos filósofos modernos quando mergulham nas suas abstrações desvinculadas do mundo.
O erro não está na abstração como tal, mas no seu uso degenerado, que esquece sua origem no real e passa a funcionar como um sistema fechado sobre si mesmo. Quando as distinções entre categorias, causas e predicáveis são dissolvidas, ou quando se imagina poder começar todo o conhecimento do zero, sem legado cultural ou herança perceptiva, como pretendem Descartes ou Bacon, o filósofo se torna inferior ao homem comum. Este último, ainda que ignorante das terminologias, opera corretamente com o real porque não tenta substituí-lo por um modelo teórico.
A falácia moderna está em pensar que o rigor conceitual pode substituir o enraizamento perceptivo. Mas um conceito, quando perde seu vínculo com aquilo que pretende exprimir, torna-se uma ficção, um signo vazio que circula apenas no espaço verbal. O retorno a Aristóteles — não à sua filosofia como sistema, mas à sua atitude filosófica fundada na descrição das operações naturais da alma humana — é, pois, uma exigência de sobrevivência do próprio intelecto. Quando o filósofo ignora esse patamar basal da realidade, torna-se, paradoxalmente, o mais alienado entre os homens. Pensar sem ancorar-se no real é perder o mundo. E perder o mundo, por mais brilhante que seja o discurso, é tornar-se incapaz de conhecer.
Artigo 2 – Crítica à Filosofia Moderna: Bacon, Descartes e o Delírio da Tábula Rasa.
A modernidade filosófica inicia seu trajeto com uma pretensão destrutiva disfarçada de renovação: suprimir toda a herança cultural e reconstruir o saber sobre fundamentos “seguros”, como propõem Francis Bacon com a experiência empírica, e René Descartes com a dúvida metódica. No entanto, essa tentativa não é senão uma bravata epistemológica: presume-se que é possível suspender toda crença anterior e começar o conhecimento ab initio, ignorando que essa suspensão já está condicionada por inúmeros pressupostos implícitos, a começar pela linguagem e pelas operações perceptivas elementares. O que Bacon e Descartes propõem não é um novo método filosófico, mas um delírio de autossuficiência.
Bacon, ao elevar a experiência ao status de juíza suprema de todo conhecimento, esquece que nenhuma experiência é possível sem um arcabouço de informações prévias, transmitidas pela tradição, sem as quais nem o experimento mais simples pode ser interpretado. Descartes, por sua vez, ao duvidar de tudo exceto do próprio pensamento, escamoteia que já partia do conhecimento de que o pensamento existe e é seu — ou seja, toma como conclusão aquilo que pressupôs desde o início. Seu “penso, logo existo” não é uma dedução, mas uma reafirmação tautológica de um dado já instalado na percepção.
Ambos cometem o mesmo erro de categoria: tratam o conhecimento como algo que pode ser validado apenas por dentro, desprezando a instância exterior da realidade concreta. A experiência, por sua vez, não pode fundar-se a si mesma, pois carece do contexto que lhe dá sentido. Reduzir o saber à prova é mutilar o espírito humano, pois o que se sabe, na maior parte dos casos, excede o que se pode demonstrar. A prova serve à comunicação, à transmissão social do saber, mas não à sua origem. Conhecer é anterior à prova, e muitas vezes independe dela.
A fé na tábula rasa moderna é uma negação insana da própria constituição do espírito humano. Toda prova exige confiança em alguma coisa não provada: no idioma que se usa, nos sentidos que percebem, nos conceitos herdados. Assim, exigir prova de tudo é paralisar a inteligência e reduzir o saber à mera tautologia demonstrativa. O impulso moderno não é filosófico, mas niilista: nasce da suspeita de que tudo é engano e da tentativa desesperada de escapar disso com instrumentos que, em si, já pressupõem o que se quer negar. Descartes e Bacon não abrem novos caminhos: fecham o antigo e se lançam no vazio, crendo que podem caminhar sobre o abismo com a sola das suas ideias.
Artigo 3 – A Prova como Fetiche: Conhecimento, Experiência e Legado Cultural.
A obsessão moderna pela prova, como critério exclusivo de verdade e legitimidade do saber, não representa um avanço da racionalidade, mas um fetichismo epistemológico que desfigura a própria natureza do conhecimento. Saber não é sinônimo de provar. Saber é, antes, um ato interior da inteligência, uma adesão do espírito à realidade captada — seja pela experiência direta, pela memória, pela imaginação ou pela tradição. A prova, quando ocorre, é posterior a esse ato, e tem função social: visa convencer o outro, não fundar o saber. A inversão moderna, que faz da prova a condição do próprio conhecer, transforma o intelecto em escravo de uma exigência que, por sua própria estrutura, jamais poderá cumprir integralmente.
A prova pertence ao domínio do discurso e da comunicação, não ao da percepção. Quem testemunha um fato é, ele mesmo, a prova do fato — e não pode fornecê-la a si mesmo. Quando o conhecimento é reduzido ao que pode ser demonstrado publicamente, tudo o que ultrapassa essa demonstração é descartado como incerto ou irrelevante. Com isso, perde-se justamente o núcleo mais nobre do saber: aquilo que se sabe silenciosamente, mas com clareza, sem poder traduzi-lo por completo em proposições. A tradição filosófica clássica sabia disso: a sabedoria, para Platão, não se esgota no discurso, e para Aristóteles, todo conhecimento é dependente de um conhecimento anterior, que se perde na noite da infância e da experiência não verbal.
O que chamamos de cultura é precisamente essa rede de saberes acumulados que não podem ser provados a cada geração, mas que são o suporte mesmo da possibilidade de pensar. Cada experiência nova só é possível porque mil outras foram vividas antes, transmitidas por signos, costumes, textos e exemplos. Ignorar esse legado e querer conhecer apenas o que se pode experimentar e provar é mutilar a própria capacidade de conhecer. A tradição não é um obstáculo à razão, mas sua condição de possibilidade. Negá-la é condenar-se à ignorância sistemática.
Nesse contexto, o ideal moderno de só aceitar como verdadeiro aquilo que se pode demonstrar é não apenas impraticável — é desumano. Ninguém vive assim. Quem exigisse prova de tudo, a cada instante, não conseguiria sair de casa. Tal atitude, levada ao extremo, não é rigor intelectual: é sintoma de um distúrbio psíquico. A inteligência, ao contrário, se afirma na capacidade de distinguir entre o que pode e o que precisa ser provado, entre o que é evidente e o que é comunicável, entre o que se sabe por si e o que se demonstra ao outro. A verdade, antes de ser pública, é íntima. E só se torna pública na medida em que não se sacrifica essa intimidade originária do conhecimento no altar da verificação mecânica. Contra a paranoia da prova total, a filosofia clássica responde com serenidade: o saber começa com o reconhecimento humilde daquilo que já se sabe.
Capítulo III – A Manipulação da Opinião Pública e o Eclipse da Realidade.
Artigo 1 – Durkheim, Taine e a Confusão entre Causa Próxima e Remota.
A contraposição entre Hippolyte Taine e Émile Durkheim, conforme exposta por Olavo de Carvalho, revela mais do que um desacordo metodológico: trata-se de um divisor entre duas concepções irreconciliáveis do real. Taine, historiador atento à psicologia dos agentes e ao encadeamento concreto das ações humanas, parte sempre da causa próxima — da intenção subjetiva, da interpretação do ator, dos meios utilizados e dos resultados obtidos. É a história como exame das decisões humanas e de seus efeitos. Já Durkheim inaugura uma nova ciência — a sociologia — fundada na abstração dos agentes e na consideração de "fatos sociais" impessoais e anônimos, que supostamente agem sobre os indivíduos sem depender de suas consciências.
Essa virada marca a substituição da causalidade concreta por um esquema estrutural, onde a realidade é percebida como o efeito de forças invisíveis, não-localizadas, sistemicamente dispersas. Ao eliminar o sujeito da equação, Durkheim dissolve a liberdade humana e torna toda explicação um jogo de pressões externas. Com isso, abandona-se o campo da ação e entra-se no da fatalidade histórica. A causalidade deixa de ser inteligível e se torna estatística. O pensamento se afasta da realidade observável e se prende a construções teóricas imunes à verificação.
Aristóteles já havia formulado claramente a distinção entre causas próximas e remotas. Nenhuma causa remota — estrutural, genérica, predisponente — tem o poder de determinar, por si, um ato humano concreto. A pobreza, por exemplo, pode limitar possibilidades, mas não compele ninguém à delinquência. A criminalidade não decorre diretamente da miséria, mas de uma cadeia causal que inclui interpretações, justificações, decisões e meios organizados. Onde falta o meio, não há ação — e, portanto, não há crime. O esquecimento desta articulação leva à reificação de fenômenos históricos e sociais, convertendo processos em entidades.
A ciência social moderna, ao adotar as causas remotas como únicas dignas de atenção, passa a ignorar os atos reais dos homens. O agente humano desaparece como princípio explicativo. Tudo é função de forças “estruturais”, de determinações “profundas”. Assim, o campo da história torna-se um teatro de sombras, e o da sociologia, uma pseudociência que descreve efeitos sem causas reais. Contra essa tendência, o método de Taine reaparece como único caminho viável: toda explicação deve partir da consciência e das ações humanas concretas, e delas remontar, com prudência, a condicionantes mais gerais. Do contrário, a inteligibilidade se perde, e com ela, a própria realidade.
Artigo 2 – As Sociedades de Pensamento e a Falsificação do Real.
A consolidação do que se entende por “opinião pública” não é um produto espontâneo da deliberação coletiva, mas o resultado de um processo artificial, planejado e executado por círculos intelectuais restritos — as chamadas sociedades de pensamento do século XVIII. Estas não surgem como simples locais de debate, mas como instrumentos de reorganização da legitimidade social, cultural e política. Olavo de Carvalho mostra que tais sociedades não representam o espírito democrático nascente, mas um dispositivo de usurpação simbólica da autoridade legítima, mediante a substituição do juízo público real pela construção de um consenso fabricado.
Essas sociedades funcionavam como centros de produção de prestígio e marginalização. Não tinham poder político direto, mas detinham o poder de atribuir respeitabilidade ou infâmia. Através da manipulação do prestígio cultural — louvando os aliados e silenciando os dissidentes —, essas entidades forjaram uma falsa unanimidade intelectual que logo se converteu em instrumento de poder político. O discurso público, gradativamente, passou a não mais refletir a realidade, mas apenas o que era permitido aparecer como aceitável. O julgamento dos fatos não se dava mais à luz do real, mas à sombra da opinião dominante fabricada por essas instâncias autolegitimadoras.
Essa reorganização simbólica da realidade culminou na Revolução Francesa, cujas raízes diretas repousam sobre o poder subterrâneo das sociedades de pensamento. A autoridade moral e intelectual que essas entidades acumularam antecipou e preparou o campo para a tomada do poder político formal. A revolução cultural precedeu e possibilitou a revolução política. Isso significa que a realidade foi, primeiro, reconstruída no imaginário social e, só depois, reconfigurada no plano institucional. A história não seguiu uma lógica de causas materiais, mas uma lógica de persuasão e de imposição simbólica — um domínio invisível que precedeu a coerção visível.
O resultado disso foi a criação de um mundo paralelo, onde a legitimidade é atribuída por aclamação ideológica, e a realidade é sistematicamente reinterpretada para se ajustar às normas de prestígio vigentes. As sociedades de pensamento inventaram o método de fazer parecer natural e unânime aquilo que é planejado e imposto por minoria. A consequência última dessa falsificação do real é a perda da sanidade intelectual coletiva. Uma sociedade que se guia por consensos forjados deixa de reconhecer a verdade das coisas e passa a viver sob a tirania do discurso dominante. O espírito se dissolve, e a inteligência se curva — não ao real, mas ao simulacro de realidade criado por mecanismos de manipulação simbólica.
Artigo 3 – A Tirania Cultural como Obstáculo à Inteligência: Como Escapar da Opinião Dominante.
A dominação exercida pelas sociedades de pensamento do século XVIII não se extinguiu com a Revolução Francesa. Ela evoluiu, institucionalizou-se e, no mundo contemporâneo, tomou a forma das universidades, dos partidos, das ONGs e dos meios de comunicação. A engenharia do consenso tornou-se mais sofisticada, mas mantém o mesmo objetivo: impedir o pensamento autêntico mediante a imposição de uma moldura cultural que antecede e limita toda investigação possível. A chamada “opinião pública” deixou de ser o resultado de um diálogo plural para tornar-se um instrumento de conformidade e intimidação, bloqueando preventivamente a formulação das perguntas que poderiam desestabilizar o sistema de crenças dominante.
A inteligência, diante disso, encontra-se sitiada. Toda tentativa de pensar fora da matriz consagrada é imediatamente rotulada como heresia, loucura ou conspiração. O indivíduo, temendo a exclusão simbólica, recua. Mesmo os que se opõem ao sistema dominante tendem a agir segundo os termos impostos por ele, opondo-se apenas reativamente, e não de forma estrutural. Desse modo, o adversário ainda determina o quadro do debate, condicionando o que pode ou não ser pensado. A liberdade de pensamento torna-se, assim, uma ilusão, pois não se trata apenas de dizer o que se quer, mas de ser capaz de pensar o que ainda não está autorizado.
Olavo de Carvalho aponta que a única saída real desse cerco é a “desaculturação”, ou seja, o rompimento deliberado com o imaginário dominante, não apenas por meio da crítica racional, mas por uma conversão interior que permita olhar a cultura presente com os olhos de outra — especialmente com os olhos dos antigos. Tal operação não é exótica, mas essencial. Platão, Aristóteles, São Tomás, entre outros, pensaram a realidade como ela é, e não como ela aparece sob a pressão da propaganda ideológica. Escapar da tirania cultural implica restabelecer esse vínculo com o real — não com a cultura, não com o discurso, mas com a verdade das coisas.
Para isso, é preciso retornar à origem da filosofia, à atitude de examinar a opinião dominante não como autoridade final, mas como problema inaugural. Onde hoje a certeza se impõe, o filósofo vê a interrogação; onde o consenso reina, ele percebe a omissão. A libertação intelectual começa pelo reconhecimento de que a opinião pública não é critério da verdade, mas obstáculo ao seu acesso. Somente ao suspender a autoridade cultural adquirida e reconduzir o pensamento à realidade que lhe dá origem é possível restaurar a inteligência como potência do verdadeiro. Enquanto a mente estiver presa ao prestígio social do discurso dominante, estará condenada a reproduzir erros com aparência de virtude. A liberdade do espírito exige coragem para parecer insano num mundo que já enlouqueceu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário