Artigo I – A Máscara do Tirano: Doflamingo e os Aiatolás.
Todo regime autoritário que deseja perdurar no tempo precisa, antes de tudo, ocultar sua essência. A tirania não subsiste apenas pela força; ela exige o véu da legitimidade, a encenação do bem comum, a teatralização da autoridade moral. É neste ponto que o governo de Donquixote Doflamingo, no arco de Dressrosa, se aproxima de maneira impressionante do regime teocrático iraniano dos aiatolás: ambos são exemplos paradigmáticos de como a manipulação das aparências e o controle das estruturas simbólicas de poder moldam a estabilidade política do tirano.
Doflamingo não governa apenas com força militar ou medo. Ele impõe um tipo de domínio mais sutil e, por isso mesmo, mais eficaz: ele altera a memória coletiva, transforma a verdade em fábula, reescreve a história com mãos invisíveis. O povo de Dressrosa, convencido de viver sob a proteção de um rei justo, é na realidade mantido num estado de inconsciência política. A chave do seu domínio não está apenas no exército, mas na figura de Sugar, cujo poder consiste em apagar a existência daqueles que são transformados em brinquedos, cortando os laços de memória que mantinham vivos seus nomes e histórias. Esta habilidade metafórica reflete, de forma brutalmente precisa, o processo pelo qual um regime ditatorial apaga seus dissidentes: ao privá-los da palavra, ao eliminar seus rastros, ao substituí-los por uma narrativa oficial, constrói-se uma realidade alternativa onde só existe aquilo que o poder permite que exista.
Analogamente, os aiatolás iranianos, desde a Revolução de 1979, vêm construindo um regime que se apresenta como guardião da moralidade divina, mas que, em sua essência, opera com os mesmos mecanismos de repressão e falsificação da memória histórica. O antigo regime do Xá, com todos os seus vícios e virtudes, foi lançado ao esquecimento por meio de um aparato ideológico que transformou os livros, a educação, os meios de comunicação e até mesmo a religião em instrumentos de domesticação das massas. Ao povo foi ensinada uma nova versão da história, onde o passado monárquico era pura opressão e o presente teocrático, redenção. Dissidentes políticos, artistas, mulheres e religiosos não alinhados foram, como os brinquedos de Dressrosa, jogados à margem da sociedade, muitas vezes sem direito sequer à lembrança. Prisioneiros que desaparecem nos porões do sistema, mortos que não têm túmulo, vozes que ecoam apenas no exílio ou no subterrâneo da internet: tudo isso compõe o mesmo processo de apagamento sistemático que assegura o trono do tirano.
A estrutura do poder de Doflamingo inclui ainda outro elemento fundamental: a simbiose com instituições externas. O Governo Mundial, ciente de suas atividades criminosas, continua a reconhecer sua autoridade enquanto ele for útil ao equilíbrio maior das forças globais. Trata-se de uma troca implícita: desde que o caos não ultrapasse os limites toleráveis, desde que os lucros fluam, o crime é tolerado e o povo sacrificado. Aqui, novamente, a realidade iraniana se insinua. O regime dos aiatolás, embora demonize o Ocidente em seu discurso, participa de negociações com as grandes potências, mantém redes de influência regional e utiliza sua posição estratégica para garantir a própria sobrevivência. O petróleo, a guerra de narrativas, a promessa de estabilidade regional: tudo isso faz com que, tal como Doflamingo, os aiatolás sejam sustentados por um sistema mais amplo que tolera a injustiça desde que ela sirva aos interesses maiores do jogo geopolítico.
Doflamingo é, portanto, a imagem estilizada de todo tirano moderno: aquele que domina não apenas os corpos, mas sobretudo as consciências; aquele que não precisa esconder os seus crimes, mas sim ensiná-los como se fossem virtudes; aquele que não se impõe pela força bruta, mas pela sedução simbólica de um poder que se finge legítimo. Os aiatolás iranianos, ao se colocarem como representantes exclusivos da vontade divina, construíram uma armadura ideológica ainda mais difícil de romper. O povo de Dressrosa viveu numa ilusão confortável até que a verdade lhes foi imposta com violência. O povo iraniano, por sua vez, começa a despertar, aos poucos, num processo lento, subterrâneo e perigoso, que antecipa a possibilidade de uma ruptura semelhante.
Quando a verdade é exposta, não há mais como sustentar a máscara. A tirania, uma vez desnudada, revela-se frágil e dependente de sua própria mentira. E é nesse ponto de tensão, onde a máscara começa a trincar, que o próximo artigo se desenvolverá: analisando os mecanismos da insurgência, a força da coalizão dos excluídos e o início da queda. Porque toda máscara, uma vez rachada, não mais serve ao rosto do poder.
Artigo II – Resistência Fragmentada e Ruptura Interna.
Nenhum regime, por mais bem amparado em aparatos de repressão ou máscaras simbólicas, é invulnerável à corrosão que nasce de dentro. A queda de Doflamingo não foi promovida por uma única força, nem se deu por meio de uma insurreição centralizada. Foi o resultado da convergência entre múltiplos grupos, cada qual com sua dor, sua memória sequestrada, seu motivo particular para desejar o fim daquele trono manchado. Essa lógica de colapso interno por saturação de tensões periféricas pode ser observada, com contornos inquietantemente similares, no atual cenário iraniano, onde diferentes setores da população – religiosos dissidentes, jovens laicos, minorias étnicas, mulheres privadas de direitos – acumulam, sem coordenação formal, um impulso coletivo contra a cúpula clerical.
Em Dressrosa, os Tontattas, povo minúsculo e outrora invisível, foram escravizados durante décadas sob o castelo, acreditando servir a um rei justo. Gladiadores, heróis de guerra e guerreiros invencíveis, foram reduzidos a brinquedos, suas identidades esquecidas até por seus entes mais próximos. E a nobreza antiga, representada pela Casa Riku, foi desacreditada, tratada como fraca e traidora. Quando Luffy e seus aliados chegam, não trazem um projeto de governo, nem ideologia. O que unem é o ódio comum ao usurpador, a necessidade de romper a ordem falsificada. Esta é a natureza das grandes rupturas: antes de serem políticas, são morais. O que implode regimes não é somente a força armada, mas a perda de legitimidade existencial aos olhos de quem antes acreditava.
O Irã vive uma situação análoga. O regime dos aiatolás mantém uma estrutura de controle simbólico baseada na revolução de 1979, mas essa narrativa, antes coesa, encontra-se agora rachada. Não há mais unidade ideológica que a sustente. A juventude, cada vez mais secularizada e conectada ao mundo, já não vê os clérigos como guias morais. As mulheres, cansadas de submissão legalizada, romperam o pacto tácito de obediência. As minorias religiosas e étnicas, marginalizadas e reprimidas, não mais veem no Estado uma figura de proteção. E mesmo dentro da cúpula, as divergências entre linhas teológicas e facções militares revelam que a unidade do regime é artificial. Assim como em Dressrosa, a coalizão insurgente não parte de um plano coordenado, mas de uma acumulação de injustiças que, ao atingir um ponto crítico, colapsa a estrutura de cima para baixo.
Outro ponto central nesse paralelo é o papel das potências externas. O Governo Mundial, no universo de One Piece, é cúmplice de Doflamingo, e apenas se move quando a exposição pública de seus crimes se torna inescapável. Ele representa o cinismo da diplomacia internacional: os que fingem não ver enquanto lucram. No caso iraniano, os mesmos que denunciam a repressão dos aiatolás em discursos formais, mantêm acordos comerciais, negociam petróleo e evitam ações incisivas por receio de desestabilização regional. Essa conivência institucional fortalece a tirania, mas também planta as sementes de sua ruína. Quando o pacto de conveniência se rompe, seja por pressões internas ou escândalos incontroláveis, o apoio externo se evapora, e o regime fica nu diante de seus próprios escombros.
Em Dressrosa, a verdade vem à tona de forma abrupta, com a quebra da ilusão coletiva operada pela queda do poder de Sugar. É um instante de epifania popular, um despertar. No Irã, esse despertar tem ocorrido de forma fragmentada, mais lenta, mas não menos profunda. A morte de Mahsa Amini, os protestos liderados por mulheres, a repressão violenta de manifestantes e a presença de movimentos opositores no exílio são os indícios de que o colapso não será mais contido por slogans ou promessas vazias. Tal como os brinquedos voltam à forma humana e se lembram de suas dores, o povo iraniano começa a retomar a consciência histórica sequestrada, reconstituindo a memória nacional além da propaganda teocrática.
Essa coalizão informal de excluídos, tanto em Dressrosa quanto no Irã, mostra que a queda de um regime não depende de uma figura messiânica ou de um partido salvador, mas da erosão moral interna que, ao atingir massa crítica, dissolve os fundamentos do poder. O próximo artigo, portanto, abordará o que sucede essa queda: a volta simbólica da monarquia, a tentativa de restaurar uma ordem anterior idealizada e os riscos e esperanças envolvidos no retorno do trono – seja da Casa Riku, seja da Casa Pahlavi. Porque a ruína do impostor não é o fim da história, mas o começo de uma nova luta: a reconstrução do que foi perdido.
Artigo III – O Retorno do Trono: Casa Riku e Casa Pahlavi.
A queda de um regime tirânico, embora necessária, não encerra o processo político: ela apenas remove o obstáculo mais visível à reorganização do poder. O vazio que se segue à derrocada de Doflamingo em Dressrosa, bem como o que potencialmente se formará no Irã com o colapso da teocracia dos aiatolás, exige mais do que força insurgente – exige símbolo, continuidade e reconstrução. É nesse contexto que o retorno da monarquia surge, tanto no anime quanto na realidade geopolítica, não como um retrocesso, mas como tentativa de restaurar uma ordem legitimadora anterior ao colapso moral que se instalou. A figura do rei Riku, tal como a possibilidade do retorno da Casa Pahlavi, funciona como âncora simbólica de uma nação que perdeu seu eixo e sua história.
O rei Riku é descrito como fraco porque se recusa a reinar com tirania. Seu governo foi marcado por justiça, paz e estabilidade, mas sua hesitação diante da violência acabou por ser explorada por Doflamingo para derrubá-lo. Ainda assim, sua imagem permaneceu viva na consciência dos que sofreram sob a farsa do novo regime. O retorno de Riku ao trono não é apenas um ajuste institucional: é a recuperação de uma legitimidade moral, de um passado que, ainda que imperfeito, preservava uma noção de bem comum. No caso do Irã, a dinastia Pahlavi representa algo semelhante: a memória de uma era pré-teocrática, em que, apesar das contradições, havia uma tentativa de modernização, laicização do Estado e inserção do país na ordem global. O retorno de um monarca constitucional ou simbólico não é, aqui, nostalgia, mas reconstituição de um fio de continuidade histórica rompido pela Revolução de 1979.
Há, é claro, perigos evidentes. A restauração de qualquer trono após a queda de um regime autoritário carrega o risco de ser interpretada como imposição, revanchismo ou artificialismo. No universo de One Piece, isso é mitigado pelo próprio comportamento de Riku, que só aceita reassumir o trono após a vontade popular ser claramente manifestada. Ele não toma o poder – ele o recebe de volta. No Irã, o mesmo princípio precisaria ser respeitado: qualquer tentativa de retorno monárquico só teria legitimidade se viesse da demanda interna e espontânea do povo, como resultado de um processo de reconstrução institucional autêntico. A Casa Pahlavi, no exílio, não pode pretender restaurar o Irã apenas como símbolo; ela precisa apresentar-se como portadora de um projeto que respeite o sofrimento dos que resistiram, que compreenda os erros do passado e que se abra à nova realidade de uma sociedade profundamente transformada.
Tanto em Dressrosa quanto no Irã, o que se busca com o retorno da monarquia não é repetir o passado, mas recuperar o que foi interrompido: a possibilidade de uma ordem estável onde o poder não seja apenas força, mas referência moral. A restauração não é, portanto, um movimento conservador, mas regenerador. O trono, neste contexto, não é a sede do mando absoluto, mas o lugar visível da responsabilidade política mais elevada. A Casa Riku é aceita de volta porque representa o oposto do que Doflamingo impôs: um rei que serve, não que domina. O mesmo desejo começa a emergir no Irã entre os que olham para a monarquia não como retorno do autoritarismo, mas como estrutura simbólica capaz de unir uma sociedade esfacelada pela ideologização total do Estado.
A analogia, contudo, exige uma observação final: tanto Riku quanto o herdeiro dos Pahlavi só podem representar uma nova etapa política se compreenderem que sua legitimidade, daqui em diante, não virá do sangue ou da linhagem, mas da fidelidade a um povo que já não é o mesmo de outrora. A queda do tirano é uma libertação, mas também uma convocação à maturidade. O povo que derrubou Doflamingo não retornou à infância política – ele despertou. O mesmo se espera de uma sociedade que, após quarenta anos de teocracia, busca se reencontrar com sua própria identidade. Não há retorno puro ao passado. Há, isso sim, uma restauração que só se cumpre se estiver enraizada no reconhecimento das feridas abertas e na disposição de curá-las com verdade, prudência e justiça.
Assim, o retorno do trono – seja na ficção ou na história real – não é o fechamento de um ciclo, mas a promessa de um recomeço. E a política, em seu sentido mais elevado, não é a arte de dominar, mas a de restaurar a ordem justa onde o caos tentou imperar.
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