sábado, 14 de junho de 2025

O Ciclo do Medo: Revolução, Dogma e a Tragédia da Promessa.


 
Capítulo I — O Reino do Medo.

Artigo 1 — A Origem do Medo: Estrutura Biológica, Forma Mítica.

O medo é anterior à palavra, à ideia e até mesmo à consciência que o nomeia. Ele está gravado nas entranhas da vida, como uma espécie de código que sussurra “fuja” sempre que algo estranho se aproxima. É o impulso que move o animal a se esconder, a proteger seus filhotes, a se recolher diante do trovão. Quando o ser humano surgiu, esse mesmo medo permaneceu, mas começou a tomar outra forma: virou símbolo. O trovão já não era só ruído — era a voz de um deus irritado. A noite não era só ausência de luz — era morada dos espíritos. A morte não era só fim — era julgamento. E é aí que começa o terror mais duradouro: o medo que não tem forma física, mas pesa sobre a alma. O medo que vive no “e se”.

Esse salto, do biológico para o simbólico, não foi um avanço — foi uma condenação. Porque o animal teme o que vê, mas o homem teme o que imagina. E o que a imaginação faz é ampliar, deformar, eternizar. O medo se torna ferramenta de controle interno: o homem se vigia, se culpa, se freia. Toda moral nasce do medo de punição, de exclusão, de perder o lugar no grupo, de ser lançado à margem. Com o tempo, as sociedades foram organizando esse medo em sistemas: religiões, códigos, castas, ritos. O sagrado não é senão uma tentativa de dar forma e regras ao que assombra. E o que assombra é sempre aquilo que está além da nossa força: a morte, o sofrimento, a desgraça inesperada.

O medo, portanto, é o útero da civilização. Mas também é seu túmulo. Porque o mesmo impulso que fez o homem domesticar o fogo, edificar templos e erguer muralhas, foi o mesmo que o fez escravizar outros homens, queimar livros, punir dissidentes. Quem entende o medo, comanda. Quem o nomeia, governa. Quem o manipula, reina. E assim, desde o início, o medo se apresenta como o mestre mais antigo da história humana — e o mais fiel. Nunca nos deixou. Apenas mudou de rosto.

Artigo 2 — O Medo como Fundamento das Sociedades.

Toda ordem social é uma espécie de pacto silencioso entre o instinto e a ameaça. As pessoas não obedecem por natureza. Elas obedecem porque temem. Temem perder o que têm, temem ser punidas, temem ficar sozinhas. E isso não é de agora. Desde os primeiros agrupamentos humanos, era o medo que garantia coesão. Medo da seca, do ataque, do castigo dos deuses. Um líder era aquele que convencia o grupo de que ele sabia a saída — e para isso bastava apresentar o perigo certo. O bom chefe não é o que promete fartura, mas o que aponta o abismo. Porque o homem, dominado pelo medo, prefere a prisão previsível ao risco da liberdade.

Esse mesmo medo é que sustenta as grandes instituições. O Estado, por exemplo, nasce como braço armado da ordem. Ele diz: “obedeça, ou será punido”. Já a religião opera em nível mais profundo: “creia, ou será condenado”. E ambos se alimentam da mesma raiz — o medo da desordem. Não é coincidência que palavras como pecado, crime e heresia tenham surgido lado a lado. A lei e o dogma são filhos legítimos da insegurança coletiva. E quem os contesta, geralmente o faz porque perdeu o medo — ou porque passou a temer algo ainda maior.

O curioso é que mesmo os que estão no topo também têm medo. Medo de perder o poder, medo de serem derrubados, medo da revolta. Então, usam o medo do povo para manter o próprio controle. Criam inimigos. Inventam ameaças. Espalham fantasmas. Tudo para que o medo circule — porque enquanto ele existir, a obediência permanece. O medo é, portanto, a base invisível de todo sistema. Sem ele, as paredes caem. Com ele, até as ruínas parecem palácios.

Artigo 3 — A Psicologia do Oprimido: Quando o Medo Adoece.

Existe um ponto em que o medo deixa de ser instinto e se transforma em condição. É quando ele já não serve mais para alertar ou proteger, mas apenas para manter o sujeito curvado, calado, anestesiado. O oprimido, quando submetido ao medo por tempo demais, começa a internalizá-lo. Já não é o chicote que o comanda — é a expectativa do chicote. Ele se antecipa à punição, renuncia antes de ser negado, cala antes de ser censurado. Vive num estado de contenção constante, onde desejar é perigoso, onde pensar alto é heresia, onde a própria vontade é vista como um risco.

Essa deformação não é só política — é psicológica. É uma destruição lenta da autonomia. A pessoa passa a ver o mundo a partir das grades que a cercam. E pior: começa a acreditar que essas grades são normais. É o que se vê em povos colonizados, em grupos perseguidos, em famílias violentas, em regimes totalitários. O medo se instala como um vírus: silencioso, persistente, invisível. E vai comendo a identidade de dentro pra fora.

O resultado é uma população que desaprende a imaginar outro caminho. Que já não se revolta porque esqueceu como é viver sem correntes. Que transmite esse medo como herança, de pai pra filho, como um código moral. "Não mexa com isso", "Não questione", "Não sonhe alto demais". E assim, o medo vai se perpetuando — não mais pela força do opressor, mas pela fraqueza do oprimido. Até que algo acontece. Um grito, uma faísca, uma lembrança de que ainda se é humano. E nesse instante, por menor que seja, o medo vacila. E o sistema inteiro balança.

Capítulo II — A Eclosão da Revolta.

Artigo 1 — A Transmutação: Quando o Medo Deixa de Funcionar.

Todo sistema de controle baseado no medo se sustenta sob uma tensão constante: ele precisa que o medo funcione. Precisa que o sujeito tema as consequências da desobediência mais do que deseja a liberdade. Precisa que o instinto de sobrevivência continue domesticando a vontade. Mas essa equação não é estável. O medo, quando se prolonga além da medida, se corrompe. Ele começa a produzir o oposto do que pretende. Aquilo que era paralisia vira fúria. O silêncio imposto vira grito acumulado. A renúncia se transforma em raiva.

O ponto de ruptura quase nunca é previsto — nem pelos oprimidos, nem pelos opressores. Às vezes basta uma morte injusta, uma humilhação pública, uma faísca simbólica. Outras vezes, é só o tempo: gerações inteiras se curvam, até que uma nasce sem o mesmo apego à obediência. É sempre assim: uma hora o medo desgasta. E o que era pavor se transmuta em desprezo. É nesse momento que o regime começa a apodrecer. A linguagem da autoridade perde eficácia. Os símbolos perdem reverência. As ameaças não assustam mais. E o medo, velho guardião da ordem, é abandonado como um cão doente.

A transmutação do medo em revolta não é racional. É uma força subterrânea, irracional, impessoal. É o momento em que a dor se torna insuportável e a morte, menos temida do que a continuidade da servidão. O homem não nasce corajoso. Ele é empurrado ao abismo — e ali, no fundo, descobre que pode cair mais... ou voar. Quando o medo deixa de funcionar, a revolução começa. E quando ela começa, não há mais como pará-la com os mesmos instrumentos de antes.

Artigo 2 — O Corpo da Multidão: Ego Dissolvido, Fúria Coletiva.

Se o medo é uma prisão, a revolta é o estouro da cela. Mas quem escapa não volta o mesmo. Aquele que viveu anos em silêncio, quando grita, não grita com a própria voz — grita com o eco de todos os que também foram silenciados. A revolução é essa convergência: milhões de dores pessoais fundindo-se numa só expressão coletiva. É nesse ponto que o sujeito deixa de ser indivíduo e vira parte de algo maior: a multidão.

Na multidão, o ego se dissolve. O nome perde força. A identidade pessoal dá lugar à força do grupo. É como se uma alma nova nascesse — anônima, furiosa, incontrolável. E o que ela quer não é só mudança. Ela quer vingança. Quer justiça, sim, mas quer também ver ruir os templos dos antigos senhores. A multidão quer expiar o próprio medo queimando os símbolos dele. Derruba estátuas, toma pra si os palácios, rasga bandeiras. Não há racionalidade no seu agir. Há instinto. Um instinto que ficou adormecido por séculos e agora grita.

É por isso que as revoluções, no auge, assustam até seus próprios idealizadores. Porque fogem do controle. A multidão não respeita programa político, não ouve argumentos. Ela age movida por uma fome antiga, que ultrapassa qualquer teoria. Quem tentar controlá-la, será engolido. Porque ali, por um breve momento, reina o que nunca teve voz. O favelado, o camponês, o escravizado, o humilhado — todos os que sempre temeram, agora se tornaram a própria tempestade.

Artigo 3 — Inimigos, Bodes e Ídolos: O Medo como Arma Revolucionária.

Nenhuma revolução se sustenta apenas no rompimento. Após a fúria inicial, ela precisa se organizar — e para isso, paradoxalmente, volta a usar o velho instrumento: o medo. Mas agora, não mais o medo do opressor — e sim o medo do traidor. O medo do retorno ao passado. O medo da impureza ideológica. É nesse momento que se escolhem os novos inimigos. A figura do inimigo é indispensável: sem ela, não há foco, não há narrativa, não há coesão. Toda revolução precisa de um vilão permanente. E se ele não existir mais, será inventado.

O antigo rei é decapitado — mas novos rostos começam a ser pintados como ameaça. O burocrata hesitante. O jornalista crítico. O revolucionário que não é radical o bastante. O medo é reciclado. E agora, ele serve ao novo poder. É nesse momento que se percebe o risco de todo levante: ele pode, em vez de libertar, apenas inverter os polos. A estrutura continua a mesma — só mudam os símbolos.

O mais trágico é que muitos aceitam isso. Porque ainda estão sob o efeito da euforia. Porque confundem justiça com castigo, verdade com purificação. E então, o ciclo recomeça. O medo volta a reger a vida, agora com nova face. Mas sua essência é a mesma. Onde há revolução sem reflexão, o medo sempre retorna — como patrão ou como profeta.

Capítulo III — A Nova Ordem do Medo

Artigo 1 — O Medo como Alicerce do Novo Regime.

Quando a poeira baixa, quando os corpos são enterrados e as bandeiras erguidas, surge a pergunta inevitável: e agora? A revolução venceu — mas o que ela coloca no lugar? O novo regime nasce sob o peso da promessa, mas também sob o risco do fracasso. E o povo, embriagado de esperança, exige resposta. O problema é que o ideal é incontrolável — e o real é lento. O pão continua caro. A terra ainda não foi redistribuída. A justiça não chegou para todos. E o tempo corre. Então, o novo poder, pressionado, faz o que o antigo fazia: se apoia no medo.

Começa sutil. Um decreto aqui, uma prisão ali, um comitê de vigilância para garantir que os valores da revolução não sejam corrompidos. Mas logo a vigilância vira paranoia. Os inimigos internos brotam de todo lado. O medo retorna, travestido de zelo. Agora, o povo teme ser visto como contra-revolucionário, teme falar demais, teme discordar. Aquilo que antes era denúncia virou dogma. A crítica vira traição. O pensamento vira ameaça. E o regime, que surgiu para libertar, passa a repetir os mecanismos de opressão. Mais sofisticados, mais limpos, mais ideológicos — mas igualmente eficazes.

Esse retorno do medo não é um acidente. É uma necessidade do poder que quer durar. Nenhum regime nasce sem medo. E nenhum sobrevive sem cultivá-lo. Por isso, o novo regime se blinda: cria símbolos próprios, rituais, slogans, heróis mortos. Constrói sua própria mitologia. E, com ela, uma nova forma de controle. Porque mesmo a liberdade, quando organizada demais, exige vigilância. E toda vigilância precisa de uma sombra.

Artigo 2 — A Memória da Revolução: Trauma ou Esperança?

Toda revolução deixa um rastro ambíguo. Ao mesmo tempo em que representa libertação, carrega consigo o trauma da violência, da ruptura, da perda. Para os que sobreviveram, resta a tarefa de narrar o que aconteceu — mas a memória nunca é neutra. Ela é moldada pelo poder vigente, pelo desejo de esquecimento ou de exaltação. E assim surgem duas versões: a revolução como glória ou como ferida.

Há os que a celebram, que falam dos mártires, das conquistas, da vitória contra o opressor. Constroem monumentos, escrevem livros escolares, criam feriados. A revolução vira mito fundador. Mas há também os que carregam o trauma: os que perderam tudo, os que foram traídos pelos próprios companheiros, os que viram a revolução devorar seus filhos. Para esses, a revolução é um lembrete do que o excesso pode causar — mesmo quando nasce do justo.

Essa disputa de memória é, na verdade, mais uma batalha pelo presente. Quem controla o passado molda o hoje. Por isso, governos revolucionários têm tanto cuidado com a história. Reescrevem, reinterpretam, canonizam certos nomes e apagam outros. Criam heróis convenientes. A revolução, nesse processo, vira objeto de culto — ou de censura. E o povo, uma vez mais, é convidado a temer: temer esquecer, ou temer lembrar demais.

O que se percebe, no fim, é que a memória da revolução nunca é só lembrança — é arma. Serve tanto para legitimar o novo quanto para impedir que se repita. Mas enquanto a revolução for só memória, seu sentido permanecerá suspenso entre o que foi prometido e o que jamais se cumpriu.

Artigo 3 — O Retorno ao Abismo: Quando a Revolução Vira o Próprio Monstro.

A revolução começa como um grito — termina como um eco. O que era rebeldia vira governo. O que era fúria vira papel timbrado. E, aos poucos, aquele corpo coletivo que incendiava ruas começa a se acomodar nas cadeiras do poder. Mas poder exige estabilidade. E estabilidade exige controle. Então, o novo regime olha para o povo — e teme. Teme que façam com ele o mesmo que ele fez com os antigos donos do trono. Teme a nova geração que já não se lembra do porquê da luta. Teme a liberdade que um dia disse defender.

E assim, pouco a pouco, a revolução vira reflexo do que jurava combater. Os tribunais populares se tornam cortes inquisitoriais. Os slogans de liberdade viram dogmas inquestionáveis. A linguagem do povo é substituída pela linguagem do Estado. E aquele espírito libertador é sufocado pelo peso da administração. Pior: em muitos casos, o novo regime se torna ainda mais opressor do que o anterior, porque agora tem legitimidade popular. O medo volta — mas agora como política de Estado. Quem questiona é acusado de trair a revolução. Quem denuncia é silenciado. Quem pensa diferente é eliminado — por amor ao novo mundo.

Esse retorno ao abismo não é falha moral de alguns líderes. É um vício estrutural da lógica revolucionária que não passa pelo crivo da autocrítica. Quando a revolução acredita que ela mesma é a verdade, todo o resto vira erro. E todo erro precisa ser corrigido. Nem que para isso se precise repetir o terror que antes era odiado.

No fim, a revolução, sem vigilância interna, sem humildade diante da complexidade humana, corre o risco de se tornar o monstro que combateu. E o povo, de novo, volta ao ponto inicial: com medo. Medo de sonhar, medo de falar, medo de esperar. O ciclo se fecha. E talvez, em algum canto esquecido, um novo grito esteja sendo gestado.

Conclusão — O Círculo do Medo.

Toda história de revolução começa no medo — e quase sempre termina nele. O que muda é só a direção da corrente. Primeiro, teme-se o poder. Depois, teme-se a sua ausência. Por fim, teme-se o novo poder que nasceu da ruptura. O medo é o solo onde se planta o grito e, ao mesmo tempo, a corrente que prende quem ousou gritar. Por isso, nenhuma revolução está completa enquanto não enfrentar seu próprio reflexo. Porque o inimigo externo é fácil de nomear — o difícil é reconhecer quando ele se instala por dentro.

O medo do oprimido é humano, visceral, legítimo. Mas quando esse medo se converte em ódio, quando sua força é usada sem freio, ele devora tudo. A revolução sem freio vira purga. A purificação vira caça. E o novo sistema, para se proteger, se fecha. O ideal se petrifica. E o que antes era movimento vira estátua. O medo, que era motor da mudança, volta a ser guardião da ordem. De novo, a roda gira. E de novo, o silêncio volta a pesar.

Mas o medo não é só veneno. Ele também é sintoma. Ele revela a tensão viva entre aquilo que o ser humano suporta e aquilo que deseja. Onde há medo, há sinal de que algo pulsa. O perigo está em ignorá-lo — ou em usá-lo como tranca. O que sustenta uma sociedade livre não é a ausência de medo, mas a consciência de que ele nunca pode ser a última palavra.

Uma revolução verdadeira não é aquela que toma o poder, mas a que recusa ser tomada por ele. Ela só se completa quando rompe o ciclo, quando não precisa mais do medo para existir. Isso exige maturidade coletiva, coragem individual, e um tipo de vigilância que não olha só para fora, mas para dentro. Porque é sempre aí que o novo tirano se esconde — não nas sombras do sistema, mas nos cantos escuros da alma.

Talvez um dia o homem aprenda a transformar o medo em sabedoria. Talvez. Até lá, seguirá girando — do medo à revolta, da revolta ao poder, do poder ao medo. E enquanto girar, continuará sendo governado por aquilo que nunca soube compreender: o próprio abismo.

Capítulo IV - O Marxismo e a estrutura do medo.

A Promessa da Libertação: o Glamour como Imagem de Salvação.

Toda grande ideologia nasce da fome por sentido. E o marxismo, como mostrado por Kołakowski, não foi exceção: ele surgiu num mundo mergulhado em contradições brutais, onde a ascensão da técnica e da produção contrastava violentamente com a miséria das massas e a alienação do trabalhador. Mas não foi apenas a economia que gerou o marxismo. Foi o medo — o medo de permanecer escravizado a uma ordem cega, de ser triturado pelas engrenagens de um sistema que transformava homens em cifras, tempo em lucro e corpos em mercadoria. A proposta de Marx se apresentou então como um antídoto total: uma teoria que não apenas explicava o mundo, mas prometia superá-lo, com a segurança de uma ciência e a chama de uma profecia.

É nesse ponto que reside o glamour do marxismo nascente. Ele não era simplesmente mais uma teoria política entre outras. Ele reivindicava para si a totalidade — o direito de dizer o que é o homem, por que sofre, de onde vem sua alienação e como ela poderá ser superada. Como Kołakowski observa com precisão, essa ambição metafísica camuflada em linguagem científica o transformou numa espécie de religião secular, mas com uma particularidade decisiva: não havia transcendência, nem céu, nem inferno — tudo estava inscrito na própria história. A libertação não viria de um ato divino, mas de uma maturação das forças produtivas. O Juízo Final estava agendado para o fim da luta de classes, e o Messias vestia o uniforme sujo do proletário fabril.

Essa transfiguração do medo em promessa é um traço fundamental do pensamento político moderno. O marxismo não elimina o medo — ele o ressignifica. Onde havia medo da miséria, da fome, do desemprego, da inutilidade, ele planta a certeza de que tudo isso será superado de forma inevitável. Não por bondade, mas por necessidade histórica. O glamour da doutrina não está em sua beleza — está em sua segurança. O marxismo promete que a história tem uma direção, que a dor tem uma causa objetiva, e que a libertação é certa, desde que se siga o roteiro. O pavor do caos é substituído pela fé na ordem imanente.

Mas essa promessa vem com um custo: a abdicação do trágico. O marxismo, ao se erguer como doutrina da libertação total, renuncia à ideia de que o sofrimento possa ser parte constitutiva da condição humana. Substitui o enigma pelo esquema, o espanto pelo cálculo, a angústia existencial pela certeza revolucionária. A dor, agora, é apenas um sintoma transitório da luta — e não mais uma dimensão estrutural do ser. Essa recusa da tragédia, que Kołakowski detecta como traço profundo do pensamento marxista, é justamente o que o torna perigoso: ao prometer a redenção absoluta, ele se fecha à complexidade da existência. E quem se fecha à complexidade, cedo ou tarde, precisará forçar o real a caber na própria teoria.

O glamour inicial do marxismo está, portanto, na coragem de diagnosticar o mal-estar moderno com linguagem clara, vigorosa e concreta. Mas também está em sua tentação totalitária: a vontade de explicar tudo, prever tudo, resolver tudo. Ao se apresentar como ciência da história, o marxismo funda um novo tipo de fé — uma fé que não admite dúvida, pois toda dúvida é vista como desvio burguês ou resquício de alienação. E assim, o medo — que fora denunciado como instrumento da opressão — é reintroduzido como ferramenta da doutrina. Não mais o medo do patrão, mas o medo de não estar à altura do processo histórico. Não mais o medo da morte física, mas o medo da irrelevância política.

O brilho da promessa marxista foi intenso. Iluminou revoluções, inspirou gerações, deu voz aos esquecidos. Mas, como toda luz que brilha demais, também cegou. Cegou para o risco de absolutização, para a tentação da pureza, para o uso da violência em nome de um bem maior. Kołakowski, com sua leitura amarga mas honesta, nos lembra que não há doutrina redentora sem sombra. E que o medo, mesmo travestido de esperança, continua sendo o mesmo: a recusa da incerteza, a ânsia por controle, o desespero diante de um mundo que nunca se encaixa perfeitamente em nossas fórmulas.

O marxismo, enquanto promessa, não falhou por falta de ideal — falhou por excesso de certeza. E talvez, no fim, a verdadeira libertação não esteja em abolir o medo, mas em reconhecê-lo sem ilusões. Em aceitar que o homem, mesmo que lute por justiça, continuará sendo atravessado por contradições que nenhuma história redimida poderá apagar. E que a dignidade não está em vencer o medo com esquemas, mas em enfrentá-lo com consciência. Isso, o marxismo nunca pôde aceitar. E por isso, seu brilho inicial traz, desde o início, o traço sombrio da ruína.

A Máquina da Verdade: Ortodoxia como Nova Prisão.

Se o primeiro gesto do marxismo foi o de prometer libertação ao homem oprimido, seu segundo ato histórico consistiu em exigir que essa libertação ocorresse sob condições absolutamente determinadas — tanto na teoria quanto na prática. A doutrina que nasceu com pretensão crítica e universalista rapidamente se converteu, como demonstra Kołakowski, numa ortodoxia fechada, militante, dogmática, impermeável a autocrítica. O que era anúncio de emancipação virou sistema de controle. A filosofia foi substituída pela vigilância. A dúvida, motor da razão, transformou-se em desvio. E o pensamento, antes vivo, foi encapsulado numa máquina onde o verdadeiro já não precisava ser pensado, apenas repetido.

É importante compreender que essa transição não foi um acidente nem uma corrupção externa. Ela é consequência interna da própria estrutura do marxismo. Ao atribuir à história um curso necessário e ao partido revolucionário a missão de encarnar essa necessidade, o marxismo criou uma lógica em que o questionamento se torna não apenas inútil, mas criminoso. Toda divergência é suspeita de trair o futuro. Toda hesitação é vista como sabotagem do progresso. E todo o aparato teórico, que antes se apresentava como instrumento de análise, passa a funcionar como tribunal: sua função não é mais compreender a realidade, mas enquadrá-la — ou forçá-la a caber.

Kołakowski identifica esse momento com a ascensão de Lenin, e sobretudo com o modelo do partido como vanguarda absoluta. Nesse modelo, a verdade deixa de ser uma construção histórica aberta, sujeita a correções e aprendizados, e passa a ser algo que já foi conquistado — e que agora precisa apenas ser defendido. O partido, então, se torna o detentor da consciência correta, o intérprete legítimo das leis do devir, o guardião da ortodoxia. Todo o resto — sejam intelectuais independentes, movimentos autônomos, ou mesmo proletários organizados de modo não alinhado — passa a ser lido como ameaça. A máquina da verdade não admite vozes múltiplas. Ela só funciona se repetir a si mesma. E, como toda máquina de poder, ela precisa de inimigos.

É nesse ponto que a liberdade, que era a promessa original, é substituída pela disciplina. O corpo revolucionário se militariza. A linguagem se estreita. A pedagogia vira doutrinação. E o medo, que antes era o combustível da revolta, passa a ser o cimento da ordem. Agora é o medo de errar, de pensar fora do eixo, de não corresponder ao ideal. O revolucionário se transforma em burocrata, o militante em censor, o camarada em delator. O medo retorna — mas de forma mais sutil, mais profunda. Já não é imposto de fora: é internalizado. E por isso é mais eficiente. O sujeito vigia a si mesmo em nome da causa.

A história do marxismo, conforme traçada por Kołakowski, não é apenas a história de uma doutrina que degenerou. É a história de uma racionalidade que, ao pretender ser total, perdeu o contato com a realidade. Quando a teoria pretende substituir a experiência, a linguagem vira ritual. Quando o pensamento já não pode errar, o erro vira crime. E quando a crítica é proibida, até o verdadeiro se torna suspeito. É isso que a ortodoxia marxista realiza: não apenas a supressão da dissidência, mas a destruição da própria possibilidade de pensamento autêntico.

Esse processo não difere, em sua estrutura psíquica, daquilo que descrevemos nos textos anteriores como a psicologia do novo regime. A revolução, uma vez vitoriosa, precisa manter-se. E para isso, precisa controlar o tempo, os símbolos, as palavras. O mesmo medo que antes impulsionava a mudança, agora garante a estabilidade. O revolucionário, que antes derrubava ídolos, agora exige reverência. A máquina se fecha. E o que era esperança vira prisão.

Mas não uma prisão visível — e sim uma prisão da linguagem, da memória, da interpretação. A ortodoxia marxista não se contentou em proibir. Ela reescreveu. Releu Marx à luz das necessidades do poder. Reteve o que servia, apagou o que atrapalhava. Criou um cânone. E, com isso, matou o espírito vivo da crítica que fundou a doutrina. Esse é o drama que Kołakowski expõe sem indulgência: o marxismo, ao tornar-se Estado, teve que escolher entre verdade e estabilidade. E escolheu a estabilidade. Não por covardia — mas porque já estava programado para isso desde sua concepção totalizante.

No fim, a máquina da verdade deixou de buscar a realidade e passou a fabricar realidades que justificassem sua existência. E o medo, mais uma vez, deixou de ser um sintoma da opressão — virou motor do sistema. O mesmo medo que, no início, denunciava as injustiças do capital, agora sustentava a lógica do partido. A roda girava no mesmo eixo. Só mudavam os nomes das vítimas.

Dissidência e Heresia: A Luta Contra o Medo Reciclado.

Toda ortodoxia, por mais sólida que pareça, vive sob ameaça. Mesmo quando impõe silêncio, mesmo quando vigia todos os gestos, mesmo quando doutrina desde a infância, ela sabe — no fundo — que basta um sopro de pensamento livre para que suas fundações tremam. É nesse ponto que a heresia se torna insuportável: não porque seja forte, mas porque revela a fragilidade da verdade imposta. E é nesse cenário que se inserem os dissidentes do marxismo, descritos por Kołakowski como os últimos a tentar salvar a alma de uma doutrina que já havia vendido sua linguagem ao poder. Trotsky, Rosa Luxemburgo, Lukács, Gramsci, Marcuse, Sartre — cada um, a seu modo, enfrentou o medo reciclado do sistema que havia prometido libertação, mas que agora prendia com algemas mais sutis.

A dissidência, no contexto do marxismo institucionalizado, não é apenas um ato político — é um risco existencial. Porque pensar fora da linha oficial significa colocar em xeque toda a estrutura de autoridade, toda a cadeia de legitimidade que sustenta o poder do partido. O herege, por isso, não é apenas um opositor: é uma ameaça ontológica. Sua existência prova que outra leitura é possível, que outro caminho pode ser imaginado. E o sistema, fundado na crença de que já alcançou a verdade histórica, não pode tolerar essa possibilidade. Assim, as heresias marxistas são sempre combatidas com o mesmo fervor com que as religiões perseguem apóstatas: com desprezo, com censura, com aniquilação moral e, não raro, física.

Kołakowski expõe com nitidez essa contradição: o marxismo, que se ergueu contra o dogma, contra a autoridade imposta, contra a paralisia do pensamento, tornou-se uma igreja sem transcendência, mas com santos, mártires e inquisidores. E aqueles que ousaram reformá-la de dentro — como Trotsky — terminaram expulsos ou eliminados, não por representarem o capitalismo, mas por representarem o incômodo retorno da liberdade crítica. O medo, já não mais visível, tornava-se estrutural. E os dissidentes, ainda que em nome do mesmo ideal de emancipação, eram tratados como inimigos da história. Era o mesmo medo descrito nos artigos anteriores: não mais o medo de opressores externos, mas o medo do próprio espelho.

É revelador que as dissidências mais profundas dentro do marxismo tenham se dado no campo da filosofia e da cultura. Lukács buscou resgatar a consciência como categoria essencial; Gramsci deslocou a revolução para o campo da hegemonia cultural; Marcuse desconstruiu o mito da racionalidade tecnológica; Sartre procurou um marxismo existencial, centrado na liberdade e na contingência. Todos esses movimentos revelam o incômodo com a fossilização da teoria, com a morte da dialética. Eles queriam, cada um à sua maneira, devolver à doutrina a capacidade de pensar — e com isso, libertá-la da máquina dogmática em que se tornara.

Mas esse esforço, ainda que intelectualmente vigoroso, carregava um dilema insolúvel: ao tentar reformar o marxismo, permaneciam presos à sua promessa de totalidade. Tentavam corrigir a teoria sem renunciar ao impulso que a fez ortodoxia. E por isso, mesmo nas tentativas mais sofisticadas, como as da Escola de Frankfurt, nota-se uma tensão latente: a crítica à razão instrumental convive com a nostalgia por uma razão redentora. A denúncia da opressão cultural convive com a esperança de que, enfim, a consciência crítica triunfe. O desejo de revolução persiste — ainda que se tenha perdido a fé na revolução.

O mais trágico, como sugere Kołakowski, é que essas vozes dissidentes, ao recusarem o medo, não encontraram terreno fértil para florescer. Foram marginalizadas, instrumentalizadas ou dissolvidas na babel da Nova Esquerda. A luta contra o medo reciclado fracassou, não porque fosse fraca, mas porque já não havia mais solo comum onde a crítica e a esperança pudessem coexistir. O marxismo, enquanto força histórica concreta, já estava esvaziado. Restava a memória — e os fragmentos.

Neste ponto, a analogia com os ciclos psicológicos tratados nos artigos anteriores torna-se ainda mais evidente. Assim como na psique individual o medo não desaparece, mas muda de forma, também no corpo político o medo do antigo regime é rapidamente substituído pelo medo de perder o novo. A dissidência, portanto, revela o que o sistema se recusa a ver: que o medo não foi superado, apenas reformulado. E enquanto isso não for reconhecido, nenhuma revolução poderá de fato libertar. Porque a liberdade que teme a crítica não é liberdade — é apenas o velho autoritarismo com nova roupagem.

Kołakowski, ao narrar a história dos dissidentes, não os santifica. Mas também não os reduz a notas de rodapé. Ele vê neles a tentativa, por vezes desesperada, de impedir que o marxismo se tornasse exatamente aquilo que prometera destruir. É uma luta que, mesmo derrotada, preserva algo essencial: a dignidade do pensamento. E talvez seja nisso que ainda resida alguma forma de esperança — não na revolução triunfante, mas na coragem de pensar contra o medo, mesmo quando o medo veste as cores da justiça.

A Morte do Dogma: A História como Abismo sem Fim.

Há um momento em que o dogma, mesmo cercado por muros, mesmo sustentado por armas, mesmo reiterado por slogans, começa a ruir. Não porque tenha sido derrotado por inimigos externos, mas porque já não encontra dentro de si as razões para continuar acreditando em si mesmo. O marxismo, enquanto projeto total de explicação e transformação do mundo, chegou a esse ponto no século XX. Após revoluções, guerras, expurgos, reinterpretações e disfarces, aquilo que antes era certeza passou a ser repetição vazia. A história, que era o cenário prometido da libertação, tornou-se abismo. E, como Kołakowski insinua com rigor e amargura, aquilo que prometera abolir o medo terminou engolido por ele.

A morte do dogma não ocorre num instante. Ela é lenta, progressiva, subterrânea. As fórmulas continuam a ser recitadas, os manuais continuam a ser impressos, os nomes dos fundadores continuam a ser venerados. Mas algo já se partiu: a relação entre a teoria e a realidade. Quando os fatos desmentem sistematicamente as previsões, quando os regimes se tornam caricaturas violentas do que um dia foi utopia, quando a linguagem já não toca a experiência — então o dogma começa a implodir. E o que sobra, no fim, não é um novo caminho, mas um vazio. Um silêncio desconfortável. Uma ausência de sentido onde antes tudo era promessa.

Kołakowski, ao mapear esse colapso, não o trata como mera falência política. Ele vai mais fundo: o que morre com o marxismo ortodoxo é a ilusão de que a história pode ser domada, de que a realidade humana pode ser prevista, de que a libertação pode ser programada. Morre a crença num sujeito coletivo redentor, num fim necessário, numa racionalidade histórica que absorve todas as contingências. Morre, enfim, a esperança de que a dor humana possa ser abolida por decreto. E com essa morte, o que retorna é aquilo que o marxismo tentou expulsar desde o início: o trágico, o incerto, o incontrolável.

É aqui que a articulação com os textos anteriores atinge sua tensão máxima. No primeiro capítulo falamos do medo como fundação da ordem. No segundo, como motor da ruptura. No terceiro, como retorno mascarado no novo regime. E agora, no colapso do dogma marxista, vemos o medo em sua forma mais pura: o medo de que não haja redenção, de que a história não salve ninguém, de que o sofrimento não tenha função, de que a liberdade seja vertigem e não promessa. O que colapsa não é só uma doutrina — é o consolo que ela oferecia. E o homem, novamente, se vê nu diante do tempo.

Mas esse retorno ao abismo não precisa ser interpretado como derrota. Kołakowski, embora crítico implacável do marxismo, nunca cede ao cinismo. Ele entende que a necessidade de sentido, de justiça, de superação da exploração continua pulsando. Mas o caminho, diz ele, talvez não esteja nas teorias totalizantes, mas na vigilância constante contra as tentações do absoluto. O dogma caiu porque se julgava invulnerável. Porque confundiu ciência com destino, política com salvação, disciplina com verdade. Sua morte, por mais dolorosa que seja, pode abrir espaço para um pensamento mais modesto, mais atento à complexidade humana, mais resistente ao medo.

A história, então, volta a ser o que sempre foi: um campo de possibilidades abertas, onde nada está garantido, onde a liberdade exige responsabilidade e onde o mal não pode ser extirpado por estrutura alguma. Não há mais mapa, só caminhada. E isso exige coragem. Uma coragem que não se apoia em profecias, mas que enfrenta a incerteza com lucidez. O marxismo, ao tentar suprimir o medo, o multiplicou. Talvez a tarefa do pensamento seja outra: não eliminar o medo, mas aprender a atravessá-lo sem prometer o impossível.

Assim, o fim do marxismo como dogma não é o fim da luta por justiça. Mas é o fim da ilusão de que justiça e verdade podem ser monopolizadas por qualquer sistema. O abismo está de volta. Mas agora, talvez, possamos encará-lo sem as correntes do absolutismo. Sem precisar transformar nossas esperanças em prisões. Sem precisar matar a dúvida em nome do futuro. Kołakowski nos oferece, com essa reflexão, não apenas uma crítica histórica — mas uma advertência ética: toda doutrina que se quer redentora, se não reconhecer a fragilidade que habita o homem, terminará se tornando apenas mais uma forma do medo. E o medo, como sabemos, sempre retorna. A questão é se o enfrentamos — ou se, mais uma vez, o adoramos.







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