Capítulo Único – O Véu da Moderação: Entre a Ignorância e o Autoengano -
Índice dos Artigos:
1. A Cena da Sensatez: o Cenário Político, o Corpo Jovem e a Velha Sabedoria
2. Definir o Indefinido: o Jogo Dialético e as Fugas do Conceito
3. O Espelho da Alma: A Sofrosyne como Autoconhecimento
4. O Abismo da Ignorância: Quando Saber que Não se Sabe é Tudo que Resta.
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Artigo 1 – A Cena da Sensatez: o Cenário Político, o Corpo Jovem e a Velha Sabedoria.
O diálogo Cármides inicia-se sob o pano de fundo de uma Atenas dilacerada. Não se trata apenas de uma cidade em guerra externa, mas de uma pólis que já se encontra cindida interiormente, vacilante entre o passado aristocrático e o presente democrático que ainda não encontrou sua forma. Sócrates retorna da campanha de Potideia e mergulha em um espaço ambíguo — o ginásio — lugar de formação física e, idealmente, também espiritual. Mas o que ele encontra é uma assembleia silenciosa e contemplativa, quase hipnotizada, em torno da beleza do jovem Cármides. O corpo do rapaz não é neutro: ele funciona como um símbolo vivo da kalokagathia, a antiga união entre o belo e o bom. Contudo, Sócrates não se deixa enganar pela aparência; sua filosofia começa ali onde os olhos terminam.
O jovem é apresentado por Critias, seu parente e tutor, cuja presença compromete desde o início a neutralidade da investigação. Não se trata apenas de um laço familiar, mas de uma herança ideológica: Critias, já nessa época, figura como membro da elite intelectual sofística e irá, no futuro, compor o núcleo dos Trinta Tiranos. A sophrosyne, portanto, é lançada ao centro de uma disputa não apenas conceitual, mas política: o que significa moderação quando quem a invoca são os que desejam o controle do Estado por meio da técnica, do cálculo e da repressão? Sócrates sabe que não há resposta possível fora do contexto de quem interroga. O diálogo não é sobre a virtude em abstrato, mas sobre quem a enuncia, com que intenção e sob que horizonte de verdade.
A moderação, no universo grego, é uma das colunas do mundo ordenado. Ela se contrapõe à hybris, à desmesura que destrói tanto o homem quanto a cidade. No entanto, quando Sócrates indaga Cármides sobre o que é essa tal sophrosyne que todos dizem ele possuir, a estrutura mesma da virtude começa a ruir. A beleza do corpo, que evocava harmonia, não garante por si só a ordenação da alma. Surge a tensão ontológica entre physis e ethos: nem toda bela natureza se transforma em caráter virtuoso, e nem todo caráter é obra da natureza. A educação, então, aparece como território incerto, pois os modelos tradicionais — o exemplo dos mais velhos, a repetição dos costumes, o treino militar — não são suficientes para forjar a verdadeira moderação.
A cena inicial, ao articular corpo, política e pedagogia, desenha a armadilha em que o diálogo inteiro será enredado. A juventude, representada por Cármides, é ao mesmo tempo promessa e risco. A beleza e o pudor inicial do rapaz mascaram uma ignorância profunda sobre si mesmo. Os presentes o admiram, mas tal admiração é suspeita: ela revela o eros não domado, o desejo por um ideal que talvez já não habite mais a cidade. Ao evocar o nome de Cármides e envolvê-lo em um exame rigoroso, Sócrates desloca a atenção coletiva do visível para o invisível, do corpo para a alma, do consenso superficial para a dúvida radical. A filosofia começa, nesse contexto, como um corte: rompe-se o encantamento para que se inicie a investigação. Mas tal ruptura não é sem dor — ela desvela que o que se pensava possuir (a moderação, o bom senso, a justeza da medida) talvez nunca tenha sido compreendido.
É nesse momento inaugural que a aporia já se anuncia: o que todos elogiam talvez seja apenas uma máscara. A sophrosyne, longe de ser uma posse, é uma tarefa. A cidade que confia na juventude para salvar-se, e na tradição para educá-la, será confrontada com a possibilidade de que nenhuma dessas forças, por si, seja suficiente. A filosofia, no Cármides, não oferece a salvação — ela expõe o abismo. E é nesse abismo que, com ironia e rigor, Sócrates inicia seu ofício.
Artigo 2 – Definir o Indefinido: o Jogo Dialético e as Fugas do Conceito.
O segundo movimento do Cármides inaugura propriamente o método socrático, no qual a definição torna-se não apenas uma tarefa intelectual, mas um campo de prova do próprio espírito. A questão da sophrosyne, aparentemente simples — “o que é moderação?” —, é colocada como desafio ao jovem Cármides, cuja beleza e recato já são tomados, pelos que o cercam, como sinais da posse da virtude. Sócrates, porém, não se satisfaz com aparências nem com testemunhos: ele exige a essência, o ti esti, aquilo que define a coisa em si mesma, e não apenas seus efeitos ou manifestações. Começa, então, o percurso negativo da dialética.
A primeira definição de Cármides — “moderação é quietude” — revela a confusão entre o comportamento externo e a substância interna da virtude. Sócrates desmonta a resposta ao demonstrar que, em muitas situações, agir com rapidez, vigor ou intensidade pode ser mais adequado do que permanecer calmo e passivo. A moderação, portanto, não pode ser reduzida a uma postura estática. O problema aqui é mais profundo do que parece: a linguagem moral vulgar tende a confundir virtude com sua aparência fenomênica, esquecendo que o bem, enquanto forma inteligível, não se esgota nas imagens que o representam.
A segunda definição — “moderação é pudor” — transfere a virtude ao campo dos afetos. Mas o pudor, como emoção, está sujeito à variação e ao erro. Pode-se sentir vergonha do que é bom ou deixar de sentir vergonha do que é mau. Além disso, o pudor é consequência da sophrosyne, não sua causa. A falha dessa definição abre uma fissura ontológica fundamental: a moderação, se for virtude, deve ser princípio ordenador, e não mero efeito passivo de condicionamento social ou psíquico. O conceito, novamente, escapa — como se a virtude só pudesse ser conhecida por seus reflexos, nunca por sua substância.
A terceira tentativa — “moderação é fazer o que é próprio de cada um” — parece, à primeira vista, mais promissora. Ecoa a fórmula platônica que será retomada mais tarde em obras como A República, na qual a justiça é cada um ocupar o seu lugar e cumprir sua função. Mas aqui, no Cármides, a definição colapsa em circularidade e ambiguidade. Sócrates insiste: para sabermos o que é “fazer o que é próprio”, precisamos primeiro saber o que é o próprio. Mas isso pressupõe já conhecer a natureza e os limites do sujeito. Como falar de moderação como “cuidar do que é seu” sem antes ter determinado quem somos, qual nossa natureza e finalidade? A ignorância sobre o homem torna impossível qualquer determinação moral sólida.
A quarta definição — sugerida por Critias, em sua intervenção intelectualista — eleva a discussão: sophrosyne seria uma forma de episteme, uma ciência de si mesmo. Aqui, o problema assume contornos decisivos, pois Sócrates conduz a análise até o ponto em que a definição ameaça ruir sobre seu próprio peso lógico. Se a moderação é ciência de si, ela deve ser um saber reflexivo. Mas o que significa uma ciência que tem a si mesma por objeto? Como é possível um saber que sabe de si mesmo enquanto sabe? Sócrates examina a possibilidade de uma ciência da ciência — e encontra um paradoxo. Tal saber absoluto não apenas é logicamente improvável, como parece inútil: uma ciência que sabe de si mesma, mas nada sabe das coisas particulares (medicina, geometria, política), é estéril para a vida. O conceito implode.
Esse movimento dialético não é caprichoso. Ele revela uma verdade filosófica central: os conceitos morais não são blocos definidos que possam ser simplesmente transmitidos; são tensões entre a forma e a experiência, entre o universal e o singular. A sophrosyne, tal como aparece no diálogo, comporta uma duplicidade estrutural: ela é buscada como algo simples, mas revela-se múltipla; é desejada como guia, mas escapa como névoa. A tentativa de fixá-la em uma definição é, portanto, o caminho pelo qual sua natureza escorregadia se manifesta.
A cada etapa, a investigação socrática desfaz não apenas a resposta dada, mas o próprio solo sobre o qual ela repousava. A linguagem comum, os hábitos da cidade, a tradição pedagógica, todos são atravessados pela lâmina do logos. Mas Sócrates não destrói por gosto: ele quer limpar o terreno, libertar a mente da falsa segurança dos conceitos herdados. A moderação que emerge desse processo já não é uma definição positiva, mas uma clareira aberta pela negação. No centro da virtude moral, Sócrates localiza a necessidade da filosofia. A verdadeira moderação, talvez, não seja um saber possuído, mas a disposição permanente para investigar o que ainda não se sabe — um estado de tensão e vigilância interior que resiste tanto à dissolução passional quanto ao dogmatismo técnico.
Artigo 3 – O Espelho da Alma: a Sophrosyne como Autoconhecimento.
Quando as definições utilitárias de sophrosyne se mostram insuficientes, Sócrates desloca o eixo da investigação para o preceito délfico — gnôthi seautón. A mudança não é meramente retórica; ela insinua que toda virtude digna do nome deve fundar-se numa operação reflexiva pela qual o sujeito torna-se simultaneamente observador e observado. A moderação deixa de ser um comportamento regulado de fora por normas ou tradições e assume a forma de um incessante retorno da consciência sobre si mesma. O espelho, metáfora decisiva no diálogo, aponta para a estrutura especular da alma: ver-se é duplicar-se, e nessa duplicação a psique descobre suas desproporções internas, medindo-as pela razão.
Sócrates propõe que a verdadeira sophrosyne só surge quando a parte racional governa o desejo e o thymos sem aniquilá-los, ordenando-os segundo a medida do bem. Tal ordem, porém, não é um simples comando vertical; exige um conhecimento preciso da potência e do limite de cada parte. Conhecer-se, nesse contexto, é mapear as forças que compõem a alma e instaurar entre elas uma dialética constante. A moderação é, pois, um ato de ciência prática: ela não suprime a multiplicidade pulsional, mas a integra numa hierarquia que se revisa continuamente. Assim, a alma moderada não é um bloco homogêneo, mas uma orquestra afinada em que a razão, como maestro, mantém a tensão necessária para que a música da vida não se converta em ruído.
Essa virada epistemológica implica uma crítica radical à educação ateniense. O treinamento físico, a poesia moralizante, as leis cívicas — tudo isso revela-se impotente se não conduzir o indivíduo a interrogar a própria disposição interna para a verdade. A sophrosyne, nesse sentido, torna-se condição de possibilidade da filosofia: sem a disposição de recolher-se em exame minucioso, nenhum diálogo produz conhecimento, apenas reproduz opiniões herdadas. O autoconhecimento é, então, simultaneamente ético e gnosiológico: quem não sabe quem é não pode querer corretamente, e quem deseja de modo desordenado corrompe a cidade, pois projeta no espaço público a sua própria anarquia interior.
A imagem especular, todavia, encerra um perigo: o narcisismo intelectual. O sujeito pode confundir o ato de olhar-se com a posse da verdade sobre si. Para evitar esse engano, Sócrates insiste na dimensão dialógica do espelho: a alma só se reflete adequadamente no olho de outra alma dedicada à busca da medida. A sophrosyne requer alteridade; ela transforma a convivência em laboratório moral, onde cada interlocutor serve de superfície polida para o exame recíproco. Desse modo, o conhecimento de si deixa de ser introspecção solitária e converte-se em prática comunal, fortalecendo laços políticos baseados não na dominação, mas na co-investigação do justo.
Por fim, a identificação da moderação com o autoconhecimento desloca o centro da ética grega. Não basta agir em conformidade com a lei ou o costume; é preciso que a lei esteja interiorizada como medida inteligível, e que o costume seja filtrado pela consciência crítica. Só então a sophrosyne cumpre sua vocação de ponte entre a ordem da pólis e a ordem da alma. O diálogo sugere, portanto, que a verdadeira estabilidade política não se sustenta em instituições externas, mas no cultivo íntimo de cidadãos capazes de medir-se a si próprios. Tal é o grande paradoxo que emerge: a moderação só se realiza quando abandona toda aparência de tranquilidade e se converte em inquietação autognóstica, numa vigilância incessante que, longe de paralisar o desejo, o orienta para o bem que ainda deve ser descoberto.
Artigo 4 – O Abismo da Ignorância: Quando Saber que Não se Sabe é Tudo que Resta.
O diálogo chega ao seu ápice não com uma conclusão, mas com a exposição nua da ignorância. Não se trata de um fracasso argumentativo ou de uma limitação acidental: a aporia final do Cármides é a expressão mais rigorosa do método socrático quando levado às últimas consequências. Sócrates não concede aos interlocutores – nem a si mesmo – o consolo de uma resposta provisória ou de uma definição operatória. A moderação, como conceito, desfaz-se entre os dedos, e essa dissolução não é negativa no sentido moderno, mas pedagógica no mais alto grau: ela revela que o verdadeiro saber moral começa pelo reconhecimento daquilo que não se sabe.
Cármides, o jovem belo e promissor, é confrontado com um espelho que não reflete seu rosto, mas sua ignorância. Sua moderação aparente, feita de gestos controlados e fala contida, revela-se um verniz social que esconde o vazio interior. Quando instado a pensar, tropeça. Sua sensatez era um hábito, não uma consciência. A lição é severa: não basta parecer moderado, é necessário compreender o que se faz e por que se faz. A virtude não é um reflexo da educação recebida, mas uma construção que exige conversão da alma para si mesma.
Mais grave ainda é a figura de Critias, cuja inteligência o capacita a oferecer definições mais refinadas, mas cuja vaidade intelectual e ambição política desvirtuam o próprio espírito da investigação. Quando ele propõe que sophrosyne é uma ciência que conhece a si mesma, toca um ponto essencial, mas logo distorce sua potência ao tentar instrumentalizá-la como domínio. Sua intervenção ilustra a corrupção sutil do saber: o saber buscado não por amor à verdade, mas como meio de controle — do outro, da cidade, da história. A moderação, quando manipulada como técnica de poder, perde sua essência ética e degenera em cálculo frio. Sócrates, ao desmascarar essa pretensão, não apenas desmonta a definição, mas denuncia a intenção subjacente: a sophrosyne de Critias não é medida do ser, mas medida da dominação.
Nesse cenário, Sócrates não se apresenta como mestre no sentido tradicional, mas como um catalisador da crise. Sua maior virtude, paradoxalmente, é confessar sua ignorância. Mas não se trata de uma ignorância cínica ou resignada. Ao contrário, é uma ignorância ativa, que impulsiona a alma para o alto, pois sabe que não saber é, em si, já um tipo superior de saber. Quem ignora com consciência está mais próximo da verdade do que aquele que supõe saber o que não entende. Esse é o paradoxo central da filosofia socrática: reconhecer-se ignorante é fundar a possibilidade mesma do conhecimento.
O efeito ético e político dessa posição é radical. A cidade, que até então acreditava que virtudes como a moderação poderiam ser ensinadas, impostas ou imitadas, descobre-se carente de fundamentos. Não há sophrosyne enquanto o indivíduo não reconstrói em si, desde o chão da ignorância, a arquitetura da alma racional. Nenhuma lei, nenhum regime, nenhum pedagogo poderá substituí-la. A moderação é, assim, deslocada do plano externo para o plano ontológico: ela é a medida interna da alma que se mede a si mesma. Só existe onde há filosofia.
O abismo final não é desespero, mas um novo começo. A aporia não encerra o diálogo como um beco sem saída; ela o abre como uma estrada escura e promissora. O que resta ao fim é a disposição para continuar perguntando, para persistir na interrogação como forma de vida. A filosofia aparece, então, não como um corpo de doutrinas, mas como disciplina da atenção, prática constante de medição, disposição incessante para o ajuste da alma a um padrão que jamais se deixa possuir plenamente.
A moderação, nesse sentido, é mais que uma virtude — é uma forma de ser que se sustenta no intervalo entre o saber e o não saber, entre o impulso e o juízo, entre o mundo e o logos. O Cármides, ao recusar uma definição final, realiza o mais alto gesto filosófico: mostra que a verdadeira medida é aquela que se busca sem fim, porque é a busca mesma que nos transforma.
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