quarta-feira, 11 de junho de 2025

Profecia - Entre o Véu do Tempo e a Sombra do Presente.

Para qualquer crente que conheça um pouco da tradição, a ideia de profecia ganha um ar de seriedade que não se restringe a apenas um termo com uma definição. Sua concepção se encontra num eixo bem definido entre o ser total — sua possibilidade de antecipar a realidade — e a momentaniedade com que esse ser se manifesta na forma de presente. Dito em outras palavras: profecia é a capacidade de prever o futuro por meio do presente. Ler nas entrelinhas do presente as ações do futuro foi um ato bem documentado ao longo da História. Tivemos, além das profecias oraculares, outras de cunho bíblico e ainda aquelas de natureza política — estas últimas se distanciando das anteriores pelo uso exclusivo da razão humana. Enquanto as primeiras buscavam no elemento que rasgava o véu do tempo, as últimas rasgam o tempo para encontrar o véu — uma completa inversão. Ao longo dessa mesma história, muitas frases ecoaram como proféticas — desde peregrinos no deserto até conselheiros reais profetizando em centúrias. O fato é: todo profeta era um, até que se provasse o contrário. E, tratando-se de profecias, o ônus é sempre posterior. E esse posterior validou muitos que se intitulavam profetas, como também amortizou a crença de muitos em muitos outros. Hoje, a coisa não é diferente. As profecias voltam a tomar conta do imaginário — só que agora não mais nas mãos de peregrinos no deserto ou de conselheiros reais na busca do elemento que constitui a realidade, mas antes na massa, nos manuais acadêmicos ou, como diria o bom e velho Raul, “nos loucos que escrevem nos muros”.

Vamos a alguns exemplos, antes de nos lançarmos num estudo mais apropriado. Vejam vocês: abro um artigo acadêmico e lá está uma profecia — “o Sol se extinguirá em bilhões de anos”. Cansado, fecho as páginas e dou uma olhada por cima do ombro; um homem com uma Bíblia na mão grita em praça pública — “o mundo chegou ao fim”. Cansado disso, ligo a TV — “a sociedade colapsará devido às guerras e à falta de recursos”. Nesses três exemplos, constatamos a profecia surgindo dos porões, na forma desenfreada de uma ruptura com qualquer verdade, servindo, nesse contexto, a um propósito: o medo da alma diante do desconhecido. Ou, na pior das hipóteses, a uma tentativa de controlar o tempo para dele extrair algum propósito. Diante de tudo isso, faz-se necessário um entendimento mais claro acerca do que é a profecia, qual o seu canal de atuação e qual sua funcionalidade última. Portanto, sucumbir à crença de que esta ou aquela palavra é profética precisa ter, em seu julgamento, algum grau de veracidade — comprovação essa que só pode ser dada pela confirmação do fato, o bom e velho fato, que, no fim, é a única coisa capaz de nos dizer se algo é verídico ou não.

Jardel Almeida.

 

ÍNDICE

Título: Profecia: Entre o Véu do Tempo e a Sombra do Presente.
Autor: Antônio Freixo

Capítulo I — A Origem: primeiros passos da profecia.

Artigo 1: A profecia de natureza oracular: entre o êxtase e a ambiguidade do divino
Artigo 2: A profecia de natureza bíblica: o logos que corta o tempo
Artigo 3: A profecia de natureza política: razão e previsão como novo sacerdócio

Capítulo II — O Desenvolvimento: evolução e aceitação dos profetas como mediadores entre o sagrado e o mundano — dos oráculos às cavernas.

Artigo 1: Dos profetas bíblicos aos oráculos gregos: o fio simbólico da revelação
Artigo 2: A validação das massas: do profeta como enviado divino à ciência dos programas de auditório
Artigo 3: Os loucos e suas profecias sem poder de comprovação: entre delírio e ruína

Capítulo III — O Futuro: a dissolução do termo e os rastros da promessa.

Artigo 1: Hoje, todos são profetas: a multiplicação da fala sem autoridade
Artigo 2: Profecias como elemento de alienação e escravidão: o domínio pelo medo do porvir
Artigo 3: A desconstrução do termo: quando tudo é profecia, nada mais o é

Conclusão

A necessidade de um resgate — mas esse deverá vir dos céus.


Capítulo I — A Origem: primeiros passos da profecia.

Artigo 1 — A profecia de natureza oracular: entre o êxtase e a ambiguidade do divino.

Desde os primórdios da civilização, o homem buscou meios de romper a opacidade do tempo. O oráculo, como instância mediadora entre o divino e o humano, surge nesse horizonte como um instrumento paradoxal: ao mesmo tempo em que revela, oculta; ao mesmo tempo em que anuncia, confunde. Na Grécia arcaica, os oráculos — como o de Delfos — não se limitavam à adivinhação, mas operavam como centros político-religiosos em que o logos da polis e o pathos do sagrado se entrelaçavam. A pitonisa, sob estado de transe, pronunciava enigmas cuja interpretação cabia à razão humana, revelando assim o papel ativo do intérprete no processo profético.

Platão, em seu diálogo Fédon, alude ao caráter ambíguo da linguagem oracular ao afirmar que “os deuses falam por imagens e enigmas”, indicando que o acesso à verdade não é direto, mas simbólico. É uma linguagem cifrada do ser. Já em Teeteto, ao tratar da alma que se eleva no conhecimento, o filósofo grego se aproxima da ideia de que o verdadeiro profeta não é aquele que apenas prevê, mas aquele que, ao tocar o divino, é capaz de ver o tempo de forma desdobrada.

A estrutura das profecias oraculares funda-se, assim, em três pilares: o mediador em êxtase, o tempo como véu a ser rasgado e a linguagem como enigma. É o que Mircea Eliade identificará como a “suspensão do tempo profano”, um instante vertical em que o eterno toca o histórico (O Sagrado e o Profano, 1957). A profecia, nesse caso, não é uma projeção futura, mas uma irrupção do eterno no tempo.

Esse modelo oracular será, mais tarde, tensionado por outras formas proféticas, como as de tradição hebraica, onde o tempo deixa de ser um ciclo para tornar-se uma linha, uma flecha apontando para um fim. Mas antes de avançarmos, é necessário entender como essa ruptura se consolidou. O oráculo não desaparece — ele se transforma, carrega em si a semente da ambiguidade profética que será reconfigurada pela palavra inspirada da Escritura.

Artigo 2 — A profecia de natureza bíblica: o logos que corta o tempo.

Se o oráculo grego flertava com a ambiguidade, a profecia bíblica impõe-se como um corte — não apenas no tempo, mas também na relação entre homem e verdade. O profeta, no horizonte hebraico, não é um adivinho, mas um porta-voz de Deus. Sua palavra não busca ser interpretada, mas obedecida. Enquanto o oráculo sugere, o profeta ordena. A origem da profecia, segundo o Antigo Testamento, está na vocação divina: “Eu porei as minhas palavras na tua boca” (Jeremias 1,9). Trata-se de um envio, uma missão, uma investidura sagrada.

A profecia bíblica, portanto, tem um caráter ético, escatológico e histórico. Ético, porque denuncia a injustiça e clama por conversão. Escatológico, porque aponta para o fim dos tempos e a restauração final. Histórico, porque se insere no concreto da experiência de um povo, com data, local e destinatário. O profeta é aquele que, no presente, convoca à fidelidade; no futuro, anuncia o juízo; e no passado, recorda a aliança. Isaías, Jeremias, Ezequiel, Amós — cada um deles, à sua maneira, reconfigura o tempo ao colocar o divino como juiz da história.

A ruptura com o modelo oracular é evidente. O profeta bíblico fala em nome de um Deus único, transcendente e moralmente exigente. Não há margem para a polissemia deliberada. A clareza da denúncia é parte da autoridade da palavra. Como aponta Abraham Heschel, “o profeta é um homem que se sente pessoalmente envolvido na palavra que anuncia; ele não apenas transmite uma mensagem, ele a carrega em sua carne” (Os Profetas, 1962).

Além disso, a profecia bíblica inaugura a ideia de tempo como trajetória — com começo, meio e fim. Isso a torna profundamente política e escatológica. A cidade será destruída, o exílio virá, mas também a restauração será possível. A profecia, aqui, funda o tempo messiânico, o tempo do “ainda não” que estrutura toda a esperança judaico-cristã.

Esse novo modelo influenciará profundamente as noções futuras de história, justiça e destino. Mas também abrirá espaço para a politização da profecia, como veremos a seguir, quando a razão humana, emancipada da revelação, tentará ela mesma assumir o lugar do oráculo e do profeta.

Artigo 3 — A profecia de natureza política: razão e previsão como novo sacerdócio.

Com o declínio da autoridade religiosa nas esferas do saber e a ascensão da racionalidade moderna, a profecia não desaparece — ela se transfigura. Saem o êxtase e a revelação, entram a análise e a previsão. O discurso profético migra da caverna e do templo para os tratados, os manifestos e as universidades. A razão, agora erguida como árbitro supremo da verdade, assume para si o papel de vislumbrar o futuro, lançando-se na tarefa de antecipar a história não mais por inspiração divina, mas por dedução lógica e cálculo sistemático. Nasce, assim, a profecia de natureza política.

Essa mutação é visível nos escritos de autores como Karl Marx, cujo materialismo histórico estabelece um “devir necessário” da história. O colapso do capitalismo e a vitória do proletariado são descritos não como possibilidades, mas como certezas científicas. A estrutura profética é preservada: há um povo eleito (o proletariado), um tempo de sofrimento (a exploração), uma queda (a revolução) e uma redenção (a sociedade sem classes). Mas agora, Deus foi substituído pela dialética da história.

Nietzsche, por outro viés, anuncia o fim do mundo cristão através da morte de Deus — também uma espécie de profecia, não messiânica, mas trágica. Sua denúncia da modernidade como sintoma do niilismo revela um profeta sem esperança, cujas palavras cortam o tempo com a força de um anúncio apocalíptico. O que está por vir, para Nietzsche, não é redenção, mas a prova máxima do homem: o eterno retorno como fardo e possibilidade.

A política moderna, desde então, passou a comportar-se com frequência como religião secular. Hannah Arendt observa, em As Origens do Totalitarismo, que os regimes do século XX trataram suas ideologias como profecias inevitáveis — comunismo e nazismo, ambos, erigiram estruturas proféticas travestidas de ciência. A lógica era sempre a mesma: previsão de um fim, sacrifício no presente e promessa de salvação futura. O profeta, nesse caso, já não veste mantos nem prega nas praças — está em cargos de comando, universidades e palanques.

O elo com as formas anteriores de profecia é evidente, mas há aqui uma inversão fundamental: não se busca mais rasgar o véu do tempo por meio de uma escuta sagrada, mas sim romper o tempo histórico para erigir nele um novo véu — ideológico, técnico, racional. É o tempo reduzido a previsibilidade, o futuro como extensão calculada do presente.

Com isso, encerra-se o primeiro capítulo de nossa jornada. Da ambiguidade dos oráculos à clareza moral dos profetas bíblicos, chegamos à profecia racionalizada da política moderna. O que une todas essas formas é a tentativa humana de enfrentar o mistério do porvir. Mas à medida que o sagrado se retira e o mundo se dessacraliza, o profeta se vê obrigado a disputar seu lugar — não mais com deuses ou visões, mas com sistemas, massas e diagnósticos científicos. No próximo capítulo, exploraremos como essa figura, ora mítica, ora social, passou a mediar os conflitos entre o eterno e o transitório, entre o invisível e o cotidiano.

Capítulo II — O Desenvolvimento: evolução e aceitação dos profetas como mediadores entre o sagrado e o mundano — dos oráculos às cavernas.

Artigo 1 — Dos profetas bíblicos aos oráculos gregos: o fio simbólico da revelação.

O fio condutor que liga as distintas tradições proféticas — sejam elas hebraicas, gregas, egípcias ou mesopotâmicas — não está na semelhança de seus deuses, nem na linguagem que empregam, mas na função simbólica que atribuem ao profeta: o de ser ponto de contato entre o que escapa e o que se revela. Profetas, sibilas, xamãs, pitonisas, visionários — todos, em suas culturas, desempenharam o papel de intérpretes daquilo que está além do campo visível, tornando-se, em suas figuras, pontes entre o sagrado e o mundano.

Se a Bíblia hebraica marca o profeta como enviado de um Deus pessoal, o mundo greco-romano o posiciona como intérprete de forças impessoais ou deuses com contornos múltiplos. A profecia, neste último caso, opera muitas vezes sob formas extáticas, em que a perda da razão é condição de acesso à verdade — ideia que Platão examina em Íon, ao afirmar que o poeta (e por extensão o profeta) é possuído por uma inspiração que vem de fora, um entusiasmo (entheos), literalmente “Deus dentro”.

No entanto, a tradição hebraica radicaliza essa mediação, pois confere à profecia um compromisso ético e histórico: ela não apenas revela, mas convoca à ação. Como lembra Paul Ricoeur em O Simbólico do Mal, o profeta é aquele que aponta o mal, mas também indica o caminho de retorno. O oráculo grego, ao contrário, mantém a tensão do enigma e do destino inevitável — sua voz não redime, apenas revela o que está determinado.

O ponto de transição entre esses modelos encontra-se no modo como a verdade é tratada: como dádiva que deve ser obedecida ou como enigma que deve ser decifrado. A verdade profética, nesse sentido, não é apenas epistemológica — é existencial. E essa tensão entre revelação e interpretação é o que sustenta o surgimento posterior de figuras híbridas, que não são nem plenamente religiosas, nem inteiramente filosóficas — mas algo entre ambos: os visionários do mundo antigo tardio, os profetas populares da Idade Média, os santos iluminados do misticismo.

A profecia evolui, portanto, como estrutura narrativa e simbólica, mas permanece intacta em sua função: ser mediação. Seja no templo, na caverna ou na praça pública, o profeta sempre ocupa um lugar liminar — entre o que não pode ser dito e o que precisa ser anunciado. E é nessa condição limiar que ele começa a ser reconhecido, não apenas como figura espiritual, mas como voz de poder. Um reconhecimento que, no próximo artigo, veremos ser cada vez mais dependente da aceitação das massas — da fé coletiva, da repetição e, por fim, da espetacularização.

Artigo 2 — A validação das massas: do profeta como enviado divino à ciência dos programas de auditório.

À medida que o espaço sagrado se desloca da esfera ritual para a arena pública, o profeta começa a depender não apenas da autoridade divina, mas da recepção que encontra no outro — na audiência, na multidão, no olhar coletivo. A voz profética, antes sagrada por origem, passa a ser sagrada por reconhecimento. Surge, assim, um novo critério de validação: o da aceitação popular, que passa a funcionar como termômetro da veracidade, deslocando o eixo da profecia do plano transcendente para o sociológico.

Essa mudança não ocorre abruptamente, mas vai se consolidando ao longo da História. Nos textos bíblicos, já encontramos ecos dessa tensão: falsos profetas que se dizem enviados, multidões que preferem ouvir palavras agradáveis, reis que rejeitam os avisos incômodos. Em Jeremias 5,31, há a denúncia clara: “Os profetas profetizam falsamente, os sacerdotes dominam pelas mãos deles, e o meu povo assim o deseja.” Ou seja, a falsidade não é apenas culpa do emissor, mas da audiência que o legitima.

Com o tempo, essa lógica se acentua. Na Idade Média, profetas místicos ganham multidões; nas revoluções modernas, líderes políticos se tornam figuras proféticas — e na era das mídias, a figura do “profeta” é cada vez mais moldada pela imagem. A televisão, o rádio, os palcos e, hoje, as redes sociais transformaram a estrutura da profecia em espetáculo. O discurso messiânico, quando amplificado por câmeras e aplausos, já não exige confirmação divina: exige audiência, curtidas, compartilhamentos.

Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo, identificou esse fenômeno com precisão: o conteúdo se dilui na forma, e a verdade se converte em performance. O profeta moderno, diferentemente dos antigos, não precisa mais viver o que anuncia — basta que saiba anunciá-lo com carisma, ritmo e narrativa. A antiga figura do enviado agora concorre com especialistas de palanque, pastores de púlpito televisivo, gurus motivacionais e comentaristas de previsão social.

Esse processo gera um paradoxo: quanto mais fácil é propagar a palavra profética, mais difícil é verificar sua autenticidade. A autoridade não emana do conteúdo, mas da recepção. E, nesse cenário, os falsos profetas deixam de ser exceção para tornarem-se regra — não porque enganam, mas porque se adaptam perfeitamente ao desejo da multidão.

Nesse contexto, os verdadeiros profetas — aqueles que não se dobram ao aplauso nem moldam sua fala à conveniência — passam a ser marginalizados, quando não tidos como loucos. E é a essa figura, a do louco profético, que dedicaremos o próximo artigo: não o que manipula a massa, mas o que grita sem plateia — e justamente por isso, carrega, talvez, o último eco do sagrado.

Artigo 3 — Os loucos e suas profecias sem poder de comprovação: entre delírio e ruína.

Num tempo em que a autoridade profética passou a depender da recepção social e da estética da performance, a figura do louco se torna, paradoxalmente, herdeira de uma autenticidade esquecida. O louco — aquele que fala sozinho, que é ignorado, que não se encaixa na ordem dos discursos — assume o papel trágico de profeta sem palco, de visionário sem eco. E, exatamente por isso, carrega traços da antiga tradição profética, aquela em que a verdade era anunciada mesmo sob risco de apedrejamento ou desprezo.

A tradição está cheia dessas figuras. São os místicos que anunciavam o juízo entre tremores e delírios, os santos estigmatizados que falavam em nome do céu, os mendigos que viam nas ruínas da cidade os sinais do fim. Mas também, e cada vez mais, os insanos urbanos, os que escrevem em muros, os que falam para ninguém, os que carregam cartazes e delírios — todos eles, de algum modo, tentam anunciar uma verdade que não encontra validação. Estão fora da lógica do espetáculo e da razão científica. E por isso mesmo são descartados.

Michel Foucault, em História da Loucura, aponta como a modernidade encerra o louco num lugar de silêncio: "O louco deixa de ser aquele que possui uma verdade invertida e passa a ser apenas o que não possui verdade alguma." O profeta sem audiência, que outrora poderia ser considerado santo ou possuído pelo divino, torna-se agora mero doente. O discurso que não pode ser comprovado é imediatamente patologizado.

No entanto, essa exclusão não apaga a estrutura do gesto. O louco, mesmo desacreditado, continua a apontar para aquilo que escapa à norma — continua a insistir que há um véu, ainda que rasgado, entre o real e o possível. Há, nesses discursos marginais, um resquício de transcendência, uma recusa a aceitar o mundo tal como está. Suas profecias, sem poder de comprovação, podem ser delírio. Mas o que é o delírio, senão a recusa última da ordem estabelecida? E o que era a profecia, senão também um ato de recusa, um grito contra o presente em nome de um porvir?

O profeta-louco não quer convencer; ele precisa anunciar. Mesmo que sua palavra não encontre eco, ela cumpre seu papel simbólico: manter aberta a ferida do real, lembrar que há sempre algo que escapa, algo que não se encaixa, algo que insiste — mesmo na ruína.

Assim, encerramos este segundo capítulo com uma inversão profunda. Se o profeta outrora era mediador entre céu e terra, agora encontra-se preso entre a indiferença da massa e a lógica clínica da razão. Mas essa queda não é o fim. Ela prepara o terreno para o que está por vir: um tempo em que todos falam em nome do futuro, em que a profecia se dissolve no ruído e a verdade se torna um campo em disputa. É a isso que nos voltaremos no próximo capítulo: o futuro da profecia — ou talvez, sua total desconstrução.

Capítulo III — O Futuro: a dissolução do termo e os rastros da promessa.

Artigo 1 — Hoje, todos são profetas: a multiplicação da fala sem autoridade.

Vivemos uma época em que a profecia perdeu sua escassez. O que outrora era reservado a poucos — uma revelação, um chamado, um abalo da alma — hoje é distribuído em massa, como se qualquer opinião, previsão ou suspeita sobre o futuro pudesse ostentar o título de profecia. Redes sociais, programas de análise, gurus motivacionais, influenciadores, colunistas, inteligências artificiais: todos, de algum modo, se apropriaram do gesto profético, não mais como mediação do invisível, mas como produção de discurso autorreferente, que fala apenas para reforçar a si mesmo.

Com isso, o gesto profético foi trivializado. A autoridade, que antes advinha de uma experiência limiar — entre o humano e o divino, entre o tempo e o eterno — cede lugar à visibilidade. Já não é necessário ver além do tempo: basta atrair olhares. A multiplicação da fala, como previra Kierkegaard em O Desespero Humano, não conduz ao aprofundamento, mas à superficialidade: “O mundo está cheio de profetas de ocasião, e cada um se acha digno de interpretar os desígnios da eternidade.” Nesse contexto, a profecia já não exige risco, nem compromisso — ela se torna um jogo de linguagem, uma moeda simbólica em circulação.

A consequência é dupla. Primeiro, a perda de densidade: quando todos são profetas, ninguém mais o é. A palavra deixa de ter peso. Segundo, o esvaziamento do próprio futuro como horizonte de mistério. A profecia verdadeira pressupunha que o futuro estava oculto, guardado em Deus, no Destino ou no Mistério. Hoje, o futuro é um produto de simulações, algoritmos e estatísticas. Não se espera mais pela revelação — apenas por atualizações.

Mas mesmo nesse cenário, algo resiste. A necessidade humana de anunciar, de antecipar, de significar o tempo não desapareceu. Apenas migrou de lugar. O problema não está na existência de muitas vozes, mas na ausência de silêncio — o silêncio que precede o verdadeiro anúncio. Pois o profeta genuíno não fala por si, mas apesar de si. E isso exige recolhimento, escuta, rasgo interior.

Ao apontarmos essa diluição generalizada da figura profética, não buscamos restaurar um privilégio perdido, mas reconhecer que a profecia — para ser de fato — exige algo que não pode ser produzido: a experiência da transcendência. Essa exigência será o centro das contradições que se seguirão, pois, no mundo do excesso, o que falta é exatamente aquilo que não pode ser fabricado: o abismo necessário entre o que se vê e o que se anuncia.

No próximo artigo, veremos como, nesse mesmo excesso, a profecia se converteu num instrumento de controle — não mais uma denúncia do presente, mas uma prisão imaginária do futuro.

Artigo 2 — Profecias como elemento de alienação e escravidão: o domínio pelo medo do porvir.

O gesto profético, antes carregado de risco e ruptura, tornou-se, no presente, uma ferramenta de contenção. Em vez de anunciar a verdade e convocar à transformação, ele passou a operar como mecanismo de controle — psicológico, social, político. A profecia, esvaziada de sua transcendência, transformou-se numa arma simbólica: um futuro artificialmente construído para moldar o comportamento no presente. E a matéria-prima desse processo é o medo.

A história recente demonstra esse movimento com clareza. Governos, instituições financeiras, meios de comunicação e até estruturas religiosas passaram a mobilizar imagens do futuro como forma de disciplinar o agora. Não se trata mais de prever o que virá, mas de produzir um horizonte de catástrofe ou de salvação condicionado a determinados comportamentos. Trata-se de um uso técnico da imaginação profética — uma engenharia do porvir, regulada por algoritmos, índices, estatísticas e narrativas de apocalipse.

Nietzsche, em Genealogia da Moral, já identificava esse processo em seu estado embrionário: a inversão do tempo como forma de controle moral. A promessa do céu ou a ameaça do inferno se tornam dispositivos de docilização do corpo e da vontade. Hoje, essa lógica se deslocou da religião para a tecnocracia: o fim do planeta, o colapso financeiro, a extinção da liberdade, a guerra iminente — todos esses são “fins” que condicionam o sujeito a uma obediência silenciosa. A profecia, nesse caso, já não liberta: escraviza.

A alienação se instala quando o homem já não vive o presente, mas sobrevive sob o jugo de um futuro projetado por outros. Ele se torna refém de simulações, previsões e discursos hegemônicos que, embora travestidos de racionalidade ou espiritualidade, funcionam como versões sofisticadas do velho oráculo de Delfos — agora corporativo, institucionalizado, automatizado. O sujeito perde a soberania de seu próprio tempo.

Zygmunt Bauman, em Tempos Líquidos, aponta para essa dissolução da estabilidade temporal: o futuro é cada vez mais incerto, mas paradoxalmente mais presente — porque o medo dele se tornou constante. O resultado é um estado de ansiedade crônica, de espera angustiada por um fim que nunca chega, mas que é constantemente anunciado. A profecia já não se cumpre: ela se repete como ameaça.

Estamos diante de uma inversão definitiva: o profeta, que outrora denunciava o poder, agora é convocado por ele para sustentar sua narrativa. A profecia foi capturada. E com isso, perdeu-se seu caráter mais essencial — o de ruptura. Pois a verdadeira profecia nunca se acomodou ao mundo como está. Ela o cortava. E por isso era perigosa.

No último artigo deste capítulo, voltaremos à raiz dessa degeneração e ao esvaziamento total do termo, na tentativa de compreender se ainda é possível resgatar algum vestígio do gesto profético original — ou se tudo o que restou foi ruído.

Artigo 3 — A desconstrução do termo: quando tudo é profecia, nada mais o é.

A profecia, reduzida a instrumento de influência ou performatividade, chega enfim ao seu ponto mais crítico: a perda total de sentido. Quando todas as vozes se declaram proféticas, o termo se esvazia, implode sob o peso do uso indiscriminado. A palavra “profecia” já não remete ao abalo do tempo, à irrupção do eterno ou à convocação moral, mas se tornou sinônimo de previsão, palpite, discurso alarmista ou slogan motivacional. O termo, antes reservado à linguagem do sagrado, é hoje moeda vulgar na boca dos algoritmos e dos marqueteiros.

Essa diluição extrema é mais que um sintoma: é o efeito lógico de um processo histórico. A profecia perdeu suas raízes ontológicas, desligou-se da verticalidade que a sustentava — Deus, destino, verdade, mistério — e afundou na horizontalidade do discurso. Deixou de ser experiência de transcendência para tornar-se operação de linguagem. E, como toda palavra desvinculada de sua origem, passou a significar qualquer coisa — e, portanto, nada.

Jean Baudrillard, em A Troca Simbólica e a Morte, descreve esse tipo de fenômeno como “simulacro”: não é mais a representação de algo verdadeiro, mas a circulação de signos que se referem apenas a outros signos. A profecia, neste estágio, já não anuncia o que virá — apenas reforça o que convém que se creia. Ela se tornou funcional, estratégica, domesticada. O profeta não é mais o estranho, o desajustado, o enviado: é o gestor de tendências, o especialista em cenários, o roteirista da ansiedade coletiva.

E aqui se fecha um ciclo. Aquilo que começou como palavra rasgada entre o céu e a terra, capaz de mudar reis, fundar povos e abalar impérios, agora se dissolve em frases descartáveis, projeções estatísticas, mensagens de autoajuda e algoritmos preditivos. A profecia foi vencida por sua própria popularidade. Tornou-se tão acessível que deixou de ser temida. E o que não assusta mais, não transforma.

No entanto, o desaparecimento da profecia verdadeira não apaga sua necessidade. O colapso do termo revela, paradoxalmente, a urgência de seu resgate. Pois mesmo no ruído, permanece o desejo humano por sentido, por revelação, por uma palavra que venha de fora e rompa o ciclo da repetição.

É nessa tensão que se anuncia o último movimento desta reflexão: se a profecia verdadeira não pode ser produzida, se ela não se fabrica nem se força, então só resta uma via — a espera. Mas não uma espera passiva, e sim vigilante. Porque o retorno da profecia, se vier, não virá das massas, nem da ciência, nem dos programas de auditório. Ele virá, como sempre veio: do alto.

Conclusão — A necessidade de um resgate, mas esse deverá vir dos céus.

Chegamos ao fim de um percurso que, mais do que histórico ou filosófico, é também existencial. Percorremos a origem da profecia como linguagem da ruptura — dos oráculos ambíguos às palavras cortantes dos profetas bíblicos, da razão política que tentou ocupar o lugar do divino até a fragmentação moderna em que todo discurso se proclama visionário. Em cada etapa, vimos não apenas uma transformação da forma, mas uma lenta perda de substância. A profecia, que nasceu como exceção, tornou-se ruído. Que era vertical, tornou-se horizontal. Que era revelação, tornou-se produto.

Mas há algo que resiste. Pois, apesar da banalização, do espetáculo, da alienação e do delírio, o gesto profético ainda nos inquieta. Há uma sede que não foi saciada — uma fome de verdade que nenhuma previsão estatística consegue alimentar. A alma humana continua ansiando por uma palavra que venha de fora, que não se submeta aos jogos da conveniência ou da performance. Uma palavra que atravesse o tempo, revele o invisível e convoque à transformação.

Esse anseio, no entanto, não será respondido por nenhum artifício técnico, nem por fórmulas retóricas ou projeções computacionais. O que se perdeu não pode ser reconstruído com as ferramentas da época que o destruiu. O gesto profético autêntico não nasce do mundo — ele o interrompe. Não se adapta à ordem vigente — ele a confronta. Não se oferece como entretenimento — ele inquieta. Por isso, o resgate da profecia, se for possível, não poderá vir de baixo. Terá de vir do alto.

Como outrora no deserto, onde o silêncio preparava o ouvido para o inaudito, talvez só reste o gesto de esperar. Não como passividade, mas como disposição interior: uma vigília. Pois a profecia não se improvisa — ela se revela. E talvez, no meio do ruído, um novo silêncio se forme. Um silêncio tão denso que possa, de novo, ser cortado pela Palavra.

E quando ela vier — se vier — que nos encontre prontos.









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