quarta-feira, 25 de junho de 2025

Lísis, de Platão.

Capítulo Único — O Enigma da Amizade: Dialética do Desejo e da Comunhão

Artigo I — A Cena Inicial: Estrutura do Encontro e a Presença do Amor
O cenário, os interlocutores e a atmosfera filosófica que Platão constrói para abordar o amor-amizade.

Artigo II — Entre o Amor Possessivo e o Desejo do Bem: A Amizade como Movimento
Exame dos argumentos que ligam a amizade ao semelhante, ao dessemelhante, ao bem e à necessidade — a tentativa socrática de encontrar o princípio.

Artigo III — O Impasse Final: Aporia como Testemunho da Profundidade do Real
Análise da conclusão aporética como chave filosófica: não se define a amizade, mas se revela sua natureza transcendente e paradoxal.

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Capítulo Único — O Enigma da Amizade: Dialética do Desejo e da Comunhão.
Artigo I — A Cena Inicial: Estrutura do Encontro e a Presença do Amor.

O Lísis inicia-se não com definições, mas com um gesto. Sócrates aproxima-se de jovens reunidos em torno de uma prática ginástica, onde o corpo ainda pulsa em vitalidade juvenil e o espírito se agita com os primeiros movimentos do amor. É nesse ambiente de tensão erótica e intelectual que se instala o drama filosófico. A presença de Hipotales e de Lísis, este último objeto do afeto daquele, confere à cena o tom de um rito: o amor que se anuncia exige purificação pela palavra.

Platão, como é seu hábito nos diálogos chamados “socráticos”, não introduz diretamente o tema da investigação. Ele o insinua. O amor está presente, mas ainda não tematizado — paira como atmosfera. O discurso de Hipotales revela-se vazio, inflado de adulações e afetado por uma ânsia de se exibir como amante. Sócrates, ao ridicularizá-lo, purga o terreno das falsas poesias: o amor não se mostra por ostentação, mas por humildade reflexiva.

Esse início já é filosofia em forma dramática: não há doutrina, há cena. A cena é reveladora. Há tensão, há desejo, há um centro (Lísis), e em torno dele giram afetos, inseguranças e disputas silenciosas. Sócrates não é apenas o inquiridor, é o catalisador. Sua entrada provoca um deslocamento do eixo: da fala vazia de Hipotales para o silêncio fecundo do diálogo.

A estrutura do encontro espelha a própria essência da amizade tal como será discutida no decorrer do diálogo: ela se apresenta como relação, como entre, como ponte e não como substância. Amizade não é coisa que se possui, mas laço que se vive — e justamente por isso, sua essência escapa às fórmulas fixas.

Neste primeiro momento, já se pode entrever o destino do diálogo: a amizade será interrogada como se interroga um deus silencioso. O amor-amizade, esse enigmático elo entre os homens, será sondado em sua interioridade, não pela técnica, mas pela escuta. E o que se escuta, desde já, é que só é possível começar a falar de amizade se se abandonar o desejo de dominá-la.

A filosofia platônica, aqui, não busca saber o que é para encerrar o enigma, mas para abrir o espírito à admiração. Sócrates inicia o movimento — mas é o silêncio do mistério que o conclui.

Artigo II — Entre o Amor Possessivo e o Desejo do Bem: A Amizade como Movimento.

Sócrates avança por hipóteses sucessivas. Primeiro, pergunta-se se amigos se atraem por semelhança. Parece plausível: o justo busca o justo; o temperante, o temperante. Mas a tese naufraga: se ambos já são bons, nada lhes falta; amizade, então, seria supérflua.

Vira-se o argumento: talvez os contrários se busquem. O fraco precisaria do forte, o doente do médico. Contudo, contrários, quando se tocam, tendem a anular-se; o que desejamos, em verdade, não é o contrário em si, mas o bem que nele pressentimos.

Sócrates introduz então a noção de necessidade. Quem é “nem bom nem mau”, mas sente a falta do bem, ama aquilo que supre a carência. A amizade nasce da penúria: o amante é puxado pelo bem como o corpo pela medicina. Porém, se é só utilidade, a relação termina quando a carência se extingue; amizade vira comércio.

O argumento aperta: não basta utilidade, falta permanência. Só o Bem em si é estável. Conclui-se: o amigo verdadeiro é o Bem — ou quem participa dele. Mas essa conclusão dissolve a distinção entre amar e ser bom; resta uma fórmula fria, incapaz de explicar a experiência viva da amizade.

O diálogo retorna ao ponto de partida: a amizade oscila entre posse, necessidade e comunhão com o Bem, sem fixar-se. Seu ser é movimento — tensão contínua de desejo que jamais se satisfaz por completo. A tentativa de defini-la destrói precisamente aquilo que tenta capturar. Por isso, a investigação termina em aporia: a essência do amor-amizade escapa sempre um passo adiante, como promessa que sustenta o próprio filosofar.

Artigo III — O Impasse Final: Aporia como Testemunho da Profundidade do Real.

À medida que o diálogo se aproxima do fim, torna-se evidente que nenhum dos caminhos trilhados por Sócrates alcança um ponto firme. A amizade — esse vínculo tão íntimo quanto necessário à vida humana — revela-se refratária à definição. Todas as tentativas de circunscrevê-la recaem no paradoxo: ou reduzem-na a uma função (como a utilidade ou a carência), ou a diluem em abstrações como o Bem absoluto, sem preservar o caráter concreto e experiencial da relação.

O movimento dialético conduz, assim, à aporia. Mas esse impasse não é um fracasso lógico; é um sinal ontológico. Indica que há realidades cuja natureza reside justamente em sua indeterminação formal — não por serem vagas, mas por serem profundas demais para o conceito. A amizade, tal como aparece no Lísis, é uma dessas realidades. Sua essência não pode ser objetivada sem que se perca sua verdade.

Platão, por meio de Sócrates, parece nos dizer que há no amor-amizade algo que resiste à redução racional. Ele é vivido, não deduzido. É presença, não fórmula. A aporia não anula a investigação; ela a consagra como legítima. Pois não conhecer completamente o que se ama é condição para continuar amando — e filosofando.

Essa conclusão, ou antes, essa não-conclusão, tem peso filosófico: abre espaço para a ideia de que o ser da amizade é relacional e dinâmico, sempre em vias de se fazer, sempre entre. A amizade não é uma substância, mas uma travessia — e toda travessia, para ser real, deve manter o mistério do destino.

O Lísis não nos dá uma teoria da amizade, mas nos oferece o mapa de um enigma. Ao fim, o leitor não sai com uma definição, mas com uma inquietação mais refinada — e talvez, com uma maior abertura à escuta do outro. Aporia, aqui, não é silêncio de ignorância, mas silêncio reverente diante de algo que, sendo real, não pode ser possuído: apenas vivido.

Conclusão — A Aporia que Frutifica: Ecos do Lísis na Tradição.

A suspensão socrática sobre a essência da amizade não foi estéril; tornou-se semente para escolas posteriores. Aristóteles, no Ética a Nicômaco, tomou o ponto de partida platônico e deu-lhe precisão teleológica: amizade é benevolência recíproca ordenada à virtude, classificável em prazer, utilidade e perfeição — tentativa de fechar a lacuna, mas ainda dependente de um bem compartilhado que jamais se torna objeto. Os Estóicos universalizaram o vínculo, vendo nele participação na razão cósmica; já os Epicuristas reduziram-no a pacto de segurança prazerosa, sinal de que a aporia permitia leituras opostas.

No cristianismo patrístico a tensão ganha altura metafísica: Agostinho funde amicitia e caritas, dizendo que só em Deus se cumpre plenamente o amor entre amigos; Tomás de Aquino integra o modelo aristotélico, porém eleva-o pela graça, tornando a amizade com Deus critério das demais. Aelred de Rievaulx, em De spirituali amicitia, faz eco direto ao diálogo platônico, mas resolve-o na caridade mística.

O Renascimento neoplatônico (Ficino) lê o Lísis como degrau na ascensão erótica à unidade do Uno; o humanismo cívico (Erasmo) transforma a amizade em cimento social. Na modernidade, Montaigne aceita a indeterminação — “porque era ele, porque era eu” —, Kant redefine-a como respeito mútuo entre pessoas autônomas, e Kierkegaard a converte em relação singular que só se sustenta no paradoxo da subjetividade. Fenomenólogos contemporâneos (Lévinas, Derrida) retomam a aporia como abertura infinita ao outro.

Assim, cada tradição tentou fixar o indizível platônico em seu próprio horizonte: ética teleológica, razão cósmica, graça divina, autonomia, alteridade radical. Nenhuma, contudo, extinguiu o enigma; apenas o desdobrou em novas linguagens. A amizade, como mostrou o Lísis, conserva-se irrestrita: vive no vão entre definição e vivência, onde a filosofia encontra motivo eterno para recomeçar.



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