segunda-feira, 2 de junho de 2025

O Espelho da Máquina e o Teatro do Controle.


Muito se tem dito — e repetido — sobre os perigos da inteligência artificial. Acusam-na de ser nociva, desestabilizadora, uma ameaça em potencial à ordem social, econômica e até ontológica. Mas, na pressa de apontar o dedo à máquina, esquecem — ou fazem questão de esquecer — um princípio tão simples quanto inescapável: a máquina não cria a si mesma, ela é alimentada.

Por detrás de cada linha de código, de cada algoritmo generativo, há mãos humanas, há intenções humanas, há consciências, ou pior, há inconsequências. Não é a máquina que decide por si só tornar-se um simulacro perfeito da realidade, mas aqueles que, munidos de vontade e interesses, lhe fornecem dados, regras, objetivos e limites.

E aqui emerge o paradoxo contemporâneo: a mesma sociedade que cria a máquina, agora se levanta contra ela, acusando-a de ser portadora de males que, no fundo, são apenas o reflexo de suas próprias sombras. A inteligência artificial não faz mais do que devolver à humanidade a imagem que ela própria projetou nela.

Mas seria ingênuo supor que esse movimento seja apenas fruto de desinformação ou de receio tecnológico. Não. O jogo é mais profundo, mais sutil e, sobretudo, mais estratégico. O discurso dos perigos da IA — tão frequentemente amplificado — serve como cortina de fumaça, como aparato discursivo para validar bloqueios, sanções e regulações não tanto da tecnologia em si, mas do acesso, da liberdade de uso e, sobretudo, do fluxo de informação.

Porque no cerne da questão não está a IA, mas aquilo que sempre esteve: o controle.

O verdadeiro campo de batalha não é a ontologia da máquina, nem a ética dos algoritmos, mas a gestão dos meios pelos quais o saber, a comunicação e a representação se dão no mundo. Ao rotular a IA como uma ameaça, constrói-se o álibi perfeito para instaurar mecanismos de censura, para restituir aos antigos centros de poder — estatais, corporativos ou supranacionais — o monopólio sobre o que pode ser dito, visto, criado e, sobretudo, imaginado.

Aqui se manifesta a verdadeira ironia: a arma não é a máquina, a arma é o discurso sobre a máquina. E a guerra não é contra a IA, mas contra a possibilidade de que qualquer sujeito, fora das instâncias autorizadas, possa acessar, manipular e recriar as linguagens do mundo.

Por isso, não nos enganemos: se não fossem as IAs, seriam outras as ferramentas. Sejam prensas de impressão, rádios livres, redes digitais, criptografias ou qualquer instrumento capaz de diluir o privilégio informacional. A tensão não está na tecnologia, mas no eterno embate entre ordem e liberdade, entre centro e periferia, entre o desejo de controle e a vocação humana pela criação, pela expressão, pela autonomia.

Portanto, que não se diga que a IA é nociva. Nocivo é o jogo de sombras que se constrói em seu entorno. Nocivo é o disfarce da tecnocracia que, sob o pretexto de proteger a sociedade, reafirma os velhos modelos de dominação.

A IA, em si, nada mais é que um espelho. E, como todo espelho, ela não inventa a imagem — apenas a devolve.

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