segunda-feira, 30 de junho de 2025

COF - AULA 05 (O TEATRO DA FILOSOFIA MODERNA)

  



Capítulo I – A Imaginação como Condição da Inteligência Filosófica
Artigo 1: A prioridade da experiência sobre a lógica e a reconstituição do vivido
Artigo 2: A literatura como fundamento da compreensão filosófica
Artigo 3: A linguagem dos conceitos como tradução do mundo simbólico

Capítulo II – A Filosofia como Drama Encoberto: Crítica à Camuflagem Moderna
Artigo 1: A falsificação cartesiana: do gênio maligno ao método
Artigo 2: O ocultamento da experiência na ciência moderna
Artigo 3: Newton, Descartes e a gênese da fraude epistêmica

Capítulo III – História, Memória e Reconhecimento: A Formação do Juízo Filosófico
Artigo 1: A reconstituição dramática da verdade filosófica
Artigo 2: A imaginação histórica como instrumento de desvelamento
Artigo 3: O empobrecimento do pensamento e a destruição da herança cultural

 

Capítulo I – A Imaginação como Condição da Inteligência Filosófica


Artigo 1 — A prioridade da experiência sobre a lógica e a reconstituição do vivido

Todo empreendimento filosófico digno desse nome principia na experiência concreta, jamais na abstração pura. Olavo de Carvalho insiste que a lógica, enquanto “articulação das possibilidades”, carece de substância se não estiver ancorada nas vivências efetivas que a antecedem. Essa tese ecoa Aristóteles, cuja teoria dos quatro discursos postula a imaginação como condição sine qua non da investigação racional: não há logos sem phantasia. A imagem funda o conceito. Benedetto Croce, em Logica come Scienza del Concetto Puro, corrobora o ponto ao afirmar que a atividade lógica pressupõe representações intuitivas; suprimidas essas intuições, a razão degenera em mero jogo combinatório de símbolos.

Karl Bühler, por sua vez, esclarece o problema sob o prisma linguístico: toda proposição carrega dimensões expressiva, apelativa e representacional. Ignorar a primeira — a que revela o estado interior do falante — ou apartá-la da segunda, gera discurso oco, incapaz de remeter-se ao mundo vivido. Deste ponto de vista, o filósofo que se isola em construções formais repete a sorte do cambista que manipula papel-moeda sem lastro em bens reais; o circuito fecha-se sobre si mesmo e perde valor de verdade.

René Descartes fornece o contra-exemplo paradigmático. As Meditationes propõem a dúvida hiperbólica como método, mas tal dúvida radical é psicologicamente impossível: formular qualquer interrogação requer ao menos uma certeza tácita que funcione como ponto de contraste. Quando Descartes declara-se suspenso em incerteza absoluta, faz uso de metáfora dramática para velar angústias existenciais específicas — sonhos demoníacos registrados em suas correspondências. A “dúvida” não é, portanto, categoria lógica originária, mas transposição literária de um temor pessoal. Ao converter essa experiência em fórmula universal, o filósofo inaugura um estilo de camuflagem que se tornará marca da modernidade: a construção de teatros conceituais onde o leitor, se não reconstituir o vivido subjacente, permanecerá hipnotizado por encadeamentos que parecem rigorosos, embora flutuem num vácuo ontológico.

Tal operação atinge ápice na física newtoniana. Isaac Newton fala de “movimento eterno” — expressão autocontraditória, já que o que é eterno transcende mudança temporal. A chave desse paradoxo reside na cosmologia alquímico-teológica que permeia seus manuscritos inéditos, redescobertos por John Maynard Keynes. Quando o “movimento eterno” ingressa na mecânica como simples artifício matemático, a imaginação religiosa que o gerou é amputada do discurso científico; contudo, ela continua a orientar, de modo subterrâneo, o horizonte de possíveis da ciência moderna.

Leszek Kołakowski demonstrou como fenômeno análogo tolhe a fenomenologia de Edmund Husserl, cujo projeto de redução ao ego transcendental exige suspender pressupostos que, na prática, nunca deixam de influir sobre o investigador. Do mesmo modo, Immanuel Kant erige a crítica da razão pura sobre condições a priori que, longe de iluminar a experiência, a recobrem sob nova camada de abstração. A filosofia passa a valer-se de conceitos para ocultar, não para aclarar, o real.

Para escapar a essa armadilha, o exercício filosófico deve retomar o gesto aristotélico: investigar a doutrina de um autor à luz do drama existencial que a motiva, reconstituindo imaginativamente o elo entre vivência e forma. Sem esse labor de anamnesis, a leitura degrada-se em troca de signos destituída de densidade, denunciada por Olavo nas produções acadêmicas que ignoram substância de experiência e se contentam em intertextualidades estéreis.

A unidade do conhecimento na unidade da consciência — meta assintótica da filosofia — realiza-se tão somente quando a razão reconhece seu fundamento na percepção primeira e, ao mesmo tempo, devolve à experiência sua inteligibilidade perdida. A lógica não é abolida, mas ordenada ao serviço da memória e da imaginação, que lhe fornecem matéria. O pensamento que se desgarra dessa fonte converte-se em prestidigitação dialética, bela talvez, porém vazia. Compreender esta hierarquia significa restituir ao logos seu estatuto de instrumento e não de tirano da realidade, permitindo que o filósofo, longe de fabricar mundos fictícios, dê testemunho veraz do ser que se manifesta — sempre, antes de tudo, como experiência viva.

Artigo 2 — A literatura como fundamento da compreensão filosófica

A literatura não é um apêndice ornamental da formação filosófica, mas seu pré-requisito mais decisivo. Na exposição da Aula 05, Olavo de Carvalho articula com rigor a tese de que a inteligência conceitual é inoperante sem um vasto patrimônio imaginativo. A razão, antes de proceder à análise, deve dispor de formas reconhecíveis sobre as quais possa operar. A familiaridade com as estruturas narrativas, os tipos humanos e os esquemas dramáticos presentes na tradição literária é o que permite à consciência identificar e interpretar os sentidos latentes de um discurso filosófico.

O filósofo, nesse horizonte, não é um criador autônomo, mas um intérprete dotado de alta sensibilidade para os modos da existência. Isso exige, antes de tudo, conhecer o que a humanidade já viveu, já sofreu, já compreendeu poeticamente. Olavo retoma aqui um princípio de Aristóteles: a filosofia não começa do zero, mas da confrontação com as opiniões dos sábios (endoxa), ou seja, com as sedimentações simbólicas da experiência coletiva. Tal princípio é obliterado pela mentalidade universitária moderna, que isola o discurso filosófico num universo técnico fechado, surdo ao drama humano que lhe dá origem.

A crítica de Olavo se dirige frontalmente ao estruturalismo, ao desconstrucionismo e às práticas acadêmicas de análise literária contemporânea, que se especializaram em extirpar da narrativa sua substância humana. Nesse sentido, nomes como Derrida, Barthes e companhia representam, não um avanço no pensamento, mas um retrocesso brutal — a conversão do intelecto em máquina de rotulagem formal. A leitura, que deveria ser um ato de reencontro com a realidade possível do mundo e do outro, degrada-se em jogo narcisista com signos autorreferenciais.

Contra essa desumanização, Olavo propõe o retorno à literatura como escola da alma. Obras como Dom Quixote, Crime e Castigo, A Divina Comédia ou O Bravo Soldado Schweik não apenas entretêm ou sensibilizam: elas educam a percepção ao apresentar situações-modelo da existência. Como destaca Northrop Frye — citado indiretamente por Olavo —, os grandes livros fundam arquétipos. Ao internalizá-los, o leitor torna-se capaz de reconhecer o drama da realidade quando este se desenrola diante de si.

A filosofia, neste cenário, deve ser lida como dramaturgia invertida: o filósofo não expõe sua experiência em forma narrativa, mas a encapsula em conceitos. O leitor, então, deve proceder em sentido inverso — extrair do enunciado lógico o enredo vivido que o gerou. Só assim a proposição filosófica se ilumina. Descartes, ao falar de “dúvida radical”, não descreve uma experiência logicamente possível, mas mascara um estado interior específico: a aflição de ser enganado por um poder superior (o “gênio maligno”). Ao acessar esse pano de fundo, a filosofia cartesiana deixa de ser apenas um sistema para tornar-se o testemunho de um homem em conflito com sua impotência diante do real.

A exigência de reconstruir esse drama exige, portanto, que o leitor possua familiaridade com os repertórios simbólicos da literatura. Sem isso, não há como identificar, por analogia, as estruturas de situação que atravessam o discurso filosófico. A filosofia torna-se um enigma estéril, uma cifra sem chave.

Por essa razão, o filósofo ignorante da tradição literária é cego diante das experiências alheias, incapaz de reconhecer nelas os traços do seu próprio pensamento. Sua linguagem torna-se hermética não por profundidade, mas por ausência de mediação. Como adverte Olavo, quem deseja compreender filosofia deve ler tudo: tragédia grega, Bíblia, teatro clássico, romance moderno. Não como erudição, mas como apropriação de formas. A imaginação, quando assim enriquecida, não apenas decifra os símbolos do pensamento; ela se converte no solo onde o próprio pensamento enraíza.

Portanto, longe de ser um luxo, a literatura é a iniciação. Toda grande filosofia supõe, silenciosamente, um mundo possível narrado por outros. E a sabedoria consiste, antes de tudo, em reconhecer esse mundo — e nele, a nós mesmos.

Artigo 3 — A linguagem dos conceitos como tradução do mundo simbólico

A linguagem filosófica, apesar de sua aparência autônoma e técnica, é secundária. Ela não nasce do vazio nem opera em terreno neutro: constitui-se como tradução, estilização e depuração de um mundo anterior — o mundo das imagens, das narrativas e das formas simbólicas. Olavo de Carvalho sublinha esse ponto com insistência: todo conceito emerge de um fundo imaginativo e afetivo, ou seja, de uma experiência que, antes de ser pensada, foi vivida e representada.

Não é por acaso que Aristóteles, ao definir a dialética, a entende como um embate entre opiniões qualificadas. O filósofo não parte de dados brutos, mas de conteúdos já elaborados pela tradição cultural — mitos, poemas, narrativas — que se fixaram no imaginário coletivo como modelos possíveis da realidade. A filosofia, portanto, não inventa o real; ela o revisita com novas ferramentas. Esse fundamento, porém, é negado por boa parte da filosofia moderna, que finge falar diretamente das coisas quando, de fato, opera com signos autorreferenciais.

Olavo observa que, se a formação imaginativa estiver ausente, o leitor de filosofia se tornará um iludido: manipulará fórmulas, mas sem saber de que falam, como aquele que troca figurinhas de futebol sem saber o que é futebol. O discurso filosófico se transforma, então, num sistema fechado de permutas convencionais, onde as palavras já não remetem a experiências, mas a outras palavras — e assim sucessivamente, até o esvaziamento total da linguagem.

Tomemos novamente Descartes como exemplo. A dúvida metódica — em sua forma pura — não é algo psicologicamente acessível. O que a torna crível é a força simbólica da imagem do “gênio maligno”, entidade que personifica o engano absoluto. A imagem é anterior ao conceito; é ela que sustenta o impacto dramático do argumento. Quando essa raiz imaginativa é negada, resta apenas o conceito “dúvida”, flutuando no vazio lógico. O leitor que não reconstrói essa imagem permanece cativo do formalismo.

A linguagem filosófica, por isso, deve ser lida como a camada superior de uma estrutura simbólica mais profunda. Husserl, ao propor a “redução fenomenológica”, oculta o drama interno de querer fundar a certeza absoluta em meio à fragilidade da consciência. Kant, ao distinguir os juízos sintéticos a priori, não parte de experiências evidentes, mas tenta restaurar a ordem num mundo já esvaziado de substância. Em ambos os casos, há uma operação linguística que pretende fundar, mas que de fato oculta.

Somente quem dispõe de vasto repertório imaginativo é capaz de inverter esse processo: decifrar o símbolo, reconstituir o drama, extrair a experiência. Essa operação exige treino — não de análise lógica, mas de leitura poética, de memória narrativa, de sensibilidade para a analogia. Por isso Olavo insiste: a linguagem conceitual é um segundo andar, construído sobre alicerces que pertencem à vida vivida, à imaginação cultivada, à palavra encarnada nas formas dramáticas.

Negar essa hierarquia, inverter suas ordens, é cair na patologia do discurso moderno: a crença de que a linguagem conceitual pode flutuar sem raízes, como se a mente fosse capaz de fundar sozinha um mundo sem corpos, sem vozes, sem lágrimas e sem morte. Mas a filosofia, quando autêntica, não é exercício de onipotência racional: é reconhecimento humilde de que todo conceito é apenas um nome — e que antes do nome, há sempre um rosto.

Capítulo II – A Filosofia como Drama Encoberto: Crítica à Camuflagem Moderna

Artigo 1 — A falsificação cartesiana: do gênio maligno ao método

A modernidade filosófica se inaugura sob o signo da dissimulação. René Descartes, frequentemente exaltado como o fundador do método racional moderno, constrói seu sistema sobre uma operação simbólica velada: transforma uma experiência psíquica concreta — de terror, desorientação e impotência diante do mal — num esquema lógico abstrato. Olavo de Carvalho identifica com precisão essa transfiguração fraudulenta, revelando o verdadeiro núcleo da filosofia cartesiana: não o rigor metodológico, mas uma estratégia defensiva de sobrevivência espiritual.

A dúvida metódica, apresentada como artifício racional neutro, é na verdade uma forma encoberta de angústia existencial. Os sonhos relatados por Descartes, nos quais o filósofo se vê atormentado por uma entidade demoníaca, são o dado real da experiência. O “gênio maligno” — figura central na Meditatio Prima — não é uma hipótese cética, mas a racionalização simbólica de uma experiência de ataque espiritual. O drama pessoal é disfarçado como metodologia filosófica. A filosofia, nesse gesto inaugural da modernidade, não parte da realidade, mas já de sua negação representacional.

A crítica de Olavo é direta: Descartes constrói um cenário onde ele controla todas as regras — um universo de discurso fechado, autossuficiente, imune à realidade externa. Ao fazer isso, impõe ao leitor um teatro mental hipnótico, onde os termos lógicos servem para deslocar e obliterar a experiência originária. O leitor que aceita o método cartesiano como instrumento neutro já foi capturado por esse jogo, já entrou na peça encenada, tornando-se parte de um experimento de manipulação intelectual.

Esse gesto inaugura uma linhagem inteira de filosofias camufladas: sistemas que se apresentam como descritivos do real, mas que, em verdade, apenas refletem o estado interior perturbado de seus autores. A linguagem deixa de ser meio de acesso à verdade e passa a operar como máscara. Olavo nota que esse padrão repete-se em Kant, Husserl e grande parte dos modernos: todos criam modelos formais que não buscam elucidar a realidade, mas protegê-los dela — ou controlá-la discursivamente.

Ao recuperar os dados biográficos de Descartes — especialmente os sonhos em que o filósofo se vê iludido por um demônio — Olavo realiza um trabalho análogo ao do intérprete literário que identifica o enredo oculto de uma peça a partir das falas de um único personagem. A dúvida cartesiana, longe de ser um ponto de partida metodológico, é o sintoma disfarçado de um colapso psíquico. A pretensão de encontrar um fundamento absolutamente seguro para o conhecimento nasce, então, do medo.

Assim, a filosofia cartesiana, que se oferece como libertação da dúvida, revela-se como cristalização da dúvida em forma de sistema. O que Descartes recusa é justamente o que o pensamento tradicional — de Platão a Santo Agostinho — reconhece: que o espírito humano é incapaz de fundar por si mesmo a verdade, e que somente um contato com o Ser — com Deus — pode conferir certeza. Ao recusar isso no início, mas recorrer a Deus no fim como último recurso, Descartes expõe involuntariamente o fracasso de seu projeto.

A modernidade, portanto, começa como renúncia: a renúncia à realidade concreta da experiência em nome da simulação lógica. Descartes oferece aos modernos um modelo de discurso que pretende ser universal, mas que é apenas pessoal — e doente. O método cartesiano, longe de fundar a filosofia, a afasta de seu eixo originário: o ser como presença, e a verdade como desvelamento do real. Filosofia passa a significar, desde então, o exílio.

Artigo 2 — O ocultamento da experiência na ciência moderna

A ciência moderna, frequentemente apresentada como triunfo da razão objetiva, nasce — conforme demonstra Olavo de Carvalho — sob o mesmo signo de camuflagem que caracteriza a filosofia cartesiana. Se em Descartes o teatro lógico esconde uma experiência psíquica de angústia e impotência diante do mal, na ciência moderna o formalismo matemático oculta a matriz esotérica e simbólica que lhe serve de base. A racionalidade científica não brota da pura observação neutra da natureza, mas emerge da transposição de experiências interiores, muitas vezes mágicas ou religiosas, em sistemas de mensuração e cálculo.

Olavo retoma o caso de Isaac Newton para exemplificar essa dissimulação. John Maynard Keynes revelou que os escritos alquímicos e teológicos de Newton superam em volume e profundidade seus escritos científicos. Isso indica que a chamada “ciência clássica” não é o fruto direto da razão experimental, mas a racionalização parcial de um universo simbólico mais vasto — universo este jamais inteiramente abandonado por seus fundadores. Newton, ao postular o “movimento eterno”, não formula um conceito claro e inteligível, mas introduz, sob disfarce técnico, um arquétipo teológico — o tempo infinito como reflexo da eternidade divina. A fórmula “movimento eterno” é logicamente contraditória, pois todo movimento implica tempo, e o que é eterno transcende o tempo.

O que Olavo denuncia é que esse tipo de contradição não é percebida pelo cientista moderno, pois este já foi adestrado a aceitar o esquema sem interrogar sua origem. A ciência moderna opera, assim, por meio de um duplo movimento: primeiro, ela extrai elementos simbólicos de experiências espirituais ou religiosas; depois, traduz esses elementos em linguagem técnica e esvazia sua carga de sentido original. O que resta é um conjunto de equações e modelos que funcionam no plano operacional, mas que não remetem mais ao real enquanto presença concreta.

Essa operação — própria ao espírito moderno — não é casual nem superficial. Trata-se de um projeto consciente de deslocamento da inteligência para um plano onde ela não possa mais reconhecer sua origem nem seus limites. Olavo identifica esse movimento como a construção de um “universo de discurso fechado”, onde apenas o que é passível de mensuração pode ser dito, e onde tudo o que escapa à mensuração é relegado ao silêncio ou ao desprezo. Assim, a ciência moderna — como a filosofia moderna — estabelece um novo dogma: o de que só o que pode ser quantificado é real.

Por trás disso, no entanto, pulsa ainda a experiência — recalcada, distorcida, oculta. Newton, por exemplo, não exclui Deus de sua cosmologia; ele o insere como garantidor da ordem cósmica. Mas a teologia é empacotada sob os nomes de força, gravitação, leis naturais. O mesmo ocorre com Darwin, cuja teoria da evolução — aparentemente fundada na observação empírica — reproduz, em novo código, os pressupostos esotéricos de Erasmus Darwin, seu avô, influenciado por correntes místicas iluministas.

A ciência moderna, portanto, não é apenas um modelo explicativo do mundo natural, mas um sistema de representação simbólica que perdeu consciência de sua origem. Ela transforma o cosmos em linguagem algébrica, mas o faz sobre fundações ocultas, herdadas da alquimia, da gnose e da cabala. Ao recusar explicitar esses fundamentos, entrega-se à ilusão de neutralidade, quando, na verdade, é tão comprometida simbolicamente quanto qualquer sistema religioso.

Olavo propõe uma leitura “arqueológica” da ciência moderna: escavar seus pressupostos, identificar seus símbolos camuflados, restituir ao discurso científico o drama humano que ele esconde. A crítica aqui não visa deslegitimar a ciência em seus êxitos práticos, mas desmascarar seu falso universalismo. Não existe “ciência pura”; o que existe são narrativas técnicas que se apoiam — consciente ou inconscientemente — sobre experiências espirituais não tematizadas.

O verdadeiro conhecimento exige lucidez simbólica: saber de onde vêm os conceitos, quais experiências os geraram, quais valores os sustentam. A ciência moderna, ao abdicar dessa lucidez, tornou-se o palco de uma ficção grandiosa — uma ficção que se pretende real, mas que só subsiste enquanto o olhar permanece anestesiado. O despertar filosófico consiste precisamente em ver o que está sob a máscara: não a objetividade, mas a imaginação fundante. E, com isso, o retorno ao real.

Artigo 3 — Newton, Descartes e a gênese da fraude epistêmica

A modernidade nasce da ruptura entre a realidade vivida e a linguagem que a expressa. Em Descartes e Newton, essa cisão atinge uma forma sistemática e deliberada, inaugurando uma nova era do conhecimento: aquela em que os termos são deslocados, os sentidos invertidos e as experiências originárias camufladas por construções simbólicas impermeáveis à crítica comum. Olavo de Carvalho denuncia esse movimento como fraude epistêmica — não um erro ingênuo, mas um projeto de ocultação racionalizada, sustentado por prestígio, coerção institucional e apagamento da tradição.

No caso de Descartes, a fraude se consuma no gesto de recobrir um colapso existencial com a máscara de um método racional. Ao invés de partir da experiência comum, ele a suspende com base em uma “dúvida radical” que é logicamente insustentável e psicologicamente inatingível. Ao fazê-lo, não elabora uma filosofia, mas sim um sistema simbólico de autodefesa — um mundo discursivo fechado, onde tudo é deduzido a partir de um ponto arbitrário que jamais pode ser confrontado com o mundo real. Essa operação inaugura uma patologia do pensamento: o desejo de fundar a verdade sobre o nada, ignorando a experiência, a tradição e a transcendência.

Com Newton, o esquema se aprofunda. A física newtoniana, embora fecunda em resultados técnicos, nasce de premissas ontologicamente falsas e teologicamente transfiguradas. O conceito de “movimento eterno”, por exemplo, é uma contradição em termos: movimento implica mudança, tempo, finitude; eternidade implica imobilidade, intemporalidade, plenitude. A justaposição desses termos não é um descuido, mas um símbolo deliberado que vela uma cosmologia oculta. Ao aceitar essa fórmula como base para toda uma física, os sucessores de Newton aceitaram também a exclusão do sentido — consentiram em trabalhar com conceitos que, embora operacionais, não significam mais nada.

Olavo mostra que a articulação entre ciência e ocultismo nos séculos XVII e XVIII é profunda. Newton não escondeu seus escritos teológicos e alquímicos — foram seus discípulos que os esconderam. A mesma operação ocorreu com os manuscritos de Nietzsche, manipulados por sua irmã, e com os dados reais sobre a história do pensamento medieval, apagados em nome de uma narrativa fantasiosa de dívida para com os árabes. A modernidade intelectual, segundo Olavo, é a sistematização de sucessivos encobrimentos, a construção de uma cadeia discursiva que se sustenta ao preço de extirpar a experiência real do horizonte de inteligibilidade.

Nesse panorama, a ciência e a filosofia modernas tornam-se, não expressões do saber humano, mas instrumentos de domínio simbólico. O novo “filósofo” já não é aquele que busca a verdade na experiência, mas aquele que manipula modelos para impor sistemas. O novo “cientista” já não é aquele que contempla o cosmos com reverência e horror, mas o técnico que ajusta parâmetros, ignorando que os conceitos que usa foram gerados por uma tradição espiritual que ele despreza ou desconhece.

Essa condição atinge o ponto de paroxismo no século XX. A tecnociência, herdeira direta de Newton e Descartes, desconsidera por completo a questão do sentido, limitando-se a operar com eficiência instrumental. A filosofia, reduzida a comentário de comentários, perdeu sua função existencial. Os centros universitários, conforme Olavo aponta ironicamente, tornaram-se redutos de uma linguagem empostada, onde os signos são intercambiáveis e a realidade, irrelevante.

A recuperação da filosofia — e da verdade — exige romper com esse teatro. É preciso devolver às palavras sua densidade ontológica, aos conceitos sua raiz imaginativa, à inteligência sua humildade diante do ser. Isso só é possível por meio de uma formação que reintegre imaginação, memória e realidade. Não se trata de recusar a lógica, mas de recolocá-la em seu lugar: não como fundadora da verdade, mas como instrumento subordinado à experiência originária. A fraude moderna se sustenta pela inversão dessa hierarquia. Desmascará-la é a primeira tarefa de todo pensamento que queira voltar a ser, de fato, filosófico.

Capítulo III – História, Memória e Reconhecimento: A Formação do Juízo Filosófico
Artigo 1 — A reconstituição dramática da verdade filosófica

O juízo filosófico não se forma por acúmulo de definições ou concatenação lógica de premissas, mas por reconhecimento — uma operação da inteligência enraizada na memória e na imaginação. Olavo de Carvalho demonstra que compreender uma filosofia é, antes de tudo, reconstruir o drama humano que a gerou. Por trás de cada doutrina, há uma situação vivida, um conflito latente, um antagonista real ou simbólico. O pensamento se organiza como teatro: há personagens, há vozes, há tensão. A verdade, nesse teatro, não é uma conclusão abstrata, mas o desvelamento da cena original.

Julian Marías já apontava que a estrutura de toda proposição filosófica autêntica é essencialmente negativa e dramática: A não é B, mas C. Todo pensamento afirma algo contra outra coisa. A negação pressupõe um interlocutor, um adversário, um contexto. Croce vai mais longe e afirma que não se entende uma filosofia sem saber contra quem ela se levanta. O juízo filosófico é inseparável da situação que o invoca — ele é resposta, nunca um monólogo puro. Por isso, compreendê-lo exige mais do que análise: exige imaginação histórica, capacidade de dramatização, sensibilidade para reconstruir o cenário ausente.

Olavo aplica esse princípio à leitura de sistemas inteiros. O leitor que recebe uma proposição filosófica fora do seu campo de combate a interpreta como axioma isolado. Mas uma proposição que afirma que “o real é apenas representação” (como em Schopenhauer) só adquire sentido se lida como resposta a uma tradição inteira que, antes disso, afirmava a inteligibilidade do ser. Se a réplica não é reconstituída, a tese se torna vazia.

Esse mesmo método dramático é utilizado pelos antigos — especialmente Aristóteles. Sua dialética não é um método formal, mas uma investigação sobre os conflitos entre opiniões respeitáveis (endoxa). Cada argumento carrega consigo um personagem, mesmo que implícito. O filósofo atua como juiz, mas também como narrador. A unidade do saber não é encontrada por via algébrica, mas por mediação entre vozes, por síntese entre experiências.

É por isso que o estudo filosófico exige formação literária. O filósofo que não domina os esquemas dramáticos da literatura — os tipos humanos, os conflitos simbólicos, os enredos possíveis — torna-se cego para o pano de fundo da doutrina. Ele vê a superfície, mas não enxerga o palco. Como diz Olavo, sem o domínio narrativo, não se sabe onde procurar. O reconhecimento da verdade depende da analogia com o que já foi vivido — seja pessoalmente, seja por meio das formas da tradição cultural.

A doxografia antiga — a tentativa de reconstruir sistemas perdidos a partir de citações e refutações — é exemplo disso. Não se trata de extrair “doutrinas” como se fossem dados, mas de reconstituir posições dramáticas, de ouvir vozes apagadas. O mesmo vale para a filosofia moderna: o pensamento de Kant, de Hegel, de Marx, de Heidegger só é compreensível quando se identifica a tensão vital que os move, o inimigo que combatem, o passado que renegam ou sublimam.

Assim, o juízo filosófico não é produto da razão pura, mas da razão encarnada — situada, histórica, dramática. Sem memória, sem imaginação, sem o reconhecimento de que as ideias são respostas a conflitos reais, o discurso filosófico transforma-se em exercício estéril. O filósofo, nesse modelo estéril, é um técnico da abstração. Mas o verdadeiro filósofo é um leitor da história humana — não da história cronológica, mas da história vivida, condensada em palavras, imagens e símbolos. Ele lê os conceitos como quem lê rostos.

Reconstruir o drama por trás do sistema é, portanto, o primeiro passo para julgar sua validade. E esse julgamento não se faz por regras fixas, mas por sabedoria acumulada, por maturação interior. O juízo filosófico é a capacidade de reconhecer que determinada proposição responde a determinada dor, a determinada dúvida, a determinado engano. Julgar é recordar. Pensar é reconhecer. A verdade, enfim, é o nome que damos à realidade quando conseguimos reconstituir o drama de onde ela emergiu.

Artigo 2 — A imaginação histórica como instrumento de desvelamento

O entendimento da filosofia — e da história da filosofia — exige não apenas análise lógica, mas um esforço de reconstituição imaginativa. Olavo de Carvalho afirma que não há saber possível sem a mediação da memória e da fantasia. Entender um sistema de pensamento, uma doutrina, uma escola filosófica, é situá-los dentro de uma sequência de atos humanos concretos, de confrontos espirituais reais. A história, nesse sentido, não é cronologia, mas drama. E o filósofo que ignora essa dimensão dramática torna-se incapaz de compreender até mesmo aquilo que repete.

A chamada “explicação sociológica” — que reduz os eventos históricos a “forças”, “tendências”, “processos de classe” ou “movimentos” — é, segundo Olavo, um álibi para a ignorância factual. Quando se fala, por exemplo, que “o capitalismo gerou o proletariado moderno”, substitui-se um conjunto de decisões históricas específicas, de indivíduos reais, por um termo abstrato que não designa ninguém. O verdadeiro saber histórico exige nomear os agentes. É necessário perguntar: quem fez o quê? Quando? Com que intenção? Qual foi a cadeia de decisões concreta?

A imaginação histórica, nesse contexto, é a capacidade de projetar-se sobre o passado para reconstituir, com base no verossímil, o que os documentos não dizem diretamente, mas apenas insinuam. Ela não é fantasia livre, mas reconstrução orientada por analogia com estruturas dramáticas já conhecidas. Aqui entra novamente o valor da literatura: os modelos narrativos fornecem à mente um repertório de formas possíveis do agir humano. Sem esses modelos, o investigador perde a bússola interpretativa e fica à mercê de teorias vazias.

Olavo aponta que a filosofia moderna, ao abandonar esse modo imaginativo de reconstrução, isolou-se em um discurso autorreferente, cego à realidade. Não se trata apenas de erro metodológico, mas de empobrecimento espiritual. O filósofo moderno, ao negar a importância da imaginação narrativa, tornou-se incapaz de reconhecer o que está diante dos seus olhos. Com isso, caiu na armadilha do formalismo — da crença de que a realidade pode ser pensada sem ser vivida, que pode ser deduzida sem ser recordada.

Reconstituir a trajetória de uma ideia, de um sistema filosófico, requer mais do que mapear influências ou classificar escolas. Exige reconstruir o momento em que determinada experiência humana foi transfigurada em linguagem, e, a partir daí, identificar o que foi omitido, o que foi sublimado, o que foi negado. Toda doutrina nasce de um trauma, de uma perplexidade, de uma dor ou de uma esperança. A filosofia, portanto, é inseparável da história interna do espírito que a formulou.

A tarefa do filósofo, então, é dupla: ele precisa descrever as ideias e remontar os atos de consciência que as originaram. E para isso, deve apelar ao seu próprio estoque de experiências simbólicas, acumulado pela literatura, pela arte, pela tradição oral e pela convivência humana. A imaginação histórica é o que permite ao intérprete atravessar a superfície do texto e alcançar a fonte de onde ele brotou.

Sem essa imaginação, toda tentativa de entender a história da filosofia transforma-se em caricatura. Como compreender verdadeiramente Platão sem reconhecer no Sócrates de seus diálogos um personagem que revive um drama vivido? Como julgar Spinoza sem compreender o mundo espiritual da tradição judaica que ele nega e reformula? Como avaliar Kant sem notar que sua crítica é uma resposta tardia ao colapso da metafísica racionalista?

Portanto, a imaginação histórica, longe de ser um luxo ou adereço, é o próprio instrumento do juízo filosófico. Ela desvela o que a linguagem técnica encobre. Ela reconecta o discurso à vida. E, sobretudo, ela protege o pensamento da ilusão autossuficiente da abstração. O filósofo que não imagina não compreende. O que não compreende, apenas repete. E o que apenas repete, perpetua a mentira. Reconstituir é lembrar. E lembrar é, sempre, resistir à amnésia do sistema.

Artigo 3 — O empobrecimento do pensamento e a destruição da herança cultural

A inteligência, quando desligada da experiência e da imaginação, degenera inevitavelmente em mecanismo. Olavo de Carvalho denuncia, com precisão cirúrgica, esse processo de empobrecimento intelectual que tomou conta do ambiente universitário moderno — especialmente no Brasil. A linguagem acadêmica tornou-se um código fechado, autorreferente, que já não comunica o real, mas apenas reproduz sua própria estrutura. O que se ensina não é filosofia, mas um idioma técnico, socialmente validado por seus pares, mas destituído de relação com a verdade.

Esse processo é inseparável da destruição da herança cultural. Ao romper com o patrimônio da literatura clássica, da imaginação simbólica e da experiência religiosa que moldaram a consciência ocidental, o ensino superior moderno produziu gerações de especialistas incapazes de compreender o mundo que os cerca. Formou-se, assim, uma elite funcionalmente analfabeta do ponto de vista existencial: dominam métodos, mas desconhecem o sentido; manejam conceitos, mas não sabem do que falam.

Olavo ilustra isso com ironia amarga ao lembrar do professor da PUC que se recusava a “descer do seu universo semântico”. A anedota torna-se retrato de uma patologia: o sujeito acadêmico moderno já não reconhece que sua linguagem é uma construção frágil, assentada sobre um mundo pré-existente de experiências comuns. Ele se tranca num vocabulário que só é compreensível a seus pares e se protege contra qualquer apelo à realidade como se este fosse um golpe baixo. O contato com o mundo é visto como uma ameaça ao sistema discursivo — e por isso mesmo deve ser evitado.

Essa ruptura com a experiência empírica e simbólica tem consequências devastadoras. O filósofo torna-se um prisioneiro de signos. A literatura, em vez de ser lida como expressão da alma humana, passa a ser analisada como jogo estrutural. A história, em vez de narrar os atos de pessoas reais, converte-se em gráfico sociológico. A realidade é substituída por simulações cada vez mais pobres, e o pensamento, por sua vez, vai se atrofiando — até restar apenas um casulo discursivo, fechado sobre si mesmo.

Olavo mostra que esse empobrecimento não se dá apenas no plano intelectual, mas também moral e espiritual. O desprezo pela herança dos clássicos é o desprezo pela alma humana tal como foi experimentada, compreendida e transmitida pelas gerações anteriores. Abandonar os grandes livros, as grandes imagens, as grandes histórias, é deixar de pensar com profundidade. É desistir da humanidade. É ceder ao simulacro da técnica, à superstição da modernidade, à ilusão de que é possível pensar sem sentir, julgar sem imaginar, raciocinar sem lembrar.

O caso mais sintomático dessa crise, segundo Olavo, é a exclusão deliberada de Mário Ferreira dos Santos da história da filosofia brasileira. Enquanto os departamentos de filosofia discutiam modismos importados e produziam discursos inócuos, o maior pensador do país era ignorado. Essa exclusão não é apenas negligência: é o reflexo de uma cultura que perdeu o critério do real. A universidade discute o que não está acontecendo e ignora o que está. Ela já não espelha a realidade, mas um teatro hermético onde só entra quem fala a língua autorizada.

Contra isso, Olavo propõe um retorno integral à experiência. Um retorno à literatura como escola da alma, à história como narrativa de atos humanos, à filosofia como dramatização de conflitos espirituais. Pensar é recordar, imaginar, compreender. Pensar é restaurar a unidade perdida entre linguagem e vida. E essa restauração não será feita por técnicas ou teorias, mas por um ato de atenção amorosa ao real — um ato que exige humildade, coragem e fidelidade à verdade. Sem isso, resta apenas o ruído. A filosofia morre, e a cultura afunda no vazio.


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