Capítulo
I – A Imaginação como Condição da Inteligência Filosófica
Artigo 1: A prioridade da experiência sobre a
lógica e a reconstituição do vivido
Artigo 2: A literatura como fundamento da
compreensão filosófica
Artigo 3: A linguagem dos conceitos como tradução
do mundo simbólico
Capítulo II –
A Filosofia como Drama Encoberto: Crítica à Camuflagem Moderna
Artigo 1: A falsificação cartesiana: do gênio
maligno ao método
Artigo 2: O ocultamento da experiência na ciência
moderna
Artigo 3: Newton, Descartes e a gênese da fraude
epistêmica
Capítulo III
– História, Memória e Reconhecimento: A Formação do Juízo Filosófico
Artigo 1: A reconstituição dramática da verdade
filosófica
Artigo 2: A imaginação histórica como instrumento
de desvelamento
Artigo 3: O empobrecimento do pensamento e a
destruição da herança cultural
Capítulo I – A Imaginação como Condição da Inteligência Filosófica
Artigo 1 — A prioridade da experiência sobre a lógica e a
reconstituição do vivido
Todo empreendimento filosófico digno desse nome principia na
experiência concreta, jamais na abstração pura. Olavo de Carvalho insiste que a
lógica, enquanto “articulação das possibilidades”, carece de substância se não
estiver ancorada nas vivências efetivas que a antecedem. Essa tese ecoa
Aristóteles, cuja teoria dos quatro discursos postula a imaginação como
condição sine qua non da investigação racional: não há logos sem phantasia. A
imagem funda o conceito. Benedetto Croce, em Logica come
Scienza del Concetto Puro, corrobora o ponto ao afirmar que a
atividade lógica pressupõe representações intuitivas; suprimidas essas
intuições, a razão degenera em mero jogo combinatório de símbolos.
Karl Bühler, por sua vez, esclarece o problema sob o prisma
linguístico: toda proposição carrega dimensões expressiva, apelativa e
representacional. Ignorar a primeira — a que revela o estado interior do
falante — ou apartá-la da segunda, gera discurso oco, incapaz de remeter-se ao
mundo vivido. Deste ponto de vista, o filósofo que se isola em construções
formais repete a sorte do cambista que manipula papel-moeda sem lastro em bens
reais; o circuito fecha-se sobre si mesmo e perde valor de verdade.
René Descartes fornece o contra-exemplo paradigmático. As Meditationes propõem a dúvida hiperbólica como método,
mas tal dúvida radical é psicologicamente impossível: formular qualquer
interrogação requer ao menos uma certeza tácita que funcione como ponto de
contraste. Quando Descartes declara-se suspenso em incerteza absoluta, faz uso
de metáfora dramática para velar angústias existenciais específicas — sonhos
demoníacos registrados em suas correspondências. A “dúvida” não é, portanto,
categoria lógica originária, mas transposição literária de um temor pessoal. Ao
converter essa experiência em fórmula universal, o filósofo inaugura um estilo
de camuflagem que se tornará marca da modernidade: a construção de teatros
conceituais onde o leitor, se não reconstituir o vivido subjacente, permanecerá
hipnotizado por encadeamentos que parecem rigorosos, embora flutuem num vácuo
ontológico.
Tal operação atinge ápice na física newtoniana. Isaac Newton fala
de “movimento eterno” — expressão autocontraditória, já que o que é eterno
transcende mudança temporal. A chave desse paradoxo reside na cosmologia
alquímico-teológica que permeia seus manuscritos inéditos, redescobertos por
John Maynard Keynes. Quando o “movimento eterno” ingressa na mecânica como
simples artifício matemático, a imaginação religiosa que o gerou é amputada do
discurso científico; contudo, ela continua a orientar, de modo subterrâneo, o
horizonte de possíveis da ciência moderna.
Leszek Kołakowski demonstrou como fenômeno análogo tolhe a
fenomenologia de Edmund Husserl, cujo projeto de redução ao ego transcendental
exige suspender pressupostos que, na prática, nunca deixam de influir sobre o
investigador. Do mesmo modo, Immanuel Kant erige a crítica da razão pura sobre
condições a priori que, longe de iluminar a experiência, a recobrem sob nova
camada de abstração. A filosofia passa a valer-se de conceitos para ocultar,
não para aclarar, o real.
Para escapar a essa armadilha, o exercício filosófico deve retomar
o gesto aristotélico: investigar a doutrina de um autor à luz do drama
existencial que a motiva, reconstituindo imaginativamente o elo entre vivência
e forma. Sem esse labor de anamnesis, a leitura degrada-se em troca de signos
destituída de densidade, denunciada por Olavo nas produções acadêmicas que
ignoram substância de experiência e se contentam em intertextualidades
estéreis.
A unidade do
conhecimento na unidade da consciência — meta assintótica da filosofia —
realiza-se tão somente quando a razão reconhece seu fundamento na percepção
primeira e, ao mesmo tempo, devolve à experiência sua inteligibilidade perdida.
A lógica não é abolida, mas ordenada ao serviço da memória e da imaginação, que
lhe fornecem matéria. O pensamento que se desgarra dessa fonte converte-se em
prestidigitação dialética, bela talvez, porém vazia. Compreender esta
hierarquia significa restituir ao logos seu estatuto de instrumento e não de
tirano da realidade, permitindo que o filósofo, longe de fabricar mundos
fictícios, dê testemunho veraz do ser que se manifesta — sempre, antes de tudo,
como experiência viva.
Artigo
2 — A literatura como fundamento da compreensão filosófica
A literatura não é um apêndice ornamental da formação filosófica,
mas seu pré-requisito mais decisivo. Na exposição da Aula 05, Olavo de Carvalho
articula com rigor a tese de que a inteligência conceitual é inoperante sem um
vasto patrimônio imaginativo. A razão, antes de proceder à análise, deve dispor
de formas reconhecíveis sobre as quais possa operar. A familiaridade com as
estruturas narrativas, os tipos humanos e os esquemas dramáticos presentes na
tradição literária é o que permite à consciência identificar e interpretar os
sentidos latentes de um discurso filosófico.
O filósofo, nesse horizonte, não é um criador autônomo, mas um
intérprete dotado de alta sensibilidade para os modos da existência. Isso
exige, antes de tudo, conhecer o que a humanidade já viveu, já sofreu, já
compreendeu poeticamente. Olavo retoma aqui um princípio de Aristóteles: a
filosofia não começa do zero, mas da confrontação com as opiniões dos sábios (endoxa), ou seja, com as sedimentações simbólicas da
experiência coletiva. Tal princípio é obliterado pela mentalidade universitária
moderna, que isola o discurso filosófico num universo técnico fechado, surdo ao
drama humano que lhe dá origem.
A crítica de Olavo se dirige frontalmente ao estruturalismo, ao
desconstrucionismo e às práticas acadêmicas de análise literária contemporânea,
que se especializaram em extirpar da narrativa sua substância humana. Nesse
sentido, nomes como Derrida, Barthes e companhia representam, não um avanço no
pensamento, mas um retrocesso brutal — a conversão do intelecto em máquina de
rotulagem formal. A leitura, que deveria ser um ato de reencontro com a
realidade possível do mundo e do outro, degrada-se em jogo narcisista com
signos autorreferenciais.
Contra essa desumanização, Olavo propõe o retorno à literatura
como escola da alma. Obras como Dom Quixote,
Crime e Castigo, A Divina
Comédia ou O Bravo
Soldado Schweik não apenas entretêm ou sensibilizam: elas educam a
percepção ao apresentar situações-modelo da existência. Como destaca Northrop
Frye — citado indiretamente por Olavo —, os grandes livros fundam arquétipos.
Ao internalizá-los, o leitor torna-se capaz de reconhecer o drama da realidade
quando este se desenrola diante de si.
A filosofia, neste cenário, deve ser lida como dramaturgia invertida:
o filósofo não expõe sua experiência em forma narrativa, mas a encapsula em
conceitos. O leitor, então, deve proceder em sentido inverso — extrair do
enunciado lógico o enredo vivido que o gerou. Só assim a proposição filosófica
se ilumina. Descartes, ao falar de “dúvida radical”, não descreve uma
experiência logicamente possível, mas mascara um estado interior específico: a
aflição de ser enganado por um poder superior (o “gênio maligno”). Ao acessar
esse pano de fundo, a filosofia cartesiana deixa de ser apenas um sistema para
tornar-se o testemunho de um homem em conflito com sua impotência diante do
real.
A exigência de reconstruir esse drama exige, portanto, que o
leitor possua familiaridade com os repertórios simbólicos da literatura. Sem isso,
não há como identificar, por analogia, as estruturas de situação que atravessam
o discurso filosófico. A filosofia torna-se um enigma estéril, uma cifra sem
chave.
Por essa razão, o filósofo ignorante da tradição literária é cego
diante das experiências alheias, incapaz de reconhecer nelas os traços do seu
próprio pensamento. Sua linguagem torna-se hermética não por profundidade, mas
por ausência de mediação. Como adverte Olavo, quem deseja compreender filosofia
deve ler tudo: tragédia grega, Bíblia, teatro clássico, romance moderno. Não
como erudição, mas como apropriação de formas. A imaginação, quando assim
enriquecida, não apenas decifra os símbolos do pensamento; ela se converte no
solo onde o próprio pensamento enraíza.
Portanto,
longe de ser um luxo, a literatura é a iniciação. Toda grande filosofia supõe,
silenciosamente, um mundo possível narrado por outros. E a sabedoria consiste,
antes de tudo, em reconhecer esse mundo — e nele, a nós mesmos.
Artigo
3 — A linguagem dos conceitos como tradução do mundo simbólico
A linguagem filosófica, apesar de sua aparência autônoma e
técnica, é secundária. Ela não nasce do vazio nem opera em terreno neutro:
constitui-se como tradução, estilização e depuração de um mundo anterior — o
mundo das imagens, das narrativas e das formas simbólicas. Olavo de Carvalho
sublinha esse ponto com insistência: todo conceito emerge de um fundo
imaginativo e afetivo, ou seja, de uma experiência que, antes de ser pensada,
foi vivida e representada.
Não é por acaso que Aristóteles, ao definir a dialética, a entende
como um embate entre opiniões qualificadas. O filósofo não parte de dados
brutos, mas de conteúdos já elaborados pela tradição cultural — mitos, poemas,
narrativas — que se fixaram no imaginário coletivo como modelos possíveis da
realidade. A filosofia, portanto, não inventa o real; ela o revisita com novas
ferramentas. Esse fundamento, porém, é negado por boa parte da filosofia
moderna, que finge falar diretamente das coisas quando, de fato, opera com
signos autorreferenciais.
Olavo observa que, se a formação imaginativa estiver ausente, o
leitor de filosofia se tornará um iludido: manipulará fórmulas, mas sem saber
de que falam, como aquele que troca figurinhas de futebol sem saber o que é futebol.
O discurso filosófico se transforma, então, num sistema fechado de permutas
convencionais, onde as palavras já não remetem a experiências, mas a outras
palavras — e assim sucessivamente, até o esvaziamento total da linguagem.
Tomemos novamente Descartes como exemplo. A dúvida metódica — em
sua forma pura — não é algo psicologicamente acessível. O que a torna crível é
a força simbólica da imagem do “gênio maligno”, entidade que personifica o
engano absoluto. A imagem é anterior ao conceito; é ela que sustenta o impacto
dramático do argumento. Quando essa raiz imaginativa é negada, resta apenas o
conceito “dúvida”, flutuando no vazio lógico. O leitor que não reconstrói essa
imagem permanece cativo do formalismo.
A linguagem filosófica, por isso, deve ser lida como a camada
superior de uma estrutura simbólica mais profunda. Husserl, ao propor a
“redução fenomenológica”, oculta o drama interno de querer fundar a certeza
absoluta em meio à fragilidade da consciência. Kant, ao distinguir os juízos
sintéticos a priori, não parte de experiências evidentes, mas tenta restaurar a
ordem num mundo já esvaziado de substância. Em ambos os casos, há uma operação
linguística que pretende fundar, mas que de fato oculta.
Somente quem dispõe de vasto repertório imaginativo é capaz de
inverter esse processo: decifrar o símbolo, reconstituir o drama, extrair a
experiência. Essa operação exige treino — não de análise lógica, mas de leitura
poética, de memória narrativa, de sensibilidade para a analogia. Por isso Olavo
insiste: a linguagem conceitual é um segundo andar, construído sobre alicerces
que pertencem à vida vivida, à imaginação cultivada, à palavra encarnada nas
formas dramáticas.
Negar essa hierarquia, inverter suas ordens, é cair na patologia do discurso moderno: a crença de que a linguagem conceitual pode flutuar sem raízes, como se a mente fosse capaz de fundar sozinha um mundo sem corpos, sem vozes, sem lágrimas e sem morte. Mas a filosofia, quando autêntica, não é exercício de onipotência racional: é reconhecimento humilde de que todo conceito é apenas um nome — e que antes do nome, há sempre um rosto.
Capítulo II – A Filosofia como Drama Encoberto: Crítica à Camuflagem Moderna
Artigo 1 — A falsificação cartesiana: do gênio maligno ao métodoA modernidade filosófica se inaugura sob o signo da dissimulação.
René Descartes, frequentemente exaltado como o fundador do método racional
moderno, constrói seu sistema sobre uma operação simbólica velada: transforma
uma experiência psíquica concreta — de terror, desorientação e impotência
diante do mal — num esquema lógico abstrato. Olavo de Carvalho identifica com
precisão essa transfiguração fraudulenta, revelando o verdadeiro núcleo da
filosofia cartesiana: não o rigor metodológico, mas uma estratégia defensiva de
sobrevivência espiritual.
A dúvida metódica, apresentada como artifício racional neutro, é
na verdade uma forma encoberta de angústia existencial. Os sonhos relatados por
Descartes, nos quais o filósofo se vê atormentado por uma entidade demoníaca,
são o dado real da experiência. O “gênio maligno” — figura central na Meditatio Prima — não é uma hipótese cética, mas a
racionalização simbólica de uma experiência de ataque espiritual. O drama
pessoal é disfarçado como metodologia filosófica. A filosofia, nesse gesto
inaugural da modernidade, não parte da realidade, mas já de sua negação
representacional.
A crítica de Olavo é direta: Descartes constrói um cenário onde
ele controla todas as regras — um universo de discurso fechado,
autossuficiente, imune à realidade externa. Ao fazer isso, impõe ao leitor um
teatro mental hipnótico, onde os termos lógicos servem para deslocar e
obliterar a experiência originária. O leitor que aceita o método cartesiano
como instrumento neutro já foi capturado por esse jogo, já entrou na peça
encenada, tornando-se parte de um experimento de manipulação intelectual.
Esse gesto inaugura uma linhagem inteira de filosofias camufladas:
sistemas que se apresentam como descritivos do real, mas que, em verdade,
apenas refletem o estado interior perturbado de seus autores. A linguagem deixa
de ser meio de acesso à verdade e passa a operar como máscara. Olavo nota que
esse padrão repete-se em Kant, Husserl e grande parte dos modernos: todos criam
modelos formais que não buscam elucidar a realidade, mas protegê-los dela — ou
controlá-la discursivamente.
Ao recuperar os dados biográficos de Descartes — especialmente os
sonhos em que o filósofo se vê iludido por um demônio — Olavo realiza um
trabalho análogo ao do intérprete literário que identifica o enredo oculto de
uma peça a partir das falas de um único personagem. A dúvida cartesiana, longe
de ser um ponto de partida metodológico, é o sintoma disfarçado de um colapso
psíquico. A pretensão de encontrar um fundamento absolutamente seguro para o
conhecimento nasce, então, do medo.
Assim, a filosofia cartesiana, que se oferece como libertação da
dúvida, revela-se como cristalização da dúvida em forma de sistema. O que
Descartes recusa é justamente o que o pensamento tradicional — de Platão a
Santo Agostinho — reconhece: que o espírito humano é incapaz de fundar por si
mesmo a verdade, e que somente um contato com o Ser — com Deus — pode conferir
certeza. Ao recusar isso no início, mas recorrer a Deus no fim como último
recurso, Descartes expõe involuntariamente o fracasso de seu projeto.
A modernidade, portanto, começa como renúncia: a renúncia à realidade concreta da experiência em nome da simulação lógica. Descartes oferece aos modernos um modelo de discurso que pretende ser universal, mas que é apenas pessoal — e doente. O método cartesiano, longe de fundar a filosofia, a afasta de seu eixo originário: o ser como presença, e a verdade como desvelamento do real. Filosofia passa a significar, desde então, o exílio.
Artigo 2 — O ocultamento da experiência na ciência moderna
A ciência moderna, frequentemente apresentada como triunfo da
razão objetiva, nasce — conforme demonstra Olavo de Carvalho — sob o mesmo
signo de camuflagem que caracteriza a filosofia cartesiana. Se em Descartes o
teatro lógico esconde uma experiência psíquica de angústia e impotência diante
do mal, na ciência moderna o formalismo matemático oculta a matriz esotérica e
simbólica que lhe serve de base. A racionalidade científica não brota da pura
observação neutra da natureza, mas emerge da transposição de experiências
interiores, muitas vezes mágicas ou religiosas, em sistemas de mensuração e
cálculo.
Olavo retoma o caso de Isaac Newton para exemplificar essa
dissimulação. John Maynard Keynes revelou que os escritos alquímicos e
teológicos de Newton superam em volume e profundidade seus escritos
científicos. Isso indica que a chamada “ciência clássica” não é o fruto direto
da razão experimental, mas a racionalização parcial de um universo simbólico
mais vasto — universo este jamais inteiramente abandonado por seus fundadores.
Newton, ao postular o “movimento eterno”, não formula um conceito claro e
inteligível, mas introduz, sob disfarce técnico, um arquétipo teológico — o
tempo infinito como reflexo da eternidade divina. A fórmula “movimento eterno”
é logicamente contraditória, pois todo movimento implica tempo, e o que é
eterno transcende o tempo.
O que Olavo denuncia é que esse tipo de contradição não é
percebida pelo cientista moderno, pois este já foi adestrado a aceitar o
esquema sem interrogar sua origem. A ciência moderna opera, assim, por meio de
um duplo movimento: primeiro, ela extrai elementos simbólicos de experiências
espirituais ou religiosas; depois, traduz esses elementos em linguagem técnica
e esvazia sua carga de sentido original. O que resta é um conjunto de equações
e modelos que funcionam no plano operacional, mas que não remetem mais ao real
enquanto presença concreta.
Essa operação — própria ao espírito moderno — não é casual nem
superficial. Trata-se de um projeto consciente de deslocamento da inteligência
para um plano onde ela não possa mais reconhecer sua origem nem seus limites.
Olavo identifica esse movimento como a construção de um “universo de discurso
fechado”, onde apenas o que é passível de mensuração pode ser dito, e onde tudo
o que escapa à mensuração é relegado ao silêncio ou ao desprezo. Assim, a
ciência moderna — como a filosofia moderna — estabelece um novo dogma: o de que
só o que pode ser quantificado é real.
Por trás disso, no entanto, pulsa ainda a experiência — recalcada,
distorcida, oculta. Newton, por exemplo, não exclui Deus de sua cosmologia; ele
o insere como garantidor da ordem cósmica. Mas a teologia é empacotada sob os
nomes de força, gravitação, leis naturais. O mesmo ocorre com Darwin, cuja teoria
da evolução — aparentemente fundada na observação empírica — reproduz, em novo
código, os pressupostos esotéricos de Erasmus Darwin, seu avô, influenciado por
correntes místicas iluministas.
A ciência moderna, portanto, não é apenas um modelo explicativo do
mundo natural, mas um sistema de representação simbólica que perdeu consciência
de sua origem. Ela transforma o cosmos em linguagem algébrica, mas o faz sobre
fundações ocultas, herdadas da alquimia, da gnose e da cabala. Ao recusar
explicitar esses fundamentos, entrega-se à ilusão de neutralidade, quando, na
verdade, é tão comprometida simbolicamente quanto qualquer sistema religioso.
Olavo propõe uma leitura “arqueológica” da ciência moderna:
escavar seus pressupostos, identificar seus símbolos camuflados, restituir ao
discurso científico o drama humano que ele esconde. A crítica aqui não visa
deslegitimar a ciência em seus êxitos práticos, mas desmascarar seu falso
universalismo. Não existe “ciência pura”; o que existe são narrativas técnicas
que se apoiam — consciente ou inconscientemente — sobre experiências
espirituais não tematizadas.
O verdadeiro
conhecimento exige lucidez simbólica: saber de onde vêm os conceitos, quais
experiências os geraram, quais valores os sustentam. A ciência moderna, ao
abdicar dessa lucidez, tornou-se o palco de uma ficção grandiosa — uma ficção
que se pretende real, mas que só subsiste enquanto o olhar permanece
anestesiado. O despertar filosófico consiste precisamente em ver o que está sob
a máscara: não a objetividade, mas a imaginação fundante. E, com isso, o
retorno ao real.
Artigo
3 — Newton, Descartes e a gênese da fraude epistêmica
A modernidade nasce da ruptura entre a realidade vivida e a
linguagem que a expressa. Em Descartes e Newton, essa cisão atinge uma forma
sistemática e deliberada, inaugurando uma nova era do conhecimento: aquela em
que os termos são deslocados, os sentidos invertidos e as experiências
originárias camufladas por construções simbólicas impermeáveis à crítica comum.
Olavo de Carvalho denuncia esse movimento como fraude epistêmica — não um erro
ingênuo, mas um projeto de ocultação racionalizada, sustentado por prestígio,
coerção institucional e apagamento da tradição.
No caso de Descartes, a fraude se consuma no gesto de recobrir um
colapso existencial com a máscara de um método racional. Ao invés de partir da
experiência comum, ele a suspende com base em uma “dúvida radical” que é
logicamente insustentável e psicologicamente inatingível. Ao fazê-lo, não
elabora uma filosofia, mas sim um sistema simbólico de autodefesa — um mundo
discursivo fechado, onde tudo é deduzido a partir de um ponto arbitrário que
jamais pode ser confrontado com o mundo real. Essa operação inaugura uma
patologia do pensamento: o desejo de fundar a verdade sobre o nada, ignorando a
experiência, a tradição e a transcendência.
Com Newton, o esquema se aprofunda. A física newtoniana, embora
fecunda em resultados técnicos, nasce de premissas ontologicamente falsas e
teologicamente transfiguradas. O conceito de “movimento eterno”, por exemplo, é
uma contradição em termos: movimento implica mudança, tempo, finitude;
eternidade implica imobilidade, intemporalidade, plenitude. A justaposição
desses termos não é um descuido, mas um símbolo deliberado que vela uma
cosmologia oculta. Ao aceitar essa fórmula como base para toda uma física, os
sucessores de Newton aceitaram também a exclusão do sentido — consentiram em
trabalhar com conceitos que, embora operacionais, não significam mais nada.
Olavo mostra que a articulação entre ciência e ocultismo nos
séculos XVII e XVIII é profunda. Newton não escondeu seus escritos teológicos e
alquímicos — foram seus discípulos que os esconderam. A mesma operação ocorreu
com os manuscritos de Nietzsche, manipulados por sua irmã, e com os dados reais
sobre a história do pensamento medieval, apagados em nome de uma narrativa
fantasiosa de dívida para com os árabes. A modernidade intelectual, segundo
Olavo, é a sistematização de sucessivos encobrimentos, a construção de uma
cadeia discursiva que se sustenta ao preço de extirpar a experiência real do
horizonte de inteligibilidade.
Nesse panorama, a ciência e a filosofia modernas tornam-se, não
expressões do saber humano, mas instrumentos de domínio simbólico. O novo
“filósofo” já não é aquele que busca a verdade na experiência, mas aquele que
manipula modelos para impor sistemas. O novo “cientista” já não é aquele que
contempla o cosmos com reverência e horror, mas o técnico que ajusta
parâmetros, ignorando que os conceitos que usa foram gerados por uma tradição
espiritual que ele despreza ou desconhece.
Essa condição atinge o ponto de paroxismo no século XX. A
tecnociência, herdeira direta de Newton e Descartes, desconsidera por completo
a questão do sentido, limitando-se a operar com eficiência instrumental. A
filosofia, reduzida a comentário de comentários, perdeu sua função existencial.
Os centros universitários, conforme Olavo aponta ironicamente, tornaram-se
redutos de uma linguagem empostada, onde os signos são intercambiáveis e a
realidade, irrelevante.
A recuperação
da filosofia — e da verdade — exige romper com esse teatro. É preciso devolver
às palavras sua densidade ontológica, aos conceitos sua raiz imaginativa, à
inteligência sua humildade diante do ser. Isso só é possível por meio de uma
formação que reintegre imaginação, memória e realidade. Não se trata de recusar
a lógica, mas de recolocá-la em seu lugar: não como fundadora da verdade, mas
como instrumento subordinado à experiência originária. A fraude moderna se
sustenta pela inversão dessa hierarquia. Desmascará-la é a primeira tarefa de todo
pensamento que queira voltar a ser, de fato, filosófico.
Capítulo
III – História, Memória e Reconhecimento: A Formação do Juízo Filosófico
Artigo 1 — A reconstituição dramática da verdade filosófica
O juízo filosófico não se forma por acúmulo de definições ou
concatenação lógica de premissas, mas por reconhecimento — uma operação da
inteligência enraizada na memória e na imaginação. Olavo de Carvalho demonstra
que compreender uma filosofia é, antes de tudo, reconstruir o drama humano que
a gerou. Por trás de cada doutrina, há uma situação vivida, um conflito
latente, um antagonista real ou simbólico. O pensamento se organiza como
teatro: há personagens, há vozes, há tensão. A verdade, nesse teatro, não é uma
conclusão abstrata, mas o desvelamento da cena original.
Julian Marías já apontava que a estrutura de toda proposição
filosófica autêntica é essencialmente negativa e dramática: A
não é B, mas C. Todo pensamento afirma algo contra outra coisa. A
negação pressupõe um interlocutor, um adversário, um contexto. Croce vai mais
longe e afirma que não se entende uma filosofia sem saber contra quem ela se
levanta. O juízo filosófico é inseparável da situação que o invoca — ele é
resposta, nunca um monólogo puro. Por isso, compreendê-lo exige mais do que
análise: exige imaginação histórica, capacidade de dramatização, sensibilidade
para reconstruir o cenário ausente.
Olavo aplica esse princípio à leitura de sistemas inteiros. O
leitor que recebe uma proposição filosófica fora do seu campo de combate a
interpreta como axioma isolado. Mas uma proposição que afirma que “o real é apenas representação” (como em Schopenhauer)
só adquire sentido se lida como resposta a uma tradição inteira que, antes
disso, afirmava a inteligibilidade do ser. Se a réplica não é reconstituída, a
tese se torna vazia.
Esse mesmo método dramático é utilizado pelos antigos —
especialmente Aristóteles. Sua dialética não é um método formal, mas uma
investigação sobre os conflitos entre opiniões respeitáveis (endoxa). Cada argumento carrega consigo um personagem,
mesmo que implícito. O filósofo atua como juiz, mas também como narrador. A
unidade do saber não é encontrada por via algébrica, mas por mediação entre
vozes, por síntese entre experiências.
É por isso que o estudo filosófico exige formação literária. O
filósofo que não domina os esquemas dramáticos da literatura — os tipos
humanos, os conflitos simbólicos, os enredos possíveis — torna-se cego para o
pano de fundo da doutrina. Ele vê a superfície, mas não enxerga o palco. Como
diz Olavo, sem o domínio narrativo, não se sabe onde procurar. O reconhecimento
da verdade depende da analogia com o que já foi vivido — seja pessoalmente,
seja por meio das formas da tradição cultural.
A doxografia antiga — a tentativa de reconstruir sistemas perdidos
a partir de citações e refutações — é exemplo disso. Não se trata de extrair
“doutrinas” como se fossem dados, mas de reconstituir posições dramáticas, de
ouvir vozes apagadas. O mesmo vale para a filosofia moderna: o pensamento de
Kant, de Hegel, de Marx, de Heidegger só é compreensível quando se identifica a
tensão vital que os move, o inimigo que combatem, o passado que renegam ou
sublimam.
Assim, o juízo filosófico não é produto da razão pura, mas da
razão encarnada — situada, histórica, dramática. Sem memória, sem imaginação,
sem o reconhecimento de que as ideias são respostas a conflitos reais, o
discurso filosófico transforma-se em exercício estéril. O filósofo, nesse
modelo estéril, é um técnico da abstração. Mas o verdadeiro filósofo é um leitor
da história humana — não da história cronológica, mas da história vivida,
condensada em palavras, imagens e símbolos. Ele lê os conceitos como quem lê
rostos.
Reconstruir o
drama por trás do sistema é, portanto, o primeiro passo para julgar sua
validade. E esse julgamento não se faz por regras fixas, mas por sabedoria
acumulada, por maturação interior. O juízo filosófico é a capacidade de
reconhecer que determinada proposição responde a determinada dor, a determinada
dúvida, a determinado engano. Julgar é recordar. Pensar é reconhecer. A
verdade, enfim, é o nome que damos à realidade quando conseguimos reconstituir
o drama de onde ela emergiu.
Artigo
2 — A imaginação histórica como instrumento de desvelamento
O entendimento da filosofia — e da história da filosofia — exige
não apenas análise lógica, mas um esforço de reconstituição imaginativa. Olavo
de Carvalho afirma que não há saber possível sem a mediação da memória e da
fantasia. Entender um sistema de pensamento, uma doutrina, uma escola
filosófica, é situá-los dentro de uma sequência de atos humanos concretos, de
confrontos espirituais reais. A história, nesse sentido, não é cronologia, mas
drama. E o filósofo que ignora essa dimensão dramática torna-se incapaz de
compreender até mesmo aquilo que repete.
A chamada “explicação sociológica” — que reduz os eventos
históricos a “forças”, “tendências”, “processos de classe” ou “movimentos” — é,
segundo Olavo, um álibi para a ignorância factual. Quando se fala, por exemplo,
que “o capitalismo gerou o proletariado moderno”, substitui-se um conjunto de
decisões históricas específicas, de indivíduos reais, por um termo abstrato que
não designa ninguém. O verdadeiro saber histórico exige nomear os agentes. É
necessário perguntar: quem fez o quê? Quando? Com que intenção? Qual foi a
cadeia de decisões concreta?
A imaginação histórica, nesse contexto, é a capacidade de
projetar-se sobre o passado para reconstituir, com base no verossímil, o que os
documentos não dizem diretamente, mas apenas insinuam. Ela não é fantasia
livre, mas reconstrução orientada por analogia com estruturas dramáticas já
conhecidas. Aqui entra novamente o valor da literatura: os modelos narrativos
fornecem à mente um repertório de formas possíveis do agir humano. Sem esses
modelos, o investigador perde a bússola interpretativa e fica à mercê de
teorias vazias.
Olavo aponta que a filosofia moderna, ao abandonar esse modo
imaginativo de reconstrução, isolou-se em um discurso autorreferente, cego à
realidade. Não se trata apenas de erro metodológico, mas de empobrecimento
espiritual. O filósofo moderno, ao negar a importância da imaginação narrativa,
tornou-se incapaz de reconhecer o que está diante dos seus olhos. Com isso,
caiu na armadilha do formalismo — da crença de que a realidade pode ser pensada
sem ser vivida, que pode ser deduzida sem ser recordada.
Reconstituir a trajetória de uma ideia, de um sistema filosófico,
requer mais do que mapear influências ou classificar escolas. Exige reconstruir
o momento em que determinada experiência humana foi transfigurada em linguagem,
e, a partir daí, identificar o que foi omitido, o que foi sublimado, o que foi
negado. Toda doutrina nasce de um trauma, de uma perplexidade, de uma dor ou de
uma esperança. A filosofia, portanto, é inseparável da história interna do
espírito que a formulou.
A tarefa do filósofo, então, é dupla: ele precisa descrever as
ideias e remontar os atos de consciência que as originaram. E para isso, deve
apelar ao seu próprio estoque de experiências simbólicas, acumulado pela
literatura, pela arte, pela tradição oral e pela convivência humana. A
imaginação histórica é o que permite ao intérprete atravessar a superfície do
texto e alcançar a fonte de onde ele brotou.
Sem essa imaginação, toda tentativa de entender a história da
filosofia transforma-se em caricatura. Como compreender verdadeiramente Platão
sem reconhecer no Sócrates de seus diálogos um personagem que revive um drama
vivido? Como julgar Spinoza sem compreender o mundo espiritual da tradição
judaica que ele nega e reformula? Como avaliar Kant sem notar que sua crítica é
uma resposta tardia ao colapso da metafísica racionalista?
Portanto, a imaginação histórica, longe de ser um luxo ou adereço, é o próprio instrumento do juízo filosófico. Ela desvela o que a linguagem técnica encobre. Ela reconecta o discurso à vida. E, sobretudo, ela protege o pensamento da ilusão autossuficiente da abstração. O filósofo que não imagina não compreende. O que não compreende, apenas repete. E o que apenas repete, perpetua a mentira. Reconstituir é lembrar. E lembrar é, sempre, resistir à amnésia do sistema.
Artigo 3 — O empobrecimento do pensamento e a destruição da herança cultural
A inteligência, quando desligada da experiência e da imaginação,
degenera inevitavelmente em mecanismo. Olavo de Carvalho denuncia, com precisão
cirúrgica, esse processo de empobrecimento intelectual que tomou conta do
ambiente universitário moderno — especialmente no Brasil. A linguagem acadêmica
tornou-se um código fechado, autorreferente, que já não comunica o real, mas
apenas reproduz sua própria estrutura. O que se ensina não é filosofia, mas um
idioma técnico, socialmente validado por seus pares, mas destituído de relação
com a verdade.
Esse processo é inseparável da destruição da herança cultural. Ao
romper com o patrimônio da literatura clássica, da imaginação simbólica e da
experiência religiosa que moldaram a consciência ocidental, o ensino superior
moderno produziu gerações de especialistas incapazes de compreender o mundo que
os cerca. Formou-se, assim, uma elite funcionalmente analfabeta do ponto de
vista existencial: dominam métodos, mas desconhecem o sentido; manejam
conceitos, mas não sabem do que falam.
Olavo ilustra isso com ironia amarga ao lembrar do professor da
PUC que se recusava a “descer do seu universo semântico”. A anedota torna-se
retrato de uma patologia: o sujeito acadêmico moderno já não reconhece que sua
linguagem é uma construção frágil, assentada sobre um mundo pré-existente de
experiências comuns. Ele se tranca num vocabulário que só é compreensível a
seus pares e se protege contra qualquer apelo à realidade como se este fosse um
golpe baixo. O contato com o mundo é visto como uma ameaça ao sistema
discursivo — e por isso mesmo deve ser evitado.
Essa ruptura com a experiência empírica e simbólica tem
consequências devastadoras. O filósofo torna-se um prisioneiro de signos. A
literatura, em vez de ser lida como expressão da alma humana, passa a ser
analisada como jogo estrutural. A história, em vez de narrar os atos de pessoas
reais, converte-se em gráfico sociológico. A realidade é substituída por
simulações cada vez mais pobres, e o pensamento, por sua vez, vai se atrofiando
— até restar apenas um casulo discursivo, fechado sobre si mesmo.
Olavo mostra que esse empobrecimento não se dá apenas no plano
intelectual, mas também moral e espiritual. O desprezo pela herança dos
clássicos é o desprezo pela alma humana tal como foi experimentada,
compreendida e transmitida pelas gerações anteriores. Abandonar os grandes
livros, as grandes imagens, as grandes histórias, é deixar de pensar com
profundidade. É desistir da humanidade. É ceder ao simulacro da técnica, à
superstição da modernidade, à ilusão de que é possível pensar sem sentir,
julgar sem imaginar, raciocinar sem lembrar.
O caso mais sintomático dessa crise, segundo Olavo, é a exclusão
deliberada de Mário Ferreira dos Santos da história da filosofia brasileira.
Enquanto os departamentos de filosofia discutiam modismos importados e
produziam discursos inócuos, o maior pensador do país era ignorado. Essa
exclusão não é apenas negligência: é o reflexo de uma cultura que perdeu o
critério do real. A universidade discute o que não está acontecendo e ignora o
que está. Ela já não espelha a realidade, mas um teatro hermético onde só entra
quem fala a língua autorizada.
Contra isso,
Olavo propõe um retorno integral à experiência. Um retorno à literatura como
escola da alma, à história como narrativa de atos humanos, à filosofia como
dramatização de conflitos espirituais. Pensar é recordar, imaginar, compreender.
Pensar é restaurar a unidade perdida entre linguagem e vida. E essa restauração
não será feita por técnicas ou teorias, mas por um ato de atenção amorosa ao
real — um ato que exige humildade, coragem e fidelidade à verdade. Sem isso,
resta apenas o ruído. A filosofia morre, e a cultura afunda no vazio.
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