quinta-feira, 12 de junho de 2025

Sobre os Anjos e os Demônios – Antônio Freixo.

ÍNDICE.

Volume I – Natureza, Queda e Atuação Espiritual.

Capítulo I – A Origem e a Queda: A Perspectiva da Tradição sobre as Entidades Espirituais Puras Decaídas

Artigo 1: A Criação dos Espíritos Puros: Natureza, Hierarquia e Finalidade

Artigo 2: O Momento da Escolha: Liberdade, Intelecto e a Possibilidade da Rebelião

Artigo 3: A Queda: O Refugo da Ordem e a Fixação no Mal

Capítulo II – A Atuação no Mundo Material: O Espírito em Contato com a Matéria

Artigo 1: Os Modos de Presença: Influência Espiritual sem Corporeidade

Artigo 2: A Tentação, o Engano e a Simulação: Estratégias de Ação sobre o Humano

Artigo 3: O Corpo como Porta: A Tradição sobre Possessão, Obsessão e Infestação

Capítulo III – A Influência no Mundo: Cultura, Poder e Destino

Artigo 1: Estruturas de Domínio: Impérios, Sistemas e o Princípio de Organização Invertida

Artigo 2: A Linguagem e o Imaginário: A Colonização Simbólica pela Mentira

Artigo 3: O Fim: Juízo, Condenação e a Imobilidade do Mal

Conclusão – O que precisamos saber: a relação entre espírito e homem, a vigilância interior e o discernimento como chave para o tempo presente

Volume II – Essência e Evolução do Pensamento.

Capítulo I – Os Anjos

Artigo 1: A ideia escolástica a respeito: natureza, funções e hierarquia

Artigo 2: A ideia moderna a respeito: abstração simbólica, psicologismo e dissolução metafísica

Capítulo II – Os Demônios

Artigo 1: A ideia escolástica a respeito: queda, identidade e atuação espiritual

Artigo 2: A ideia moderna a respeito: mito arquetípico, projeção inconsciente e negação existencial

Conclusão – Anjos e Demônios: um paralelo entre o passado e o presente.
 

Capítulo I – A Origem e a Queda: A Perspectiva da Tradição sobre as Entidades Espirituais Puras Decaídas.

Artigo 1: A Criação dos Espíritos Puros: Natureza, Hierarquia e Finalidade.

A Tradição cristã, especialmente à luz da filosofia tomista, sustenta que as entidades espirituais puras — os anjos — foram criadas por Deus no início da criação invisível. São substâncias intelectuais, desprovidas de matéria, dotadas de inteligência e vontade, cada qual formada de modo único, sem repetição, como espelhos distintos refletindo aspectos da perfeição divina. Por não serem compostos, não mudam em essência; são simples, e sua existência está ordenada a um fim: a glorificação de Deus e a execução de sua vontade na criação.

Diferentemente do homem, cuja alma se une à matéria, os espíritos puros não habitam corpos, tampouco evoluem ou aprendem de forma gradual. Seu conhecimento é infuso, direto, completo sobre o que lhes foi dado a conhecer. No instante da criação, receberam não apenas o ser, mas também a plena consciência de sua natureza e finalidade. Cada anjo é, por assim dizer, uma espécie em si, com missão, poder e posição definidos numa hierarquia precisa que se organiza em coros, ordens e funções — como detalhado por Dionísio Areopagita e acolhido pela escolástica.

Essa hierarquia não é apenas organizacional, mas expressa uma ordem de proximidade com Deus, refletindo graus de intelecto e de amor. Aqueles mais elevados não são mais dignos por si mesmos, mas por terem sido criados para refletir mais intensamente a luz divina. A ordem estabelecida é expressão da harmonia do ser — uma harmonia que, desde o princípio, exige livre adesão.

Neste ponto se prepara o cenário para o que viria a ser a mais radical ruptura possível: a negação dessa ordem por parte de alguns desses espíritos. A criação, embora perfeita, é dotada de liberdade — e é exatamente nesta liberdade que reside a possibilidade da queda. Mas antes da negação, houve uma escolha. E é essa escolha que será objeto do próximo artigo, no qual se abordará o momento decisivo onde a liberdade se inclinou, não ao bem eterno, mas à exaltação de si. Uma torção da liberdade que abriu caminho ao mistério da iniquidade.

Artigo 2: O Momento da Escolha: Liberdade, Intelecto e a Possibilidade da Rebelião.

Na perspectiva tomista, o ser espiritual puro é dotado de intelecto e vontade, potências que derivam diretamente de sua essência imaterial. O intelecto tem por objeto a verdade; a vontade, o bem. Contudo, sendo criaturas finitas, ainda que superiores ao homem, os anjos foram criados com liberdade, e essa liberdade não se ordena automaticamente ao Bem supremo — exige adesão voluntária.

Ao serem criados, os espíritos puros contemplaram, segundo Tomás de Aquino, a própria essência e a ordem divina impressa no ser. Deus apresentou-lhes, como último fim, a visão beatífica — a participação direta na essência divina. Mas, para alcançar essa consumação, exigia-se um ato de livre submissão à ordem estabelecida, um reconhecimento do próprio lugar na hierarquia do ser, e a aceitação de que Deus é o fim último, e não a criatura.

Nesse instante — que não é temporal, mas ontológico — operou-se a separação. Uma parte dos espíritos, movida pela verdade e pela humildade intelectual, aderiu à ordem divina, submetendo sua vontade à do Criador. Outra parte, porém, recusou essa subordinação. Segundo a tradição, o pecado de Lúcifer e dos que o seguiram não foi um erro de conhecimento, mas de escolha. Sabiam o que faziam; reconheceram o Bem Supremo, mas preferiram a si mesmos. É o que Tomás chama de aversio a Deo — uma inversão da vontade, que em vez de ordenar-se a Deus, curva-se sobre o próprio eu. É a soberba espiritual, o mais puro e radical ato de rebelião.

Essa rejeição é definitiva não porque Deus assim quis, mas porque, em seres de natureza simples e sem matéria, o ato de vontade é também um ato de fixação. A escolha não muda. Os anjos não se arrependem porque não há neles potência passiva que possa ser movida de um estado a outro. O que foi escolhido, permanece. Assim, os que se rebelaram tornaram-se fixos no mal — não no mal como substância, pois este não existe, mas na deficiência do bem.

A rebelião angélica, portanto, é um ato de liberdade distorcida. Não foi gerada por ignorância, mas por orgulho. A criatura que quis ser como Deus, não por participação, mas por usurpação. E, com isso, fundou-se a antítese da ordem: a desordem espiritual consciente, irreversível, operando agora como força ativa contrária ao plano divino. No próximo artigo, abordaremos as consequências dessa queda, não como destruição da essência, mas como perversão da finalidade — e como esse novo estado define a identidade demoníaca.

Artigo 3: A Queda: O Refugo da Ordem e a Fixação no Mal.

Na metafísica tomista, o mal não possui substância própria; é, antes, a privação de um bem devido. O ser demoníaco, portanto, não é mal em essência — pois sua essência, enquanto criada por Deus, é boa — mas é mal na medida em que a sua vontade se desviou de seu fim próprio. A queda, nesse sentido, não é corrupção ontológica, mas perversão teleológica: uma inversão da finalidade. A vontade, que deveria aderir ao Sumo Bem, reorienta-se para si mesma, negando a ordem do ser.

A tradição identifica esse movimento com a soberba. Lúcifer, o portador da luz, ao contemplar a si mesmo e sua excelência, desejou o fim sem o meio, a glória sem a graça, o trono sem a obediência. Sua vontade, fixada em si, recusou a mediação, recusou a servidão, recusou a encarnação — pois segundo muitos Padres, a recusa angélica está ligada à revelação do mistério da Encarnação do Verbo. A criatura espiritual não aceitou servir a um Deus feito carne, e nisso selou seu exílio.

A consequência dessa escolha é dupla. Primeiro, os anjos caídos perderam a visio Dei, foram excluídos da beatitude prometida. Segundo, sua natureza, embora não corrompida, passou a operar em ruptura com o fim para o qual foi criada. E essa ruptura não os aniquila, mas os constitui enquanto agentes do desvio — entidades ativas, cuja inteligência e poder permanecem, mas desorientados. Ao se fixarem na recusa do bem, tornaram-se instrumentos da desordem.

O intelecto demoníaco não perdeu sua acuidade, mas a vontade perverteu sua aplicação. Já não serve à verdade enquanto ordenada ao bem, mas à astúcia, à simulação, à manipulação do real. O demônio não cria, pois não possui o ser como fonte, mas distorce, fragmenta, reconfigura as estruturas da criação para fins autônomos. Isso o faz não como destruidor absoluto, mas como paródia do criador — sempre dependente daquilo que já existe.

É esse estado de negação estável, onde o ser continua sem o bem, que configura a identidade demoníaca na teologia tradicional. E é a partir daí que se inicia sua atuação no mundo, não como mito, nem como alegoria moral, mas como agente real, espiritual, cuja ação, embora invisível, se mistura à história humana por vias que exploraremos no capítulo seguinte. Porque o espírito que recusa o céu não desaparece — ele desce. E é na matéria que ele age, sem corpo, mas não sem efeito.

Capítulo II – A Atuação no Mundo Material: O Espírito em Contato com a Matéria.

Artigo 1: Os Modos de Presença: Influência Espiritual sem Corporeidade.

Na tradição filosófico-teológica tomista, todo ser espiritual, por não possuir corpo, não ocupa lugar no espaço da maneira como o fazem os corpos físicos. Ainda assim, os espíritos puros — tanto os fiéis quanto os caídos — podem exercer presença e influência em pontos determinados da realidade material. Tomás de Aquino distingue essa presença como presença por operação: o espírito não está localizado fisicamente, mas age onde sua ação se manifesta.

No caso dos espíritos demoníacos, essa ação é sempre indireta: não podem mover diretamente a matéria densa por si mesmos como moveria um objeto físico, mas influenciam as realidades sensíveis por meio da manipulação de outras criaturas — humanas ou naturais —, por sugestões psíquicas ou distúrbios nos elementos mais sutis do mundo criado. O contato se dá sempre através da cadeia da causalidade secundária, nunca por geração própria.

Essa atuação exige três condições fundamentais segundo a tradição:

1. Permissão divina, pois mesmo o mal opera dentro da Providência — não como bem desejado, mas como mal tolerado.

2. Vulnerabilidade na ordem natural, como distúrbios físicos, emocionais ou morais, que oferecem abertura à ação externa.

3. Consentimento indireto ou direto por parte do sujeito, ainda que inconsciente, seja por negligência espiritual, seja por cooperação voluntária.

A presença demoníaca é, portanto, uma presença moral e intelectual. Age não ocupando espaço, mas deturpando sentido. Aproxima-se dos pensamentos, das imagens, das intenções, da memória — não como um vírus que invade, mas como uma sombra que deforma. O espírito caído reconhece padrões, explora fraquezas, estimula paixões desordenadas e semeia confusão, sempre operando sob o disfarce: nunca se impõe de maneira explícita, pois sua ação visa corromper, não converter.

Esse modo de presença também se manifesta, segundo o testemunho tradicional, em ambientes, objetos e territórios. Não por haver "energia" nos lugares, mas porque o espírito age por associação simbólica, por pactuação ou por memória histórica. Certos locais, impregnados por ações humanas gravemente desordenadas, tornam-se mais acessíveis à sua presença. A matéria, embora incapaz de ser possuída pelo espírito, pode tornar-se instrumento da sua atuação.

No próximo artigo, abordaremos como essa presença se desenvolve especificamente no relacionamento com o ser humano: como o espírito caído age na consciência, nas paixões e na vida cotidiana, por meio da tentação, da falsificação do bem e da manipulação do desejo. Pois sua maior estratégia não é aparecer como o mal, mas sim como o bem deformado.

Artigo 2: A Tentação, o Engano e a Simulação: Estratégias de Ação sobre o Humano.

A atuação demoníaca sobre o ser humano não se dá por coerção física, mas por sugestão intelectual e excitação das potências inferiores da alma. Na doutrina tomista, o homem é composto por corpo e alma, sendo esta dotada de razão, vontade e apetites sensíveis. O demônio, não podendo agir diretamente sobre o intelecto puro, atua na zona intermediária: as potências imaginativas e os apetites sensíveis, influenciando assim indiretamente a vontade e a razão.

A tentação é o nome tradicional dessa influência: trata-se de uma incitação ao mal mediante a apresentação de um bem aparente. O demônio não cria desejos novos, mas aproveita-se das inclinações naturais da alma, ampliando-as, distorcendo-as, deslocando-as do fim ordenado ao desordenado. A estratégia consiste em obscurecer o julgamento prático, enfraquecer a resolução da vontade e exaltar as paixões, especialmente a concupiscência e a soberba.

Dessa forma, a tentação não é um evento isolado, mas uma estrutura progressiva. Primeiro, há a sugestão: uma ideia é apresentada, disfarçada como possibilidade inofensiva. Depois, vem a insinuação afetiva, onde a imaginação colore a ideia com atratividade. Em seguida, a sedução racional, onde a razão, já comprometida, constrói justificativas. Por fim, a adesão voluntária, quando o sujeito consente, mesmo que parcialmente.

Além da tentação direta, o espírito maligno utiliza o engano, onde a falsidade é oferecida como verdade. Isso se dá com maior frequência em âmbitos religiosos ou espirituais, onde a simulação do bem assume formas convincentes: falsos carismas, aparições enganosas, distorções doutrinais, experiências místicas de origem psíquica mascaradas como divinas. A teologia espiritual insiste: o demônio, quando não pode impedir a virtude, procura pervertê-la por excesso ou por desvio.

Por fim, a simulação é sua arte suprema: o fingimento. Ele se apresenta como aquilo que não é, disfarça-se sob formas de luz, manipula símbolos, gestos e linguagens. Simula revelações, cura, sabedoria, paz interior — mas sempre com o objetivo de desviar o homem do eixo vertical. É o “pai da mentira”, como afirma o Evangelho segundo João (8,44), e mente porque sua natureza espiritual, embora corrompida na finalidade, permanece capaz de compreender e aplicar inteligentemente os princípios da realidade.

Assim, a atuação demoníaca é tanto mais eficaz quanto mais discreta. Não exige manifestações extraordinárias, mas sim pequenas concessões, desvios graduais, reinterpretações sutis. E é nesse cenário, onde o invisível atua sobre o visível, que se estrutura o terceiro modo de presença: a intervenção direta por meio da matéria humana. É o que exploraremos no próximo artigo, ao tratar da possessão, obsessão e infestação como expressões extremas da atuação espiritual maligna.

Artigo 3: O Corpo como Porta: A Tradição sobre Possessão, Obsessão e Infestação.

No ponto extremo da atuação demoníaca sobre o mundo sensível, encontra-se a possibilidade de interação direta com a corporeidade humana e os elementos materiais do ambiente. Não se trata de uma presença substancial — pois os espíritos não assumem corpo —, mas de uma apropriação temporária e parasitária de funções físicas, psíquicas ou espaciais. A tradição reconhece três formas principais: infestação, obsessão e possessão.

A infestação é a mais externa das manifestações. Refere-se à presença e atuação de entidades malignas sobre lugares, objetos ou ambientes. Não há, neste caso, dominação direta sobre pessoas, mas a manipulação de circunstâncias externas para gerar medo, perturbação, confusão e desgaste espiritual. São ruídos sem causa, odores sem origem, movimentos inexplicáveis, alterações atmosféricas, todos com o objetivo de inquietar e desestabilizar os que ali habitam. O espaço, neste caso, é o canal da ação — não por si, mas como meio de influência indireta sobre a alma humana.

A obsessão, por sua vez, diz respeito a uma ação mais intensa e persistente sobre a psique e o corpo da pessoa. Trata-se de uma presença que pressiona os sentidos, interfere nos pensamentos, excita os apetites e induz ao desespero ou ao erro. A obsessão pode ser espiritual (na forma de ideias fixas, tentações recorrentes, delírios religiosos) ou física (em doenças sem causa orgânica clara, dores, alterações comportamentais abruptas). Diferencia-se da patologia psíquica por sua natureza inteligível: há lógica, há estratégia, há resistência ao sagrado. E sua raiz não é interior — é imposta de fora, embora encontre apoio em fragilidades internas.

A possessão representa a forma mais extrema e rara de atuação. Não é que o demônio "tome" a alma — pois esta pertence exclusivamente ao domínio divino —, mas ele invade e ocupa, com permissão divina e por brechas concretas, as potências inferiores do corpo: os sentidos, a fala, os membros. A alma permanece presente, mas como exilada de suas funções. O espírito maligno age, fala, move, mas nunca domina o centro da consciência. É uma violação da integridade, não uma substituição do sujeito.

A teologia insiste: a possessão não é culpa, mas permissão misteriosa. Pode ocorrer em inocentes, como prova ou purificação, mas com frequência está ligada a práticas espirituais desviadas — invocações, pactos, cultos falsificados, ódio persistente, violência extrema. O corpo se torna, então, uma porta — não por ser matéria frágil, mas por ser a expressão sensível da alma. O espírito maligno deseja não apenas o pensamento, mas a encarnação do desvio: fazer o erro falar, gritar, rasgar-se por meio da carne.

Contudo, mesmo na possessão, o poder demoníaco é limitado. Ele não cria, não domina o ser, não possui autoridade sobre a alma imortal. Sua ação é parasitária, sempre dependente da permissão divina e da falência da vigilância humana. A tradição ensina que o exorcismo, prática sacramental, não é mágica, mas oração ordenada — é a restauração da ordem por meio da autoridade de Cristo. Onde a carne foi ocupada, o espírito de Deus pode reentrar — desde que haja arrependimento, fé e combate.

Com isso, encerra-se o exame dos modos como os espíritos caídos interagem com o mundo material. No próximo capítulo, ampliaremos o olhar: da influência sobre o indivíduo à atuação sobre a coletividade, à cultura, aos sistemas de poder e às estruturas simbólicas. Pois o espírito, uma vez lançado fora do céu, busca fundar sua própria ordem no mundo. Não uma criação, mas uma inversão.

Capítulo III – A Influência no Mundo: Cultura, Poder e Destino.

Artigo 1: Estruturas de Domínio: Impérios, Sistemas e o Princípio de Organização Invertida.

A tradição cristã não limita a atuação demoníaca ao nível individual. Desde os Padres da Igreja até os autores medievais e místicos posteriores, há o reconhecimento de que as entidades espirituais caídas operam também sobre estruturas amplas — culturais, políticas e sociais — imprimindo nelas uma lógica contrária à ordem divina. Essa atuação não é caótica, mas organizacional: os demônios, embora rebelados, conservam inteligência e hierarquia. Sua ação, portanto, é estrutural.

Tomás de Aquino admite que os anjos têm funções que envolvem a administração de povos e nações, conforme o plano da Providência. Por analogia inversa, os demônios — sobretudo os que a tradição chama de principados e potestades — estabelecem zonas de influência sobre coletividades humanas. O Apóstolo Paulo, em sua carta aos Efésios (6,12), refere-se a essa batalha como sendo "contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso".

Esses "dominadores" não são figuras alegóricas: são inteligências que atuam através da perversão de estruturas criadas por Deus. Organizam impérios, estabelecem sistemas de controle, criam culturas baseadas na inversão dos valores — onde a virtude é ridicularizada e o vício, exaltado. Não se trata de agir contra a ordem, mas de construir uma ordem paralela, uma paródia da Cidade de Deus: a cidade dos homens submetida à lógica da vaidade, da dominação, do prazer e da mentira.

A inversão opera sobre princípios:
– O que era serviço se torna domínio.
– O que era autoridade se converte em opressão.
– O que era sacralidade se transforma em espetáculo.
– O que era linguagem do bem se torna propaganda do erro.

E essa inversão não se impõe à força, mas se insinua por consentimento. Os sistemas passam a reproduzir essa lógica sem perceber — a política, a arte, a economia, a educação tornam-se engrenagens de uma máquina que já não serve ao bem comum, mas a um projeto subterrâneo de desconstrução dos fundamentos espirituais da civilização.

A estratégia demoníaca, portanto, não é destruir o mundo, mas refazê-lo à sua imagem: uma ordem invertida, onde a aparência substitui a essência, a eficiência substitui a verdade e a liberdade é desfigurada em autonomia absoluta. Não há necessidade de criar tiranos — basta sustentar sistemas onde o homem não veja mais o céu.

No próximo artigo, abordaremos como essa influência não se limita à estrutura, mas penetra no imaginário simbólico: as imagens, narrativas, palavras e arquétipos que moldam a forma como o homem percebe a realidade. Pois dominar um povo não é apenas controlá-lo politicamente — é moldar seu modo de ver, sentir e nomear as coisas.

Artigo 2: A Linguagem e o Imaginário: A Colonização Simbólica pela Mentira.

Se no artigo anterior tratamos da estrutura visível — política, social, institucional — aqui avançamos para a camada mais sutil e profunda: o imaginário simbólico. A tradição reconhece que os espíritos malignos, em sua guerra silenciosa contra o Criador, buscam não apenas desviar o homem por fora, mas corromper por dentro. E o meio mais eficaz para isso não é a violência, mas a linguagem. Mais do que ações, eles manipulam significados.

A linguagem é a ponte entre o intelecto e o mundo. Ao nomear, o homem organiza a realidade, comunica sentidos, estabelece vínculos com o invisível. No pensamento tomista, a palavra é extensão do logos, e portanto participa do princípio racional do universo. Não é neutra. Ao deformá-la, o demônio desfigura a própria estrutura do ser. A mentira, nesse contexto, não é apenas falsidade factual: é subversão ontológica, uma tentativa de refazer o real com outros nomes.

A tradição mística e patrística sempre viu na serpente do Gênesis um símbolo desta inversão: “foi o mais astuto de todos os animais” — diz o texto — e sua primeira ação não foi morder, mas falar. O verbo distorcido tornou-se arma. “É verdade que Deus vos proibiu…?” — não há aqui negação direta, mas insinuação, ambiguidade, deslocamento da confiança. A estratégia demoníaca, desde então, é a mesma: semear dúvida, torcer significados, desfazer as certezas que sustentam o espírito.

Hoje, essa atuação se manifesta com especial força na colonização do imaginário coletivo. Imagens, músicas, narrativas, expressões culturais — tudo é impregnado por um código simbólico que visa deslocar o homem do eixo metafísico. Palavras-chave são redefinidas: liberdade já não significa ordenar-se ao bem, mas romper com toda lei; amor já não implica sacrifício, mas prazer imediato; verdade já não é aquilo que corresponde ao real, mas o que agrada ao eu. A linguagem, esvaziada de sua raiz transcendente, torna-se instrumento de manipulação da consciência.

Além disso, o demônio se infiltra nas formas: contos, novelas, rituais populares, símbolos visuais. Não precisa ser explícito — ao contrário, opera melhor onde não é notado. Um filme, uma letra, um slogan, uma estética podem carregar em si ideias que minam lentamente os fundamentos espirituais de uma civilização. Trata-se de um processo de dessacralização progressiva: o riso onde havia temor, o sarcasmo onde havia reverência, o consumo onde havia contemplação.

Esse domínio sobre o imaginário não é isolado. Ele serve à estrutura e à possessão simbólica das massas. Onde o povo já não sabe nomear o bem, já não sabe desejá-lo. Onde não reconhece o sagrado, tudo se torna profano. O inferno triunfa não quando destrói templos, mas quando torna os corações indiferentes. Quando a mentira torna-se cultura, a ação demoníaca já deixou de ser ataque e tornou-se ambiente.

E é sob esse céu turvo, esse mundo onde o erro tornou-se hábito e a desordem foi normalizada, que se aproxima o tempo do juízo. No próximo artigo, o último deste capítulo, veremos como a tradição compreende o fim dessa atuação: o limite imposto pela Providência, o julgamento das potências rebeldes, e o que isso implica para a história humana — pois se há ordem até no mal, há também um prazo. E esse prazo se esgota.

Artigo 3: O Fim: Juízo, Condenação e a Imobilidade do Mal.

A tradição teológica é clara: o mal não possui eternidade autônoma. Ele não se sustenta por si, não é fundamento, não é origem. Ele depende do bem que nega. Por isso, sua atuação no mundo tem prazo — não porque se esgote por decadência, mas porque será interrompido por julgamento. O demônio, enquanto criatura, está sujeito à justiça divina, e sua liberdade, embora preservada em sua raiz ontológica, não o exime da responsabilidade por sua escolha.

Segundo Tomás de Aquino, os anjos caídos foram julgados imediatamente após sua rebelião. Diferente do homem, que vive em tempo e pode se converter enquanto caminha, o espírito puro, ao decidir, já fixa sua eternidade. O juízo angélico é, portanto, simultâneo à queda: a escolha é sentença. Todavia, sua atuação no mundo permanece permitida até que o ciclo da história se complete. Isso não é concessão gratuita, mas parte do desígnio da Providência, que ordena até o mal à realização de um bem maior.

Esse tempo de permissão não é indefinido. A Escritura e a tradição afirmam que virá o momento em que o juízo se tornará visível, cósmico, escatológico. É o que a teologia chama de juízo final — não apenas individual, mas universal, quando todas as criaturas racionais serão chamadas a prestar conta de suas obras, e os anjos caídos, já condenados, serão lançados definitivamente no estado de separação total do bem. Não se trata de aniquilação — pois Deus não desfaz o que criou —, mas de imobilização final da liberdade mal direcionada.

Nesse estado, o demônio permanece o que é: espírito puro, inteligência ativa, mas desligado de toda possibilidade de ação ordenada. É o que a tradição chama de “prisão eterna”, “segunda morte”, “trevas exteriores” — imagens que expressam o afastamento absoluto da fonte do ser. Ele não deixa de existir, mas deixa de agir. Sua influência cessa, sua palavra se cala, sua presença se torna apenas ausência do bem, consciência perpétua de sua deformação.

Mas há mais: o juízo não é apenas contra os demônios. É também contra tudo aquilo que se construiu em aliança com eles. As estruturas corrompidas, as linguagens deformadas, os impérios fundados sobre a mentira, os cultos profanos — tudo será revelado e confrontado. A verdade não julga só os sujeitos, mas as civilizações. E se a atuação demoníaca moldou o mundo, o juízo dissolverá essas formas como fumaça dissipada pelo sol.

O fim, portanto, não é apenas um evento futuro, mas uma linha que já avança. A atuação demoníaca, hoje poderosa e discreta, já se mostra fatigada — pois o erro, por mais elaborado, desgasta-se. O homem, ainda que confuso, sente o peso do vazio. E isso indica que o tempo da mentira caminha para seu esgotamento.

Na conclusão, reuniremos todas as ideias aqui apresentadas para compreender o que precisamos saber — e como devemos nos posicionar diante dessas realidades. Pois ignorá-las não as anula. Pelo contrário, fortalece-as. E onde a cegueira reina, o espírito das trevas encontra casa.

Conclusão – O que precisamos saber: a relação entre espírito e homem, a vigilância interior e o discernimento como chave para o tempo presente.

Diante da análise apresentada, a tradição não nos convida ao medo, mas à lucidez. A existência dos espíritos puros caídos não é uma hipótese mitológica, mas um dado da Revelação e da metafísica clássica. São inteligências reais, com vontade fixa no mal, atuantes na história, operando por meio da sugestão, da distorção e da estrutura. Ignorá-los é abrir brechas; negá-los é cair na primeira mentira que pronunciaram: a de que não existem.

Desde a criação, essas entidades rejeitaram a ordem divina e fixaram-se na autonomia pervertida. Sua essência permanece boa enquanto ser criado, mas sua finalidade foi deformada. Não perdem inteligência, mas já não a ordenam ao bem. Sua presença no mundo é indireta, simbólica, estratégica — e sua ação encontra eco não apenas nos vícios individuais, mas nas formas coletivas que regulam as sociedades, os discursos, os desejos.

A relação entre o homem e essas entidades é de tensão espiritual contínua. Não podem dominar a alma sem consentimento, mas influenciam pelas frestas: a imaginação desordenada, a vaidade exaltada, a fé debilitada, a linguagem corrompida. São mestres da ambiguidade, manipuladores de símbolos, parasitas do sagrado. Fingem-se de luz, falam com voz doce, oferecem atalhos — mas o destino é sempre a divisão, a frieza, o esquecimento de Deus.

O combate, no entanto, não se trava com fórmulas, mas com discernimento. Saber reconhecer a presença do engano, a distorção da verdade, a inversão dos valores é o primeiro passo para resistir. E esse discernimento não é fruto de técnica, mas de vigilância interior, oração contínua, vida ordenada. Quem vive segundo o Logos reconhece a dissonância. Quem está no eixo do Ser percebe a sombra que se move ao redor.

A síntese de tudo que se expôs é clara:
– O mal espiritual é real, racional e atuante.
– Atua por permissão, nunca por direito.
– Age melhor onde não é percebido.
– Busca não apenas o erro moral, mas a deformação do mundo.
– Será julgado e silenciado, mas até lá, opera na linguagem, na cultura e na estrutura.

A resistência, portanto, não é histeria, mas clarividência. Não se dá no espetáculo, mas no cotidiano: na vigilância dos pensamentos, no uso justo das palavras, na fidelidade ao real. O espírito maligno teme não o grito do indignado, mas o silêncio do justo. Ele não foge de fórmulas, mas da ordem interior. Pois ali onde reina a ordem verdadeira — mesmo no coração de um homem só — o inferno encontra sua derrota.

Este é o tempo do discernimento. Não há neutralidade: ou o homem orienta-se ao bem, ou será, ainda que sem saber, meio de outra vontade. E toda vontade que não se curva à verdade, curva-se à mentira. A escolha é silenciosa, mas definitiva. E, diante dela, não basta saber: é preciso ser.
 
Volume II – Essência e Evolução do Pensamento.

Capítulo I – Os Anjos

Artigo 1: A ideia escolástica a respeito: natureza, funções e hierarquia

Artigo 2: A ideia moderna a respeito: abstração simbólica, psicologismo e dissolução metafísica

Capítulo II – Os Demônios

Artigo 1: A ideia escolástica a respeito: queda, identidade e atuação espiritual

Artigo 2: A ideia moderna a respeito: mito arquetípico, projeção inconsciente e negação existencial

Conclusão – Anjos e Demônios: um paralelo entre o passado e o presente.

Capítulo I – Os Anjos.

Artigo 1: A ideia escolástica a respeito: natureza, funções e hierarquia

A teologia escolástica, herdeira direta da síntese entre a patrística cristã e a filosofia aristotélica, desenvolveu uma doutrina robusta a respeito dos anjos, considerando-os como substâncias intelectuais puras, criadas por Deus antes do mundo visível, dotadas de inteligência, vontade e existência própria. Em Tomás de Aquino, os anjos são tratados com rigor metafísico, como seres reais, distintos dos homens e dos animais, não como alegorias, mas como entidades com funções precisas na ordem do universo.

Os anjos, segundo essa visão, são formas separadas, ou seja, inteligências puras que não dependem da matéria para existir nem para operar. Sua atividade é exclusivamente espiritual: contemplam, conhecem e agem conforme o grau de luz que receberam. Não evoluem, não aprendem por sucessão, mas possuem conhecimento infuso: compreendem de modo direto e total aquilo que lhes foi dado conhecer no ato criacional. Cada anjo é uma espécie única, sem repetição, pois sua singularidade não reside na matéria, mas na forma.

A função dos anjos, na teologia escolástica, não é apenas contemplativa. Eles participam da execução do plano divino: são enviados, anunciam, protegem, ordenam e sustentam elementos do mundo criado. São instrumentos da Providência, não autônomos, mas perfeitamente coordenados pela vontade de Deus. A hierarquia angélica é descrita em ordens e coros, conforme a tradição recebida de Dionísio Areopagita: Serafins, Querubins, Tronos, Dominações, Potestades, Virtudes, Principados, Arcanjos e Anjos — cada qual com funções específicas, desde a adoração pura até a intervenção direta na história humana.

Esses coros não representam apenas gradações de poder, mas níveis de proximidade com Deus e modos distintos de operar. Os mais elevados contemplam diretamente e sustentam os inferiores; os inferiores executam a vontade divina junto ao mundo sensível. Essa ordem manifesta a harmonia da criação: uma hierarquia que não oprime, mas estrutura, onde cada ser espiritual realiza perfeitamente sua finalidade.

Para a escolástica, o anjo é o paradigma da criatura espiritual ordenada: tudo nele aponta para Deus. Sua liberdade é perfeita, mas já consumada — uma vez feito o ato de adesão ao Bem Supremo, a vontade angélica permanece nele, sem oscilação. Sua beatitude consiste na visão direta do Criador, sem intermediários, em um êxtase estável, que não é emoção, mas posse do fim.

Essa concepção clara, racional e estruturada dos anjos formou, por séculos, a base do pensamento cristão sobre o mundo espiritual. Contudo, com o advento da modernidade e o enfraquecimento da metafísica, essa imagem passou a ser reinterpretada, diluída ou deslocada para o campo do simbólico. É essa transição, e suas consequências, que será analisada no próximo artigo.

Artigo 2: A ideia moderna a respeito: abstração simbólica, psicologismo e dissolução metafísica.

Com a ruptura do eixo metafísico que sustentava a escolástica, o pensamento moderno começou a reinterpretar os anjos não mais como seres reais, mas como símbolos, figuras culturais ou projeções psíquicas. A ontologia cedeu espaço ao funcionalismo; a verdade objetiva foi substituída por construções subjetivas. Assim, a imagem do anjo foi sendo deslocada da realidade espiritual para os domínios da estética, da ética ou da psicologia.

A filosofia moderna, sobretudo após Descartes, redefiniu a relação entre corpo e mente, matéria e espírito. A metafísica do ser foi gradualmente desautorizada em favor de uma epistemologia centrada no sujeito. Nesse novo paradigma, os anjos, enquanto substâncias espirituais, tornaram-se inaceitáveis. O mundo visível passou a ser o único legitimado pela razão empírica, e aquilo que não pudesse ser mensurado ou reduzido à experiência sensível foi classificado como superstição ou mito.

No campo da psicologia, especialmente a partir de Jung, os anjos passaram a ser interpretados como arquétipos: imagens coletivas do bem, representações inconscientes de aspectos elevados da alma humana. O anjo não seria, então, uma entidade exterior, mas uma expressão interna da busca por integração, equilíbrio ou iluminação. Perde-se aqui a distinção entre o eu e o outro espiritual; a transcendência é interiorizada, o sagrado é psicologizado.

Nas expressões artísticas e culturais, o anjo moderno tornou-se figura neutra, desprovida de dogma, diluída em sentimentalismo. Não há mais hierarquia, missão ou ordem: apenas abstrações de pureza, liberdade, amor universal. Eles aparecem em livros de autoajuda, filmes, séries e músicas como “presenças positivas” ou “forças boas”, mas desvinculadas de qualquer fundamento ontológico ou doutrinário. O anjo, assim, transforma-se em projeção estética do desejo humano por proteção ou transcendência, e não mais em mensageiro de um Deus pessoal e ordenado.

Esse processo culmina na dissolução da figura angélica como categoria espiritual real. Na modernidade tardia, marcada pela secularização, até mesmo essa simbologia perde força. O anjo, se ainda aparece, o faz como peça decorativa ou personagem ficcional, privado de sentido espiritual concreto. A consequência disso é a perda do contato com o invisível real e ordenado — o que, paradoxalmente, não anula o espiritual, mas o torna caótico, disforme, aberto a outras presenças, menos luminosas.

Essa transformação na imagem dos anjos não ocorreu isoladamente. Em paralelo, a figura do demônio também foi deslocada — e com ele, toda a estrutura simbólica e ontológica do mal. No próximo capítulo, abordaremos como essa mesma transição afetou a concepção dos demônios, desde a teologia escolástica até a leitura moderna, onde o inferno foi esvaziado — mas o vazio, por sua vez, não ficou silencioso.

Capítulo II – Os Demônios.

Artigo 1: A ideia escolástica a respeito: queda, identidade e atuação espiritual.

A escolástica, especialmente a tomista, considera o demônio não como símbolo do mal, mas como ente real, um espírito puro que, tendo sido criado bom, escolheu livremente rejeitar o fim para o qual fora ordenado. Essa rejeição foi definitiva, pois, como já tratado anteriormente, em seres de natureza simples e imaterial, o ato da vontade é irrevogável após a escolha inicial. O demônio, portanto, é um anjo decaído, cuja essência permanece, mas cuja finalidade foi pervertida.

Essa condição não implica destruição da natureza, mas perversão da função. O demônio continua sendo inteligência pura e vontade livre, mas sua vontade está fixada no não-servir (non serviam), e sua inteligência, embora preservada, já não se ordena à verdade que conduz ao bem, mas à simulação, à mentira, à deformação. A ação demoníaca é, por isso, parasitária: ela age sobre o que existe, mas de forma desviada, distorcendo e fragmentando o que originalmente é ordenado.

A teologia escolástica distingue com precisão o papel desses seres na ordem da criação: sua presença não está fora da Providência, mas incluída nela, como elemento permitido para a realização de um bem maior. Os demônios não escaparam da soberania divina; são instrumentos da prova, da purificação, da vigilância. Sua atuação é sempre subordinada — não têm acesso direto à alma, mas influenciam o homem por meio das potências inferiores, como a imaginação, os sentidos, e os afetos.

Os modos clássicos de atuação demoníaca foram sistematizados: tentação, obsessão, possessão, ilusão espiritual e engano intelectual. Todos esses são meios para conduzir a alma ao erro, à divisão interior e, finalmente, à separação de Deus. Mas sua eficácia depende sempre de uma brecha — pois a liberdade humana, mesmo ferida, continua sendo escudo, e a graça, enquanto aceita, permanece invencível.

A imagem do demônio na escolástica, portanto, é precisa: ele não é mero opositor, mas rebelde consciente, estruturado em hierarquia própria, operando como sombra do que antes foi luz. Não é caos, mas ordem invertida. Não é criatura falha, mas criatura recalcitrante. E é justamente por isso que sua ação é eficaz: porque ainda conhece as estruturas da realidade espiritual, e as usa contra o homem.

No entanto, essa clareza metafísica e teológica foi, como no caso dos anjos, progressivamente dissolvida. O mundo moderno, ao recusar o fundamento espiritual do ser, não apenas reinterpretou a figura do demônio, mas a esvaziou de substância, tornando-a caricatura, metáfora, ou, pior, objeto de fascínio cínico. Essa transição será o tema do próximo artigo, onde exploraremos o modo como o demônio foi assimilado pelo imaginário moderno — não mais como ente real, mas como reflexo das projeções do homem sobre si mesmo.

Artigo 2: A ideia moderna a respeito: mito arquetípico, projeção inconsciente e negação existencial.

Com o advento da modernidade e o colapso do pensamento metafísico clássico, a figura do demônio foi progressivamente retirada de seu lugar ontológico e transposta para o plano psicológico, cultural e simbólico. A rejeição da existência de seres espirituais objetivos coincidiu com a ascensão do racionalismo, do cientificismo e da psicanálise — e nesse novo horizonte, o demônio passou a ser lido não como ente, mas como expressão interna da condição humana.

A modernidade filosófica, a partir do Iluminismo, reconfigura a noção de mal: o mal não é mais uma vontade pessoal contrária à de Deus, mas um defeito estrutural na sociedade, na política ou na psique. A figura demoníaca, assim, torna-se um mito — útil em determinados contextos históricos, mas desnecessário na explicação racional do mundo. O mal é explicado por fatores sociais, biológicos ou inconscientes. A substância espiritual é descartada como superstição.

Na psicologia profunda, especialmente com Carl Gustav Jung, o demônio é reinterpretado como sombra arquetípica: uma projeção do inconsciente coletivo, a face reprimida da psique humana, o avesso da persona. Não se trata de uma entidade objetiva, mas de um conteúdo interior que deve ser reconhecido e integrado. O mal, aqui, não é combatido, mas assimilado. A tensão espiritual é dissolvida em dialética interior, e o inferno é relido como estrutura da alma.

Na cultura moderna, sobretudo a partir do século XX, o demônio tornou-se objeto de banalização estética ou fascínio irônico. Filmes, músicas, literatura e jogos retratam figuras demoníacas como ícones de rebeldia, liberdade, sarcasmo, erotismo ou poder. O horror é explorado como entretenimento, e a figura do diabo, quando não é ridicularizada, é glamorizada. O “pai da mentira” é agora personagem, meme ou símbolo de autonomia.

A crítica radical ao cristianismo operada por autores como Nietzsche, Freud e Foucault também colaborou para esse esvaziamento. A doutrina da queda angélica é considerada uma construção repressiva, usada para manter o homem em culpa. O demônio, nesse quadro, é relido como o nome dado ao desejo proibido, à potência instintiva que a religião teria tentado suprimir. Assim, longe de ser evitado, o “diabo” passa a ser reivindicado como símbolo de libertação.

Contudo, essa negação não eliminou os efeitos. Ao se recusar a reconhecer o mal como realidade espiritual, o mundo moderno perdeu também a capacidade de nomear o mal com precisão. Ele continua operando — nas estruturas, nas consciências, nas linguagens — mas agora sem nome, sem rosto, sem discernimento. O que antes era identificado como presença espiritual é hoje ignorado ou acolhido sob a forma de “expressão pessoal”.

Essa confusão final — onde o mal age sem ser reconhecido — talvez seja a forma mais refinada de sua vitória cultural. No artigo conclusivo desta parte, estabeleceremos um paralelo entre as duas visões: escolástica e moderna, real e simbólica, espiritual e psicológica. Não como oposição meramente teórica, mas como diagnóstico de uma transição profunda — e de suas consequências para a alma humana no tempo presente.

Conclusão – Anjos e Demônios: um paralelo entre o passado e o presente.

A comparação entre as visões escolástica e moderna sobre anjos e demônios não revela apenas uma divergência doutrinária ou epistemológica, mas uma mudança radical no modo como o homem se relaciona com o invisível. A concepção escolástica reconhece nos anjos e demônios seres reais, criados, com existência independente da consciência humana, dotados de finalidade, hierarquia e ação. Já o pensamento moderno os rebaixa à condição de metáforas, funções psíquicas, arquétipos simbólicos ou instrumentos culturais.

A teologia clássica vê os anjos como partícipes da ordem divina, mensageiros e executores da Providência, seres que sustentam e conduzem a criação visível segundo graus de luz. Os demônios, por sua vez, são anjos decaídos, cuja escolha livre e definitiva os fixou na recusa do Bem Supremo. Ambos são agentes reais, com atuação distinta e inteligível no cosmos.

A modernidade, porém, ao negar a metafísica do ser e a transcendência objetiva, diluiu os anjos em expressões de afeto, idealismo ou fantasia estética, e os demônios em impulsos reprimidos, revolta simbólica ou manifestações do inconsciente. O resultado é a subjetivação do invisível: o espiritual deixa de ser fundamento ontológico para se tornar projeção interior. E onde antes havia hierarquia e finalidade, restam fluxos psicológicos, tensões internas e narrativas abertas.

Esse deslocamento tem consequências espirituais profundas. A perda da realidade dos anjos priva o homem da consciência da ordem que o transcende e o sustenta. A dissolução da figura do demônio impede o reconhecimento da inteligência do mal, que segue operando, mas agora sem nome nem oposição clara. O homem moderno, ao rebaixar as potências espirituais ao plano interno, fragiliza-se diante do que continua a agir externamente.

A verdade é que anjos e demônios, enquanto seres, não dependem da crença humana para existir. Mas a recusa em reconhecê-los torna o homem mais vulnerável, pois sem discernimento ele não sabe mais de onde vêm certas ideias, impulsos ou estruturas que o afastam do bem. O inimigo que já não se vê, infiltra-se. A ausência do sagrado, quando não é preenchida por Deus, será inevitavelmente ocupada por sua caricatura.

Em última instância, o pensamento escolástico e o moderno não tratam apenas de entidades: tratam da relação entre o homem e o invisível. A escolástica ordena essa relação pelo logos e pela revelação. A modernidade fragmenta-a pela subjetividade e pelo ceticismo. E nesse conflito reside o drama atual: o homem tornou-se órfão de seu anjo e cúmplice inconsciente de seu demônio.

Resta, então, retomar o discernimento. Reconhecer que os anjos não são apenas alegorias do bem, mas presenças reais que sustentam a ordem. Que os demônios não são apenas arquétipos sombrios, mas inteligências espirituais que desviam. E que a realidade, para ser plenamente compreendida, exige do homem não só razão, mas também vigilância, humildade e fidelidade à verdade invisível que dá sentido ao visível.









Nenhum comentário: