quarta-feira, 25 de junho de 2025

Eutífron, o que é a piedade: Aporia — nenhuma definição se sustenta diante do escrutínio socrático.

ÍNDICE

Capítulo I – O Encontro com o Deus e o Julgamento do Homem

Artigo 1 – Entre o Mito e a Lei: O Início da Interrogação

Artigo 2 – O Rosto da Piedade e o Abismo do Conceito


Capítulo II – A Dialética como Crivo e o Silêncio como Verdade

Artigo 1 – A Implosão das Definições: O Desfazimento de Eutífron

Artigo 2 – Aporia: O Sopro do Vazio e o Nascimento do Filósofo

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Capítulo I – O Encontro com o Deus e o Julgamento do Homem.
Artigo 1 – Entre o Mito e a Lei: O Início da Interrogação.

A cena se desenrola diante do Pórtico do Rei, espaço de confluência entre o sagrado e o jurídico, onde o destino dos homens se entrelaça com os desígnios dos deuses. É neste local simbólico que Sócrates encontra Eutífron, homem que se apresenta como conhecedor do divino, pronto a acusar o próprio pai por impiedade. O paradoxo, que para a maioria passaria despercebido, é imediatamente capturado pelo filósofo: como pode alguém, por zelo com os deuses, atentar contra a autoridade paterna, que é, na ordem tradicional, reflexo da própria estrutura do cosmos?

Este encontro não é casual. Ele marca o início de uma desconstrução metódica da ideia de piedade, não apenas como virtude social ou religiosa, mas como conceito filosófico. Sócrates, que comparece ao local para responder a acusações de impiedade, vê no discurso de Eutífron a oportunidade de inverter o jogo: se este homem se diz conhecedor da piedade, talvez possa ensiná-lo e, com isso, livrá-lo das acusações que enfrenta.

Mas a interrogação de Sócrates não busca um conhecimento superficial. Ele não quer exemplos de atos piedosos, mas a essência, a eidos, aquilo que faz com que algo seja, em si, piedoso. Eutífron, porém, se move na superfície do pensamento: oferece definições que oscilam entre o que é agradável aos deuses e o que é aprovado por eles. A cada tentativa, Sócrates opera como uma lâmina lógica, desvelando as contradições internas do discurso.

A primeira definição — “piedoso é o que agrada aos deuses” — é rapidamente desestabilizada. Os deuses, afirma Sócrates, não estão em acordo entre si, e o que é agradável a um pode ser odioso a outro. O que se apresenta como critério objetivo dissolve-se na multiplicidade contraditória do politeísmo. O fundamento pretendido revela-se instável, relativista, portanto inútil à filosofia, que busca o uno por trás da multiplicidade.

A segunda definição — “piedoso é o que é amado por todos os deuses” — tenta contornar o problema, mas Sócrates a desmonta com uma pergunta crucial: algo é piedoso porque é amado pelos deuses, ou é amado pelos deuses porque é piedoso? A estrutura da interrogação desloca o foco da definição para sua causalidade, introduzindo uma clivagem entre essência e atribuição. O que Eutífron oferece não é a natureza da piedade, mas uma consequência de sua manifestação. Não se atinge o ser da piedade, apenas seu reflexo.

Neste primeiro artigo, portanto, a filosofia se insurge contra a repetição mitológica. Sócrates não nega os deuses, mas exige que o logos, e não o costume, fundamente a virtude. A piedade, arrancada de sua função tradicional, se torna objeto de uma investigação que não se satisfaz com aparências. O discurso de Eutífron, pretensamente claro e moralmente elevado, começa a ruir — não por malícia de Sócrates, mas porque não resiste à luz da razão. O que se inicia como uma acusação contra um pai torna-se uma exposição da fragilidade de nossas certezas sobre o divino. E o tribunal da cidade se revela, na verdade, um palco para o juízo da linguagem.

Artigo 2 – O Rosto da Piedade e o Abismo do Conceito.

O embate prossegue, e com ele a figura de Eutífron começa a se revelar em toda a sua fragilidade. Seu saber, antes afirmado com segurança, revela-se inconsistente, pois repousa sobre crenças herdadas e não sobre conhecimento fundamentado. Sócrates, com precisão cirúrgica, conduz seu interlocutor à beira do abismo conceitual, onde já não é possível sustentar definições que se contradizem ou que se limitam a descrições empíricas. A piedade, como conceito, exige um fundamento ontológico, e não apenas um uso retórico ou tradicional.

A interlocução não é violenta, mas desconcertante. Sócrates não impõe doutrina; ele mina as certezas com perguntas. Cada definição oferecida por Eutífron revela, no fundo, a impossibilidade de definir a piedade de modo que não seja ou tautológico ou insuficiente. Quando Eutífron tenta apresentar a piedade como uma parte da justiça — aquela parte que cuida do culto aos deuses — o filósofo imediatamente exige um esclarecimento: que tipo de cuidado seria esse? Seria o cuidado como o do escravo que serve ao senhor? Ou como o do homem que cultiva algo para melhorá-lo?

A insistência de Sócrates revela um problema mais profundo: se piedade é um tipo de serviço, qual seria sua finalidade? Melhorar os deuses? Isso seria impensável. Produzir algo para os deuses? Mas o que os deuses ganhariam com nossas ações? E se tudo que fazemos é apenas agradar, voltamos ao dilema anterior — não uma definição essencial, mas um efeito, um agrado. Eutífron, então, se vê encurralado: não consegue dar conta da própria crença, ainda que atue em nome dela ao acusar o próprio pai. Aqui, a filosofia mostra sua força: ela não destrói crenças por gosto, mas porque exige coerência e verdade no uso da linguagem.

Neste ponto do diálogo, o rosto da piedade se obscurece. O que parecia uma virtude facilmente nomeável, agora se mostra como algo escorregadio, de contornos incertos. Sócrates, sem oferecer resposta definitiva, conduz o outro a ver que não sabe — e esse reconhecimento é o início da verdadeira sabedoria. Não se trata de negar a piedade, mas de recusar falsas certezas sobre ela.

A aporia, que se forma lentamente, não é um beco sem saída, mas uma suspensão que abre espaço para o pensamento. Eutífron, confrontado com a impotência de suas definições, não aprende — ele foge. Mas o leitor atento compreende: é nessa recusa que a diferença entre o filósofo e o religioso convencional se evidencia. A piedade, enquanto conceito, não pode ser reduzida ao útil, ao costumeiro ou ao que os deuses parecem aprovar. Ela exige outro regime de compreensão, talvez inacessível enquanto os deuses forem tomados como múltiplos e mutáveis.

Assim, o diálogo não entrega uma resposta — entrega uma ferida no saber. Mas é precisamente essa ferida que permite a filosofia respirar. A piedade, desvelada como problema, escapa à definição, mas não ao pensamento. E Sócrates, acusado de impiedade, se mostra o único verdadeiramente piedoso: pois é ele quem busca conhecer, e não simplesmente obedecer.

Capítulo II – A Dialética como Crivo e o Silêncio como Verdade.
Artigo 1 – A Implosão das Definições: O Desfazimento de Eutífron.

À medida que o diálogo avança, a estrutura do discurso de Eutífron já não sustenta o peso da interrogação socrática. O que antes se apresentava como certeza doutrinária — o conhecimento da piedade — vai se tornando um conjunto de gestos vazios, ecos de uma tradição não interrogada. A cada nova tentativa de definição, Sócrates não refuta com violência, mas com exatidão lógica: exige não uma repetição de exemplos ou de formas ritualísticas, mas a essência universal do que se quer nomear.

A força do método socrático está em inverter a autoridade. O sacerdote, detentor do saber religioso, é submetido ao tribunal da razão, e nele seu saber é encontrado insuficiente. O que ruge por trás do diálogo é o embate entre duas ordens: a da tradição mítica, que se pretende portadora do saber pelo costume e pela genealogia, e a da filosofia, que exige fundamento, coerência e unidade lógica. Quando Sócrates exige saber se a piedade é piedosa por ser amada pelos deuses ou se é amada por ser piedosa, abre-se uma fenda na lógica da crença. A causalidade é invertida, e o conceito se desfaz.

Eutífron, diante dessa exigência, não sabe mais responder. A piedade, então, já não se mostra como um saber transmissível, mas como uma ficção funcional. Serve para acusar, condenar, justificar — mas não para ser pensada. E é esse o núcleo do diálogo: mostrar que a maior parte das crenças que movem os homens está assentada sobre palavras que jamais foram compreendidas.

A implosão das definições é o verdadeiro rito filosófico. A cada passo, Sócrates não apenas questiona o conteúdo das respostas de Eutífron, mas destrói a própria estrutura de onde essas respostas emergem. Ele não quer apenas uma definição, quer o fundamento da definição. E quando este se mostra ausente, expõe-se a ausência de um verdadeiro saber.

Ao final, Eutífron deseja ir embora. Sua atitude é a do homem comum diante do abismo: recua. A filosofia, que havia oferecido o caminho da verdade, exige, no entanto, o sacrifício das certezas herdadas. E isso, para muitos, é intolerável. Eutífron, que começou como acusador em nome da piedade, termina como acusado pelo vazio de seu próprio discurso.

A piedade, assim, é revelada como um conceito cuja definição escapa ao discurso religioso quando este não é purificado pelo logos. A implosão, portanto, não é destrutiva, mas purificadora. O desfazimento de Eutífron é o nascimento do problema filosófico: só se começa a pensar de fato quando se reconhece que não se sabe.

O logos não fecha a questão; ele a abre radicalmente. A piedade, em vez de ser o ponto de partida, torna-se o horizonte de uma investigação infinita. E a filosofia, nesse contexto, se constitui como fidelidade à aporia — não como ausência de resposta, mas como recusa de qualquer resposta que não resista ao crivo da razão.

Artigo 2 – Aporia: O Sopro do Vazio e o Nascimento do Filósofo.

O diálogo chega ao seu fim sem solução. Nenhuma das definições de Eutífron subsiste ao rigor socrático, e nenhuma nova tentativa se ergue a tempo de restaurar a dignidade do conceito despedaçado. O texto se encerra no ponto em que toda certeza desaba e o pensamento se vê diante de um campo aberto, desprotegido, mas agora purificado. Essa ausência de resposta, longe de ser fracasso, é precisamente o momento fundador da filosofia: a aporia.

Aporia não é ignorância vulgar, não é o simples “não saber”. É um estado de suspensão ativa do juízo, onde o espírito, tendo passado pelo crivo da interrogação, abandona as ilusões do saber herdado e se vê diante do ser sem anteparos. É nesse ponto que o filósofo nasce. Eutífron, porém, não atravessa esse limiar — recua. Sócrates permanece, não com uma resposta, mas com uma abertura: a disposição inquebrantável de continuar pensando.

A aporia revela que a piedade, enquanto conceito, não é acessível por meio de convenções sociais, autoridade sacerdotal ou conformismo dogmático. Ela exige um tipo de aproximação que só o filosofar verdadeiro pode proporcionar: um aproximar-se que nada impõe, mas tudo exige. Sócrates não entrega uma doutrina sobre a piedade, mas uma postura diante do mistério do divino — uma postura de humildade e rigor. A piedade, nesse sentido, não é tanto uma prática, mas uma disposição do espírito: o reconhecimento da própria insuficiência diante do que transcende, e, justamente por isso, o impulso inapagável de buscar compreender.

O silêncio que encerra o diálogo é eloquente. Ele não é abandono, mas um espaço deixado em branco, onde o leitor é convocado a continuar o caminho. Sócrates não finaliza porque a filosofia não se encerra; ela é sempre recomeço, sempre reinício, sempre retorno ao ponto onde o saber aparente caiu. A aporia é, assim, a condição fundamental do pensar autêntico — um espaço onde o homem deixa de se repetir e começa, enfim, a escutar.

Neste silêncio final, Sócrates aparece como o verdadeiro piedoso: não aquele que fala muito sobre os deuses, mas aquele que recusa se apropriar deles com palavras vãs. Sua piedade é filosófica — e, paradoxalmente, por isso mesmo, é mais radical que a de qualquer sacerdote. Pois ela não se curva ao costume, nem se satisfaz com mitos: ela se ajoelha diante do que não se sabe, e ali permanece, em vigília.

O Eutífron, assim, não ensina o que é a piedade — mostra o que é pensar. E quem pensa, mesmo que acabe sem resposta, se aproxima mais do divino do que aquele que repete fórmulas. A aporia é o altar da filosofia. Só quem a suporta pode começar a compreender.

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