terça-feira, 10 de junho de 2025

Reconhecimento e Ego - Desejo, Imitação e Realidade.

 


ÍNDICE

Capítulo I — A construção do desejo no espelho do mundo.

1.      A necessidade de reconhecimento ontem e hoje

2.      A delimitação, o ego

3.      A imitação como manifestação da fama

4.      Desejo e realidade: a luta dos opostos

5.      A carência como fonte que quebra as barreiras

Capítulo II — As ruínas do espelho e a fome pelo real.

1.      O tripé

2.      O que perdemos?

3.      O caos instalado: redes sociais, todo mundo quer fama

4.      A sombra simbólica: como a falta cria o monstro

5.      O real: a necessidade de um retorno à fonte

Conclusão — O reconhecimento, o ego e o chamado do real.

Capítulo I — A construção do desejo no espelho do mundo.


Artigo 1 — A necessidade de reconhecimento ontem e hoje.

Desde os primórdios da civilização, o homem precisou ser reconhecido. Não apenas como indivíduo, mas como parte viva de uma ordem. Esse reconhecimento não era um fim em si mesmo, mas a confirmação de que o sujeito ocupava um lugar legítimo na hierarquia do mundo — seja como guerreiro, sábio, sacerdote, pai ou filho. Ser visto era ser inserido. O olhar do outro, nesse contexto, não era espelho narcísico, mas testemunho de pertença. O reconhecimento vinha da participação no simbólico, da obediência a uma ordem anterior ao sujeito, onde o valor não se criava, mas se recebia.

Entretanto, essa estrutura rompe-se na modernidade. O reconhecimento, já não mais enraizado no coletivo, torna-se um projeto individual, ansioso, performático. O outro, que antes reconhecia aquilo que o sujeito já era, agora é convocado a legitimar o que ainda se quer ser. O reconhecimento não nasce mais da função, mas do destaque; não mais da virtude, mas da visibilidade. O olhar que antes confirmava, agora fabrica. A consequência é o colapso da interioridade: o sujeito perde sua densidade, pois sua identidade passa a depender do reflexo instável do olhar alheio.

Hoje, somos ensinados a querer ser vistos, não a ser. A cultura da imagem substituiu a cultura do sentido. O valor subjetivo foi substituído pela aprovação pública. A necessidade de reconhecimento tornou-se vício, e o vício tornou-se critério. Já não se vive para corresponder à verdade do ser, mas para corresponder às expectativas do olhar coletivo. E essa inversão abre a ferida que os artigos seguintes irão aprofundar: a do ego fragilizado, a da identidade construída como vitrine e a da alma que se afoga na própria ausência.

Artigo 2 — A delimitação, o ego.

Se a necessidade de reconhecimento atravessa a história humana como traço estrutural, a modernidade a converte em centro de gravidade psíquico. No entanto, para que esse reconhecimento não se transforme em tirania, é necessária uma instância delimitadora, um ponto de mediação entre o desejo e o real — essa instância é o ego. É ele, por definição, que deveria assumir o papel de filtro, de fronteira, de organização da experiência interior. Sem o ego como centro estável, a necessidade de ser reconhecido desborda, invade o campo da identidade, e o sujeito já não sabe se vive para ser ou apenas para ser visto.

Mas esse ego, que nas estruturas tradicionais era formado por vínculos fortes, símbolos transcendentes e papéis bem definidos, foi desarticulado pela lógica da exposição permanente. Ele não consegue mais impor um “basta”, pois depende da imagem para existir. Sua função original — ser o mediador entre os impulsos e a realidade — foi trocada por uma nova função: a de curador da própria aparência. O ego moderno não organiza o ser, apenas administra o parecer.

O elo com o artigo anterior é direto: se o reconhecimento passou a depender da performance e não da substância, o ego, que deveria ser o guardião da interioridade, tornou-se escravo da exterioridade. Ele já não regula a sede de reconhecimento — apenas a amplifica. Cada curtida, cada exposição, cada réplica reforça essa dependência que o ego deveria impedir. A delimitação desaparece, e com ela, o sujeito se fragmenta.

Essa fragmentação se revela de forma concreta e alarmante no fenômeno da imitação, onde o desejo não se volta mais ao real, mas à cópia — questão que será explorada no artigo seguinte, como expressão visível do esvaziamento do eu e da absolutização do outro como espelho.

Artigo 3 — A imitação como manifestação da fama.

Diante de um ego fragilizado, sem força para impor fronteiras ao desejo de reconhecimento, emerge uma forma sintomática de sobrevivência psíquica: a imitação. Não se trata mais da velha mimesis aristotélica, onde o imitador busca aprender pela cópia, mas de uma imitação estéril, desvinculada da realidade e voltada apenas à apropriação de uma aparência bem-sucedida. O sujeito já não deseja ser — deseja parecer com quem é visto. A fama, neste contexto, deixa de ser exceção e torna-se critério de existência.

Essa transição entre o esvaziamento do ego e a compulsão pela imitação é natural: sem um eixo interno, o sujeito procura formas externas de validação. E a forma mais rápida de obter reconhecimento é copiar aquele que já o possui. A imitação, então, se converte em mecanismo de visibilidade, não mais de formação. Copia-se o tom, o gesto, o discurso, a narrativa, como se ao repetir o figurino do outro fosse possível vestir-se de identidade. É o triunfo do reflexo sobre a substância.

A fama, antes consequência eventual de um feito, de uma virtude ou de uma contribuição, torna-se finalidade em si mesma. Nessa lógica, o sujeito não imita para se formar, mas para ser notado. A imitação torna-se, portanto, expressão direta da carência estrutural instaurada pela queda do ego enquanto delimitador. Uma carência que não deseja a verdade do outro, mas sua visibilidade.

Este artigo se liga diretamente ao anterior porque mostra a consequência inevitável da fragilidade do ego: ao não conseguir sustentar a identidade a partir de si, o sujeito se vê obrigado a construir-se pela réplica. Mas essa réplica não toca o real — apenas o encena. E nessa encenação, o desejo se desencontra da realidade, produzindo uma tensão crescente que será explorada no próximo artigo: a luta dos opostos entre desejo e realidade, e a corrosão que esse conflito opera no interior do sujeito.

Artigo 4 — Desejo e realidade: a luta dos opostos.

A imitação, enquanto forma degenerada de busca por reconhecimento, revela um conflito mais profundo: o antagonismo entre desejo e realidade. Este embate não é novo, mas na contemporaneidade ele assume contornos mais agudos, pois o desejo, alimentado pela cultura da imagem, deixou de reconhecer limites. O sujeito, descentrado de si, passa a viver num estado de tensão constante, na tentativa de ajustar um desejo ilimitado a uma realidade que, por natureza, impõe resistência, demora e negação.

Desejar, em sua essência, é projetar-se além do que se é; é aspirar, mover-se em direção a algo. A realidade, por outro lado, é o campo onde os contornos são fixos, onde o outro existe como alteridade concreta e não como extensão do próprio querer. O problema ocorre quando o desejo já não admite o obstáculo como parte do processo, mas o interpreta como afronta. Isso gera frustração, ressentimento e, por fim, negação do real. O mundo passa a ser percebido como injusto, não porque o seja, mas porque não se curva ao imediatismo do desejo modelado pela lógica da visibilidade e da fama.

Esse conflito corrói o interior do sujeito. O desejo não encontra repouso, e a realidade é tratada como erro. Como o ego perdeu sua função mediadora — como vimos no artigo anterior — não há quem reconcilie os dois polos. O resultado é o descompasso psíquico: uma alma que deseja o que não pode alcançar, e que despreza o que poderia construir. A vida interior se torna um campo de batalha silencioso, onde não há síntese, apenas exaustão.

Esse esgotamento gera o terreno perfeito para a instalação da carência — não como ausência temporária, mas como estrutura permanente da subjetividade. O próximo artigo aprofunda essa transição, mostrando como a carência se estabelece como fonte constante que mina qualquer possibilidade de interioridade sólida, convertendo o desejo em vício e o reconhecimento em obsessão.

Artigo 5 — A carência como fonte que quebra as barreiras.

Quando o desejo perde sua ancoragem no real e o ego fracassa em sua função delimitadora, instala-se um estado de carência estrutural. Esta carência não é ausência simples, como quem espera por algo que virá, mas uma fome contínua que já não busca ser saciada, apenas mantida. Ela se torna o novo motor psíquico, substituindo o impulso vital por um circuito fechado de busca por validação, sem interioridade que lhe dê sentido. Já não se deseja o outro por aquilo que ele é, mas pelo que ele representa diante do olhar coletivo. O mundo se converte em vitrine de possibilidades que não nutrem, apenas provocam.

Essa carência mina o que ainda resta do ego. As barreiras psíquicas, que deveriam conter a pressão do desejo, já não resistem. O eu é continuamente perfurado por imagens, expectativas e frustrações que não podem mais ser metabolizadas. A alma se torna porosa, vulnerável, sem camadas de proteção. E o sujeito, nessa condição, já não sabe mais distinguir entre o que realmente necessita e o que apenas deseja para ser aceito. Tudo se torna urgência, tudo é carência.

Esse estado interno de fragilidade permanente cria uma subjetividade de superfície. Sem repouso, sem profundidade, sem eixo. A ausência de reconhecimento não é mais vivida como parte da condição humana, mas como injustiça intolerável. E como não há mais um simbólico que ofereça sentido ao sofrimento, a dor da falta se transforma em desespero, e o desespero em performance. O grito do sujeito carente não é pelo sentido, mas pela audiência.

Com isso, encerra-se o primeiro capítulo: partimos da transformação histórica da necessidade de reconhecimento e acompanhamos, passo a passo, sua corrosão. Vimos o ego colapsar, a imitação se instalar, o desejo se divorciar do real e, por fim, a carência assumir o comando da vida psíquica. É esse estado de ruína interior que nos conduz ao segundo capítulo, onde o tripé da desestruturação será identificado, e onde as consequências visíveis dessa implosão subjetiva — sobretudo nas redes, nas relações e na cultura — serão analisadas como sintomas de uma perda mais profunda: a do próprio real.

Capítulo II — As ruínas do espelho e a fome pelo real.

Artigo 1 — O tripé.

Encerrado o percurso que revelou o colapso da interioridade pela via da carência, torna-se necessário entender os alicerces que permitiram essa derrocada. Há um tripé estrutural que sustenta o estado atual de dissolução subjetiva: a perda do eixo simbólico, a tirania da exposição e a fragilidade dos vínculos reais. Esses três elementos, interligados e mutuamente reforçados, não apenas explicam o adoecimento psíquico moderno, mas também o tornam funcional, socialmente aceito e até desejável. Não se trata mais de desvios individuais — o mal é sistêmico.

A perda do eixo simbólico é o primeiro e mais profundo golpe. Quando as sociedades viviam sob estruturas de sentido maiores que o indivíduo — tradições, mitos, religiões — o ego podia repousar sobre um solo comum. O sujeito era reconhecido por algo anterior a ele: uma linhagem, um Deus, um dever. Com o colapso dessas estruturas, o sujeito foi lançado à tarefa de criar sua própria legitimidade, sem ferramentas que o sustentassem. E o ego, frágil, incapaz de gerar sentido sozinho, se fragmentou.

Essa fragmentação se encontrou com a ditadura da exposição. O mundo tornou-se palco, e o sujeito, personagem. A intimidade foi convertida em produto e a imagem, em identidade. Mostrar-se passou a valer mais do que ser. Tudo é construído para ser visto, mesmo que nada tenha substância. A carência, antes interna, agora é performada. O ego, que já havia perdido o centro, torna-se cúmplice dessa encenação — não mais mediador, mas estrategista da visibilidade.

Por fim, a fragilidade dos vínculos selou a ruptura. Sem o simbólico e sob a pressão da imagem, as relações humanas tornaram-se superficiais, instrumentais, descartáveis. O outro não é mais mistério a ser descoberto, mas recurso a ser usado. O reconhecimento, antes mediado por vínculos autênticos, cede lugar à aprovação quantitativa. E nesse cenário, a carência se consolida como modo de vida — não mais erro, mas sistema.

Este tripé — dissolução simbólica, espetáculo da imagem e vínculos frágeis — não apenas explica o estado em que o sujeito se encontra, mas revela que a crise é mais profunda do que parece. No próximo artigo, mergulharemos naquilo que foi perdido: não apenas estruturas externas, mas uma forma inteira de habitar o mundo, de relacionar-se consigo, com o outro e com o real. É o vazio herdado da ruptura — e a impossibilidade de preenchê-lo com o que agora se oferece.

Artigo 2 — O que perdemos?

O tripé anteriormente descrito não apenas reconfigurou as condições da subjetividade, mas instaurou uma perda profunda — não de objetos, mas de qualidades do ser. Perdemos a interioridade como território sagrado. Perdemos o silêncio como espaço de escuta de si. Perdemos a lentidão como forma de maturação do real. Em troca, recebemos aceleração, ruído e saturação imagética. O sujeito moderno está cercado por estímulos, mas distante de si. Ele vê tudo, mas não enxerga nada. Ele sente tudo, mas não suporta coisa alguma.

O que se perdeu foi o centro silencioso onde o eu se escuta. Esse lugar, que outrora era protegido por símbolos, rituais, vínculos e limites, foi exposto à lógica da visibilidade. Já não se sofre para compreender, mas para expor. Já não se cala para refletir, mas para preparar o próximo grito. O outro, que antes ajudava a revelar o ser, hoje apenas confirma a imagem que se quer projetar. A relação tornou-se espelho distorcido — e o espelho, única fonte de identidade.

Essa perda não é facilmente percebida, pois foi substituída por excesso. Excesso de fala, de imagens, de relações superficiais. Mas o excesso não é riqueza — é sintoma. A cultura da imagem não preenche o vazio: a mascara. A identidade virou projeto estético, a dor virou engajamento, o pensar virou performance. O sujeito já não é capaz de viver um instante sem registrá-lo, como se sua existência só fosse real quando transformada em narrativa pública.

Esse desdobramento está diretamente ligado ao que o tripé sustenta: um sistema que aniquila o ser e exalta o parecer. Ao perder o interior como fonte, tudo o que resta é o exterior como farsa. No próximo artigo, veremos como esse sistema opera em sua forma mais visível e aguda: o ambiente das redes sociais, onde o caos se estrutura e a fama se torna o único sagrado restante. É ali que o que foi perdido já não faz falta, pois o barulho é tamanho que o silêncio já não é sequer lembrado.

Artigo 3 — O caos instalado: redes sociais, todo mundo quer fama.

O ambiente das redes sociais cristaliza de forma quase cirúrgica tudo o que foi anteriormente tratado: o colapso da interioridade, a corrosão do ego, a carência como motor, e a cultura da imagem como sistema totalitário. Nesse espaço, não há mais distinção entre vida e representação, entre intimidade e espetáculo. O sujeito, já desprovido de centro, se transforma por completo em avatar — um constructo moldado para agradar, impactar, competir e permanecer visível. Nas redes, o ser é irrelevante: o que importa é ser notado.

A lógica das redes sociais opera por mecanismos que reforçam a carência: algoritmos que premiam o exagero, métricas que alimentam a obsessão, filtros que distorcem a realidade. A fama, que outrora era fruto de uma trajetória, torna-se aqui um ponto de partida. Todos querem começar sendo vistos, ainda que não haja o que mostrar. Isso transforma a existência em disputa, onde não há tempo para aprofundamento nem espaço para silêncio. Tudo é ruído, tudo é pressa. A alma, saturada de exposição, já não sabe mais habitar-se.

Nesse ambiente, a subjetividade é submetida a uma pressão constante. A comparação é inevitável, o fracasso é público, a ausência é interpretada como fraqueza. Ninguém desaparece sem ser esquecido, e ninguém sobrevive sem engajar. As redes não oferecem reconhecimento — oferecem visibilidade. E visibilidade não é amor, não é verdade, não é sentido. É luz fria, intermitente, impessoal. O sujeito, mergulhado nesse mar de reflexos, perde a noção do que sente, do que pensa, do que quer. Tudo precisa ser moldado para caber na vitrine.

Este artigo se liga diretamente ao anterior, pois aqui vemos com clareza o resultado concreto da perda do interior: um sujeito que vive em função do que aparece, e que já não reconhece a falta como sinal de profundidade, mas como falha de performance. No próximo artigo, veremos como esse estado de caos e carência produz não apenas ansiedade ou angústia, mas monstros simbólicos — formas deformadas do sentido, criadas para preencher o vazio deixado pelo simbólico que já não habita mais o mundo. É a sombra que surge quando o símbolo morre.

Artigo 4 — A sombra simbólica: como a falta cria o monstro.

Toda cultura que rompe com seus símbolos estruturantes gera sombras. E essas sombras não são apenas ausência, mas forma. Quando o simbólico — que outrora oferecia sentido, limite, transcendência — se retira, o vazio deixado por ele clama por preenchimento. O sujeito, incapaz de habitar o silêncio dessa ausência, começa a projetar. E o que projeta já não é símbolo, mas simulacro; não é forma reveladora, mas máscara defensiva. Surge, então, o monstro: aquilo que encarna uma potência distorcida, que simula sentido, mas apenas ecoa carência.

Essa sombra simbólica se manifesta em múltiplas formas: nas figuras públicas construídas como ídolos de barro, nas ideologias rasas tratadas como religião, nos discursos agressivos usados como âncoras de identidade, nas comunidades digitais unidas não por amor ao real, mas por ódio ao diferente. O monstro nasce da fome por sentido, mas se alimenta de ilusão. Ele conforta porque oferece pertencimento rápido, respostas fáceis, narrativa forte. Mas esse conforto é falso, pois nada toca o centro do sujeito — apenas o ocupa.

Há uma ligação direta com o artigo anterior: as redes sociais, ao promoverem carência e espetáculo, são terreno fértil para a proliferação dessas sombras. Quando tudo se torna visível, o invisível é sufocado. E como o homem não pode viver sem o invisível — sem um sentido que ultrapasse o imediato — ele começa a construir ídolos e monstros a partir da própria falta. O caos simbólico não é apenas confusão conceitual; é desfiguração do sagrado. E quando o sagrado desaparece, o grotesco toma seu lugar.

Essas formas monstruosas se impõem como novos referenciais. A fama sem mérito, a autoridade sem sabedoria, a influência sem substância. E o sujeito, já fragilizado, entrega-se a esses espectros como quem busca salvação. Mas não há salvação na sombra — apenas mais reflexo da ausência.

No próximo artigo, retornaremos à questão que atravessa todos os anteriores: é possível resgatar o real? Aquele que não depende do reflexo, do desejo alheio, da performance ou da carência? A resposta exige um retorno — não nostálgico, mas radical — à fonte. Àquilo que sustenta o ser mesmo quando ninguém olha. Ao silêncio que permanece depois que a última imagem se apaga.

Artigo 5 — O real: a necessidade de um retorno à fonte.

Diante do colapso do simbólico, do caos da imagem e da fome insaciável de reconhecimento, impõe-se a pergunta que atravessa silenciosamente todos os artigos anteriores: o que ainda pode fundar o sujeito? A resposta, embora incômoda aos ouvidos moldados pela estética da exposição, repousa numa única palavra: o real. Não o real como mera oposição ao fictício ou como dado bruto da experiência sensível, mas o real como aquilo que resiste ao desejo, que impõe contorno ao eu, que exige silêncio, interioridade, renúncia e verdade. O real é o que não se curva à vontade de ser visto — é o que persiste mesmo quando ninguém olha.

O retorno à fonte não é regressão nostálgica, mas reencontro com aquilo que antecede o espetáculo. A fonte é aquilo que permite o ser antes de qualquer performance. É o silêncio anterior à palavra, a verdade anterior à narrativa, a presença anterior à imagem. O real não seduz, não brilha, não viraliza. Mas ele sustenta. E é isso que foi perdido. O sujeito moderno, ao romper com o real, trocou solidez por leveza, profundidade por fluxo, essência por reflexo. A fonte secou, não por falta de água, mas porque ninguém mais desce até ela.

O elo com o artigo anterior é inevitável: onde a sombra do simbólico impera, só o retorno à fonte pode restituir a luz. Mas esse retorno exige enfrentamento: da carência, da pressa, do ego deformado. Exige reconstituir o silêncio interior e aceitar o não como parte da formação do eu. Significa abandonar o palco e voltar à caverna — não para permanecer nas trevas, mas para reencontrar o que a luz artificial ocultou.

O real não está nas redes, nem na fama, nem nas projeções. Ele está no intervalo entre o que se sente e o que se diz, entre o que se é e o que se mostra. Está naquilo que resiste ao algoritmo: a espera, o cuidado, a palavra viva, o vínculo autêntico. É preciso reaprender a reconhecer o real como forma de cura. Pois sem ele, o sujeito continuará a girar em torno de si mesmo, num vórtice cada vez mais ruidoso e vazio.

Com este artigo, encerramos o segundo capítulo. A travessia está completa: da carência à sombra, do caos à fonte, do reflexo ao real. Agora, na conclusão, caberá sintetizar esse percurso e apontar, não uma solução pronta, mas uma abertura — uma brecha onde o silêncio possa falar mais alto que a imagem.

Conclusão — O reconhecimento, o ego e o chamado do real.

O percurso aqui traçado revelou, em camadas sucessivas, a anatomia de uma crise silenciosa: a mutação da necessidade de reconhecimento em carência existencial, o colapso do ego como mediador psíquico, e a transformação do desejo em espetáculo. Iniciamos pela constatação de que o reconhecimento, outrora alicerçado em estruturas simbólicas duradouras, converteu-se em urgência de ser visto, em dependência do olhar alheio como critério de existência. O ego, que deveria delimitar e proteger o sujeito, cedeu ao apelo da imagem. A imitação, a dissociação entre desejo e realidade, e a instalação da carência completaram o ciclo de erosão da interioridade.

No segundo capítulo, a crise ganhou corpo. Identificamos o tripé que sustenta o estado atual: dissolução simbólica, tirania da exposição e fragilidade dos vínculos. Em seguida, investigamos aquilo que, no processo, foi perdido — não apenas estruturas externas, mas a própria espessura do ser. As redes sociais apareceram como palco privilegiado do colapso, onde todos buscam fama como substituto do reconhecimento verdadeiro. E ali, entre reflexos e ruídos, emergem as sombras: figuras deformadas criadas para preencher um vazio que só o real poderia sustentar. Por fim, o último artigo propôs o que talvez seja o único caminho possível: um retorno à fonte. Não à forma antiga, mas ao núcleo do que é real — aquilo que resiste, sustenta e não se vende.

A conclusão, porém, não deve oferecer fechamento total. Pois o que está em jogo não é apenas diagnóstico, mas convocação. A crise do reconhecimento não será resolvida com mais visibilidade, nem com fórmulas terapêuticas que apenas ensinam a gerir o sofrimento sem enfrentá-lo. O que se exige é um gesto radical: o abandono da vitrine, o reencontro com o invisível, a reconstrução do ego como estrutura interior e não como reflexo adaptado. Isso implica suportar o silêncio, acolher o limite, reconhecer o outro não como plateia, mas como presença.

Este texto deixa, portanto, não uma solução, mas uma fresta. Uma abertura possível por onde o sujeito possa passar — não correndo, não gritando, mas caminhando lentamente em direção àquilo que, mesmo esquecido, ainda pulsa. O real continua ali. Não se impôs, não gritou, não apareceu. Apenas permaneceu. E talvez seja esse o maior sinal de sua verdade.

 

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