ÍNDICE
Capítulo I —
A construção do desejo no espelho do mundo.
1. A necessidade
de reconhecimento ontem e hoje
2. A
delimitação, o ego
3. A imitação
como manifestação da fama
4. Desejo e
realidade: a luta dos opostos
5. A carência
como fonte que quebra as barreiras
Capítulo II —
As ruínas do espelho e a fome pelo real.
1. O tripé
2. O que
perdemos?
3. O caos
instalado: redes sociais, todo mundo quer fama
4. A sombra
simbólica: como a falta cria o monstro
5. O real: a
necessidade de um retorno à fonte
Conclusão — O
reconhecimento, o ego e o chamado do real.
Capítulo I — A construção do desejo no espelho do
mundo.
Artigo 1 — A necessidade de reconhecimento ontem e hoje.
Desde os primórdios da civilização, o homem precisou ser reconhecido.
Não apenas como indivíduo, mas como parte viva de uma ordem. Esse
reconhecimento não era um fim em si mesmo, mas a confirmação de que o sujeito
ocupava um lugar legítimo na hierarquia do mundo — seja como guerreiro, sábio,
sacerdote, pai ou filho. Ser visto era ser inserido. O olhar do outro, nesse
contexto, não era espelho narcísico, mas testemunho de pertença. O
reconhecimento vinha da participação no simbólico, da obediência a uma ordem
anterior ao sujeito, onde o valor não se criava, mas se recebia.
Entretanto, essa estrutura rompe-se na modernidade. O reconhecimento, já
não mais enraizado no coletivo, torna-se um projeto individual, ansioso,
performático. O outro, que antes reconhecia aquilo que o sujeito já era, agora
é convocado a legitimar o que ainda se quer ser. O reconhecimento não nasce
mais da função, mas do destaque; não mais da virtude, mas da visibilidade. O
olhar que antes confirmava, agora fabrica. A consequência é o colapso da
interioridade: o sujeito perde sua densidade, pois sua identidade passa a
depender do reflexo instável do olhar alheio.
Hoje, somos ensinados a querer ser vistos, não a ser. A cultura da
imagem substituiu a cultura do sentido. O valor subjetivo foi substituído pela
aprovação pública. A necessidade de reconhecimento tornou-se vício, e o vício
tornou-se critério. Já não se vive para corresponder à verdade do ser, mas para
corresponder às expectativas do olhar coletivo. E essa inversão abre a ferida
que os artigos seguintes irão aprofundar: a do ego fragilizado, a da identidade
construída como vitrine e a da alma que se afoga na própria ausência.
Artigo 2 — A delimitação, o ego.
Se a necessidade de reconhecimento atravessa a história humana como
traço estrutural, a modernidade a converte em centro de gravidade psíquico. No
entanto, para que esse reconhecimento não se transforme em tirania, é
necessária uma instância delimitadora, um ponto de mediação entre o desejo e o
real — essa instância é o ego. É ele, por definição, que deveria assumir o
papel de filtro, de fronteira, de organização da experiência interior. Sem o
ego como centro estável, a necessidade de ser reconhecido desborda, invade o
campo da identidade, e o sujeito já não sabe se vive para ser ou apenas para
ser visto.
Mas esse ego, que nas estruturas tradicionais era formado por vínculos
fortes, símbolos transcendentes e papéis bem definidos, foi desarticulado pela
lógica da exposição permanente. Ele não consegue mais impor um “basta”, pois
depende da imagem para existir. Sua função original — ser o mediador entre os
impulsos e a realidade — foi trocada por uma nova função: a de curador da
própria aparência. O ego moderno não organiza o ser, apenas administra o
parecer.
O elo com o artigo anterior é direto: se o reconhecimento passou a
depender da performance e não da substância, o ego, que deveria ser o guardião
da interioridade, tornou-se escravo da exterioridade. Ele já não regula a sede
de reconhecimento — apenas a amplifica. Cada curtida, cada exposição, cada
réplica reforça essa dependência que o ego deveria impedir. A delimitação
desaparece, e com ela, o sujeito se fragmenta.
Essa fragmentação se revela de forma concreta e alarmante no fenômeno da
imitação, onde o desejo não se volta mais ao real, mas à cópia — questão que
será explorada no artigo seguinte, como expressão visível do esvaziamento do eu
e da absolutização do outro como espelho.
Artigo 3 — A imitação como manifestação da fama.
Diante de um ego fragilizado, sem força para impor fronteiras ao desejo
de reconhecimento, emerge uma forma sintomática de sobrevivência psíquica: a
imitação. Não se trata mais da velha mimesis aristotélica, onde o imitador
busca aprender pela cópia, mas de uma imitação estéril, desvinculada da
realidade e voltada apenas à apropriação de uma aparência bem-sucedida. O
sujeito já não deseja ser — deseja parecer com quem é visto. A
fama, neste contexto, deixa de ser exceção e torna-se critério de existência.
Essa transição entre o esvaziamento do ego e a compulsão pela imitação é
natural: sem um eixo interno, o sujeito procura formas externas de validação. E
a forma mais rápida de obter reconhecimento é copiar aquele que já o possui. A
imitação, então, se converte em mecanismo de visibilidade, não mais de formação.
Copia-se o tom, o gesto, o discurso, a narrativa, como se ao repetir o figurino
do outro fosse possível vestir-se de identidade. É o triunfo do reflexo sobre a
substância.
A fama, antes consequência eventual de um feito, de uma virtude ou de
uma contribuição, torna-se finalidade em si mesma. Nessa lógica, o sujeito não
imita para se formar, mas para ser notado. A imitação torna-se, portanto,
expressão direta da carência estrutural instaurada pela queda do ego enquanto
delimitador. Uma carência que não deseja a verdade do outro, mas sua
visibilidade.
Este artigo se liga diretamente ao anterior porque mostra a consequência
inevitável da fragilidade do ego: ao não conseguir sustentar a identidade a
partir de si, o sujeito se vê obrigado a construir-se pela réplica. Mas essa
réplica não toca o real — apenas o encena. E nessa encenação, o desejo se
desencontra da realidade, produzindo uma tensão crescente que será explorada no
próximo artigo: a luta dos opostos entre desejo e realidade, e a corrosão que
esse conflito opera no interior do sujeito.
Artigo 4 — Desejo e realidade: a luta dos opostos.
A imitação, enquanto forma degenerada de busca por reconhecimento,
revela um conflito mais profundo: o antagonismo entre desejo e realidade. Este
embate não é novo, mas na contemporaneidade ele assume contornos mais agudos,
pois o desejo, alimentado pela cultura da imagem, deixou de reconhecer limites.
O sujeito, descentrado de si, passa a viver num estado de tensão constante, na
tentativa de ajustar um desejo ilimitado a uma realidade que, por natureza,
impõe resistência, demora e negação.
Desejar, em sua essência, é projetar-se além do que se é; é aspirar,
mover-se em direção a algo. A realidade, por outro lado, é o campo onde os
contornos são fixos, onde o outro existe como alteridade concreta e não como
extensão do próprio querer. O problema ocorre quando o desejo já não admite o
obstáculo como parte do processo, mas o interpreta como afronta. Isso gera
frustração, ressentimento e, por fim, negação do real. O mundo passa a ser
percebido como injusto, não porque o seja, mas porque não se curva ao
imediatismo do desejo modelado pela lógica da visibilidade e da fama.
Esse conflito corrói o interior do sujeito. O desejo não encontra
repouso, e a realidade é tratada como erro. Como o ego perdeu sua função
mediadora — como vimos no artigo anterior — não há quem reconcilie os dois
polos. O resultado é o descompasso psíquico: uma alma que deseja o que não pode
alcançar, e que despreza o que poderia construir. A vida interior se torna um
campo de batalha silencioso, onde não há síntese, apenas exaustão.
Esse esgotamento gera o terreno perfeito para a instalação da carência —
não como ausência temporária, mas como estrutura permanente da subjetividade. O
próximo artigo aprofunda essa transição, mostrando como a carência se
estabelece como fonte constante que mina qualquer possibilidade de
interioridade sólida, convertendo o desejo em vício e o reconhecimento em
obsessão.
Artigo 5 — A carência como fonte que quebra as
barreiras.
Quando o desejo perde sua ancoragem no real e o ego fracassa em sua
função delimitadora, instala-se um estado de carência estrutural. Esta carência
não é ausência simples, como quem espera por algo que virá, mas uma fome
contínua que já não busca ser saciada, apenas mantida. Ela se torna o novo
motor psíquico, substituindo o impulso vital por um circuito fechado de busca
por validação, sem interioridade que lhe dê sentido. Já não se deseja o outro
por aquilo que ele é, mas pelo que ele representa diante do olhar coletivo. O
mundo se converte em vitrine de possibilidades que não nutrem, apenas provocam.
Essa carência mina o que ainda resta do ego. As barreiras psíquicas, que
deveriam conter a pressão do desejo, já não resistem. O eu é continuamente
perfurado por imagens, expectativas e frustrações que não podem mais ser
metabolizadas. A alma se torna porosa, vulnerável, sem camadas de proteção. E o
sujeito, nessa condição, já não sabe mais distinguir entre o que realmente
necessita e o que apenas deseja para ser aceito. Tudo se torna urgência, tudo é
carência.
Esse estado interno de fragilidade permanente cria uma subjetividade de
superfície. Sem repouso, sem profundidade, sem eixo. A ausência de
reconhecimento não é mais vivida como parte da condição humana, mas como injustiça
intolerável. E como não há mais um simbólico que ofereça sentido ao sofrimento,
a dor da falta se transforma em desespero, e o desespero em performance. O
grito do sujeito carente não é pelo sentido, mas pela audiência.
Com isso, encerra-se o primeiro capítulo: partimos da transformação
histórica da necessidade de reconhecimento e acompanhamos, passo a passo, sua
corrosão. Vimos o ego colapsar, a imitação se instalar, o desejo se divorciar
do real e, por fim, a carência assumir o comando da vida psíquica. É esse
estado de ruína interior que nos conduz ao segundo capítulo, onde o tripé da
desestruturação será identificado, e onde as consequências visíveis dessa
implosão subjetiva — sobretudo nas redes, nas relações e na cultura — serão
analisadas como sintomas de uma perda mais profunda: a do próprio real.
Capítulo II — As ruínas do espelho e a fome
pelo real.
Artigo 1 — O tripé.
Encerrado o percurso que revelou o colapso da interioridade pela via da
carência, torna-se necessário entender os alicerces que permitiram essa
derrocada. Há um tripé estrutural que sustenta o estado atual de dissolução
subjetiva: a perda do eixo simbólico, a tirania da exposição e a fragilidade
dos vínculos reais. Esses três elementos, interligados e mutuamente reforçados,
não apenas explicam o adoecimento psíquico moderno, mas também o tornam
funcional, socialmente aceito e até desejável. Não se trata mais de desvios
individuais — o mal é sistêmico.
A perda do eixo simbólico é o primeiro e mais profundo golpe. Quando as
sociedades viviam sob estruturas de sentido maiores que o indivíduo —
tradições, mitos, religiões — o ego podia repousar sobre um solo comum. O
sujeito era reconhecido por algo anterior a ele: uma linhagem, um Deus, um
dever. Com o colapso dessas estruturas, o sujeito foi lançado à tarefa de criar
sua própria legitimidade, sem ferramentas que o sustentassem. E o ego, frágil,
incapaz de gerar sentido sozinho, se fragmentou.
Essa fragmentação se encontrou com a ditadura da exposição. O mundo
tornou-se palco, e o sujeito, personagem. A intimidade foi convertida em
produto e a imagem, em identidade. Mostrar-se passou a valer mais do que ser.
Tudo é construído para ser visto, mesmo que nada tenha substância. A carência,
antes interna, agora é performada. O ego, que já havia perdido o centro,
torna-se cúmplice dessa encenação — não mais mediador, mas estrategista da
visibilidade.
Por fim, a fragilidade dos vínculos selou a ruptura. Sem o simbólico e
sob a pressão da imagem, as relações humanas tornaram-se superficiais, instrumentais,
descartáveis. O outro não é mais mistério a ser descoberto, mas recurso a ser
usado. O reconhecimento, antes mediado por vínculos autênticos, cede lugar à
aprovação quantitativa. E nesse cenário, a carência se consolida como modo de
vida — não mais erro, mas sistema.
Este tripé — dissolução simbólica, espetáculo da imagem e vínculos
frágeis — não apenas explica o estado em que o sujeito se encontra, mas revela
que a crise é mais profunda do que parece. No próximo artigo, mergulharemos
naquilo que foi perdido: não apenas estruturas externas, mas uma forma inteira
de habitar o mundo, de relacionar-se consigo, com o outro e com o real. É o
vazio herdado da ruptura — e a impossibilidade de preenchê-lo com o que agora
se oferece.
Artigo 2 — O que perdemos?
O tripé anteriormente descrito não apenas reconfigurou as condições da
subjetividade, mas instaurou uma perda profunda — não de objetos, mas de
qualidades do ser. Perdemos a interioridade como território sagrado. Perdemos o
silêncio como espaço de escuta de si. Perdemos a lentidão como forma de
maturação do real. Em troca, recebemos aceleração, ruído e saturação imagética.
O sujeito moderno está cercado por estímulos, mas distante de si. Ele vê tudo,
mas não enxerga nada. Ele sente tudo, mas não suporta coisa alguma.
O que se perdeu foi o centro silencioso onde o eu se escuta. Esse lugar,
que outrora era protegido por símbolos, rituais, vínculos e limites, foi
exposto à lógica da visibilidade. Já não se sofre para compreender, mas para
expor. Já não se cala para refletir, mas para preparar o próximo grito. O
outro, que antes ajudava a revelar o ser, hoje apenas confirma a imagem que se
quer projetar. A relação tornou-se espelho distorcido — e o espelho, única
fonte de identidade.
Essa perda não é facilmente percebida, pois foi substituída por excesso.
Excesso de fala, de imagens, de relações superficiais. Mas o excesso não é
riqueza — é sintoma. A cultura da imagem não preenche o vazio: a mascara. A
identidade virou projeto estético, a dor virou engajamento, o pensar virou performance.
O sujeito já não é capaz de viver um instante sem registrá-lo, como se sua
existência só fosse real quando transformada em narrativa pública.
Esse desdobramento está diretamente ligado ao que o tripé sustenta: um
sistema que aniquila o ser e exalta o parecer. Ao perder o interior como fonte,
tudo o que resta é o exterior como farsa. No próximo artigo, veremos como esse
sistema opera em sua forma mais visível e aguda: o ambiente das redes sociais,
onde o caos se estrutura e a fama se torna o único sagrado restante. É ali que
o que foi perdido já não faz falta, pois o barulho é tamanho que o silêncio já
não é sequer lembrado.
Artigo 3 — O caos instalado: redes sociais, todo
mundo quer fama.
O ambiente das redes sociais cristaliza de forma quase cirúrgica tudo o
que foi anteriormente tratado: o colapso da interioridade, a corrosão do ego, a
carência como motor, e a cultura da imagem como sistema totalitário. Nesse
espaço, não há mais distinção entre vida e representação, entre intimidade e
espetáculo. O sujeito, já desprovido de centro, se transforma por completo em
avatar — um constructo moldado para agradar, impactar, competir e permanecer
visível. Nas redes, o ser é irrelevante: o que importa é ser notado.
A lógica das redes sociais opera por mecanismos que reforçam a carência:
algoritmos que premiam o exagero, métricas que alimentam a obsessão, filtros
que distorcem a realidade. A fama, que outrora era fruto de uma trajetória,
torna-se aqui um ponto de partida. Todos querem começar sendo vistos, ainda que
não haja o que mostrar. Isso transforma a existência em disputa, onde não há
tempo para aprofundamento nem espaço para silêncio. Tudo é ruído, tudo é
pressa. A alma, saturada de exposição, já não sabe mais habitar-se.
Nesse ambiente, a subjetividade é submetida a uma pressão constante. A
comparação é inevitável, o fracasso é público, a ausência é interpretada como
fraqueza. Ninguém desaparece sem ser esquecido, e ninguém sobrevive sem
engajar. As redes não oferecem reconhecimento — oferecem visibilidade. E
visibilidade não é amor, não é verdade, não é sentido. É luz fria,
intermitente, impessoal. O sujeito, mergulhado nesse mar de reflexos, perde a
noção do que sente, do que pensa, do que quer. Tudo precisa ser moldado para
caber na vitrine.
Este artigo se liga diretamente ao anterior, pois aqui vemos com clareza
o resultado concreto da perda do interior: um sujeito que vive em função do que
aparece, e que já não reconhece a falta como sinal de profundidade, mas como
falha de performance. No próximo artigo, veremos como esse estado de caos e
carência produz não apenas ansiedade ou angústia, mas monstros simbólicos —
formas deformadas do sentido, criadas para preencher o vazio deixado pelo
simbólico que já não habita mais o mundo. É a sombra que surge quando o símbolo
morre.
Artigo 4 — A sombra simbólica: como a falta cria o
monstro.
Toda cultura que rompe com seus símbolos estruturantes gera sombras. E
essas sombras não são apenas ausência, mas forma. Quando o simbólico — que
outrora oferecia sentido, limite, transcendência — se retira, o vazio deixado
por ele clama por preenchimento. O sujeito, incapaz de habitar o silêncio dessa
ausência, começa a projetar. E o que projeta já não é símbolo, mas simulacro;
não é forma reveladora, mas máscara defensiva. Surge, então, o monstro: aquilo
que encarna uma potência distorcida, que simula sentido, mas apenas ecoa
carência.
Essa sombra simbólica se manifesta em múltiplas formas: nas figuras
públicas construídas como ídolos de barro, nas ideologias rasas tratadas como religião,
nos discursos agressivos usados como âncoras de identidade, nas comunidades
digitais unidas não por amor ao real, mas por ódio ao diferente. O monstro
nasce da fome por sentido, mas se alimenta de ilusão. Ele conforta porque
oferece pertencimento rápido, respostas fáceis, narrativa forte. Mas esse
conforto é falso, pois nada toca o centro do sujeito — apenas o ocupa.
Há uma ligação direta com o artigo anterior: as redes sociais, ao
promoverem carência e espetáculo, são terreno fértil para a proliferação dessas
sombras. Quando tudo se torna visível, o invisível é sufocado. E como o homem
não pode viver sem o invisível — sem um sentido que ultrapasse o imediato — ele
começa a construir ídolos e monstros a partir da própria falta. O caos
simbólico não é apenas confusão conceitual; é desfiguração do sagrado. E quando
o sagrado desaparece, o grotesco toma seu lugar.
Essas formas monstruosas se impõem como novos referenciais. A fama sem
mérito, a autoridade sem sabedoria, a influência sem substância. E o sujeito,
já fragilizado, entrega-se a esses espectros como quem busca salvação. Mas não
há salvação na sombra — apenas mais reflexo da ausência.
No próximo artigo, retornaremos à questão que atravessa todos os
anteriores: é possível resgatar o real? Aquele que não depende do reflexo, do
desejo alheio, da performance ou da carência? A resposta exige um retorno — não
nostálgico, mas radical — à fonte. Àquilo que sustenta o ser mesmo quando
ninguém olha. Ao silêncio que permanece depois que a última imagem se apaga.
Artigo 5 — O real: a necessidade de um retorno à
fonte.
Diante do colapso do simbólico, do caos da imagem e da fome insaciável
de reconhecimento, impõe-se a pergunta que atravessa silenciosamente todos os
artigos anteriores: o que ainda pode fundar o sujeito? A resposta, embora
incômoda aos ouvidos moldados pela estética da exposição, repousa numa única
palavra: o real. Não o real como mera oposição ao fictício ou como dado bruto
da experiência sensível, mas o real como aquilo que resiste ao desejo, que
impõe contorno ao eu, que exige silêncio, interioridade, renúncia e verdade. O
real é o que não se curva à vontade de ser visto — é o que persiste mesmo
quando ninguém olha.
O retorno à fonte não é regressão nostálgica, mas reencontro com aquilo
que antecede o espetáculo. A fonte é aquilo que permite o ser antes de qualquer
performance. É o silêncio anterior à palavra, a verdade anterior à narrativa, a
presença anterior à imagem. O real não seduz, não brilha, não viraliza. Mas ele
sustenta. E é isso que foi perdido. O sujeito moderno, ao romper com o real,
trocou solidez por leveza, profundidade por fluxo, essência por reflexo. A
fonte secou, não por falta de água, mas porque ninguém mais desce até ela.
O elo com o artigo anterior é inevitável: onde a sombra do simbólico
impera, só o retorno à fonte pode restituir a luz. Mas esse retorno exige
enfrentamento: da carência, da pressa, do ego deformado. Exige reconstituir o
silêncio interior e aceitar o não como parte da formação do eu. Significa
abandonar o palco e voltar à caverna — não para permanecer nas trevas, mas para
reencontrar o que a luz artificial ocultou.
O real não está nas redes, nem na fama, nem nas projeções. Ele está no
intervalo entre o que se sente e o que se diz, entre o que se é e o que se
mostra. Está naquilo que resiste ao algoritmo: a espera, o cuidado, a palavra
viva, o vínculo autêntico. É preciso reaprender a reconhecer o real como forma
de cura. Pois sem ele, o sujeito continuará a girar em torno de si mesmo, num
vórtice cada vez mais ruidoso e vazio.
Com este artigo, encerramos o segundo capítulo. A travessia está
completa: da carência à sombra, do caos à fonte, do reflexo ao real. Agora, na
conclusão, caberá sintetizar esse percurso e apontar, não uma solução pronta,
mas uma abertura — uma brecha onde o silêncio possa falar mais alto que a
imagem.
Conclusão — O reconhecimento, o ego e o chamado do
real.
O percurso aqui traçado revelou, em camadas sucessivas, a anatomia de
uma crise silenciosa: a mutação da necessidade de reconhecimento em carência
existencial, o colapso do ego como mediador psíquico, e a transformação do
desejo em espetáculo. Iniciamos pela constatação de que o reconhecimento,
outrora alicerçado em estruturas simbólicas duradouras, converteu-se em
urgência de ser visto, em dependência do olhar alheio como critério de
existência. O ego, que deveria delimitar e proteger o sujeito, cedeu ao apelo
da imagem. A imitação, a dissociação entre desejo e realidade, e a instalação
da carência completaram o ciclo de erosão da interioridade.
No segundo capítulo, a crise ganhou corpo. Identificamos o tripé que
sustenta o estado atual: dissolução simbólica, tirania da exposição e
fragilidade dos vínculos. Em seguida, investigamos aquilo que, no processo, foi
perdido — não apenas estruturas externas, mas a própria espessura do ser. As
redes sociais apareceram como palco privilegiado do colapso, onde todos buscam
fama como substituto do reconhecimento verdadeiro. E ali, entre reflexos e
ruídos, emergem as sombras: figuras deformadas criadas para preencher um vazio
que só o real poderia sustentar. Por fim, o último artigo propôs o que talvez
seja o único caminho possível: um retorno à fonte. Não à forma antiga, mas ao
núcleo do que é real — aquilo que resiste, sustenta e não se vende.
A conclusão, porém, não deve oferecer fechamento total. Pois o que está
em jogo não é apenas diagnóstico, mas convocação. A crise do reconhecimento não
será resolvida com mais visibilidade, nem com fórmulas terapêuticas que apenas
ensinam a gerir o sofrimento sem enfrentá-lo. O que se exige é um gesto
radical: o abandono da vitrine, o reencontro com o invisível, a reconstrução do
ego como estrutura interior e não como reflexo adaptado. Isso implica suportar
o silêncio, acolher o limite, reconhecer o outro não como plateia, mas como
presença.
Este texto deixa, portanto, não uma solução, mas uma fresta. Uma
abertura possível por onde o sujeito possa passar — não correndo, não gritando,
mas caminhando lentamente em direção àquilo que, mesmo esquecido, ainda pulsa.
O real continua ali. Não se impôs, não gritou, não apareceu. Apenas permaneceu.
E talvez seja esse o maior sinal de sua verdade.
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