quinta-feira, 26 de junho de 2025

Teoria das Ideias - O Banquete.

Índice Geral

Capítulo I – O Amor como Potência Ontológica da Vida
Interpretação do Banquete à luz da crítica nietzschiana à moral e à metafísica da decadência.

Artigo 1: O Dionisíaco e o Discurso de Fedro: Eros como impulso de transcendência e risco vital

Artigo 2: Pausânias e a ambiguidade do amor: da convenção à transvaloração dos valores

Artigo 3: Erixímaco e a fisiologia do desejo: amor como ritmo cósmico e pulsão de ordem

Artigo 4: Aristófanes e o mito da separação: o trágico no centro da busca amorosa

Capítulo II – Eros, Filosofia e Ascese do Espírito
Interpretação do discurso de Sócrates e Diotima como transfiguração nietzschiana da vontade de potência.

Artigo 1: Agatão e a estética da sedução: máscaras do belo e limites da aparência

Artigo 2: Diotima: o amor como escada ontológica do sensível ao inteligível

Artigo 3: Sócrates e o amor trágico: sabedoria, ausência e desamparo criador

Artigo 4: O Belo em si: Eros como força metafísica ou vontade de potência sublimada

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Capítulo I – O Amor como Potência Ontológica da Vida.
Artigo 1 – O Dionisíaco e o Discurso de Fedro: Eros como impulso de transcendência e risco vital.

No discurso de Fedro, primeiro dos convivas a tomar a palavra no Banquete, é lançado o eixo dramático que percorrerá a obra inteira: Eros não é apenas uma divindade entre outras, mas a mais antiga, a mais nobre, a mais poderosa. Segundo Fedro, nenhum outro deus inspira ações mais heróicas ou gloriosas do que o Amor. Em sua voz, o amor aparece como uma força capaz de levar o homem à excelência ética e política, sustentando o sacrifício de Alceste, a coragem de Pátroclo, e o desejo de imortalidade na memória coletiva.

Mas, quando lido à luz da crítica nietzschiana à moral tradicional, este discurso revela um substrato mais profundo: a afirmação de que Eros é o fundamento da ação nobre não porque orienta para o bem coletivo ou para a virtude no sentido socrático, mas porque arrasta o homem para fora de si, para além da mesquinharia do instinto de conservação. Há, nesse Eros primordial, o traço do dionisíaco – aquele que, segundo Nietzsche, representa o poder vital do devir, do êxtase e do perigo.

Fedro coloca o amante em posição de maior excelência que o amado, porque vê no primeiro a origem da ação, do sacrifício, da superação. Esta ênfase na iniciativa criadora e na entrega apaixonada aproxima o Eros platônico de uma força nietzschiana anterior à moral: uma potência que não se curva à razão, mas que a transcende, ou melhor, que a funda. O amor, assim, não é mais visto como carência de algo, como falta a ser preenchida (como será em Diotima), mas como princípio positivo, gerador, nobre e perigoso.

Nietzsche, ao interpretar a cultura grega, sempre se referiu ao contraste entre o apolíneo e o dionisíaco. O discurso de Fedro é dionisíaco no sentido exato de que enaltece o amor como força afirmadora da vida, mesmo quando esta exige o sacrifício de si. Não se trata de um amor moderado, controlado, racional, mas de um amor que arrasta, que consome e que, por isso mesmo, eleva. Essa é a característica fundamental do tipo superior nietzschiano: aquele que ama o perigo, que se expõe ao acaso, que deseja não a segurança, mas a intensidade.

O elogio de Fedro ao amante que morre por seu amado é, por isso, mais que um tributo à virtude clássica: é um retrato do homem trágico, que encontra na entrega amorosa a ocasião de seu florescimento mais alto. Nessa entrega, o amante afirma o valor da vida como criação e como possibilidade, não como cálculo ou equilíbrio. A morte heroica, enobrecida por Eros, é expressão suprema da vontade que ama a si mesma enquanto força.

Eis, portanto, o ponto de convergência entre Platão e Nietzsche neste discurso inaugural: Eros, compreendido como fonte da superação, do êxtase e do heroísmo, ultrapassa os limites da moral da prudência. O amor, aqui, é não apenas desejo, mas transbordamento. Ele não é orientado pelo que falta, mas pelo que explode – e esse excesso é precisamente o sinal do dionisíaco em sua origem.

Essa dimensão dionisíaca do Eros descrito por Fedro se torna ainda mais evidente quando se considera que o amor não é celebrado por seu objeto, mas por sua potência transformadora. O amante que ama verdadeiramente não o faz em razão de uma qualidade do amado, mas porque se vê tomado por uma força que o transcende. A relação amorosa não é, portanto, apenas interpessoal; é antes de tudo uma elevação existencial. Nesse sentido, o amor age como provocação metafísica – ele convoca o sujeito à altura de um gesto extremo, aquele que rompe o ciclo da repetição, da mediocridade e da segurança.

Nietzsche, em sua crítica à moral socrática, aponta que esta teria reduzido a grandeza trágica do homem grego ao culto da razão e da medida. Contudo, ao recuperar o Eros como força original no discurso de Fedro, vislumbra-se o traço de um homem anterior ao moralismo, alguém movido por impulsos que não se explicam nem se justificam, mas se impõem pelo simples fato de que são grandes, porque afirmam a vida com todas as suas contradições. O amor que faz morrer não é o mesmo amor que pede garantias. É amor além do bem e do mal.

Assim, quando Fedro afirma que o exército de amantes seria o mais invencível, ele está dizendo mais do que uma fórmula política: está enunciando uma antropologia. O homem verdadeiramente movido por Eros não busca a vitória como conquista externa, mas como realização de si mesmo em seu mais alto grau de tensão vital. Amar, então, não é desejar aquilo que se quer ter, mas tornar-se aquilo que se é capaz de dar. E essa doação, trágica e gloriosa, define o Eros como força de autoelevação.

A leitura nietzschiana não deixa espaço para domesticar esse amor com os preceitos da moral utilitária ou com o ideal ascético. O que está em jogo aqui é a capacidade de um impulso originário, anterior à cisão entre sujeito e objeto, entre razão e desejo. O Eros de Fedro é, nesse sentido, pré-conceitual, pré-moral, pré-teológico. Ele é, em termos nietzschianos, pathos de distância: o poder de criar valores por meio da intensidade do afeto. O amante, por essa via, não ama porque é virtuoso, mas é virtuoso porque ama – e porque o amor, em si, já é uma virtude criadora.

O Banquete, portanto, começa com esse tributo ao Eros como força ontológica. Antes da razão discursiva de Sócrates, antes da dialética de Diotima, está o elogio do amor como força vital – e é justamente esse o ponto em que Nietzsche vê, na filosofia grega arcaica, a centelha do que depois se perdeu: a valorização da paixão criadora, da vontade afirmadora, da grandeza que não se explica, mas que irrompe.

O discurso de Fedro é, nesse aspecto, a porta trágica pela qual o leitor é introduzido a um universo onde o amor, longe de ser um remédio contra a falta, é a doença sagrada que permite à alma não apenas desejar, mas incendiar-se naquilo que deseja. Tal é o solo sobre o qual crescerá a escada de Eros – e que, para Nietzsche, já bastaria para demonstrar que o amor verdadeiro não é explicável, mas apenas vivível, como uma força que nos consome para nos tornar mais.

Artigo 2 – Pausânias e a ambiguidade do amor: da convenção à transvaloração dos valores.

No discurso de Pausânias, o amor aparece pela primeira vez dividido em duas formas essenciais: o amor vulgar, ligado ao corpo e ao desejo imediato; e o amor celeste, voltado à alma, à inteligência, à formação do caráter. Essa distinção, embora aparentemente moral, não se reduz a uma dicotomia entre o bom e o mau amor, mas indica uma estrutura de valor profundamente ambígua. Pausânias não condena o amor erótico, mas exige que ele seja orientado por uma finalidade superior — a formação virtuosa do amado. O corpo pode ser o início, mas jamais o fim.

A tensão que surge nesse discurso entre desejo e norma, entre impulso e cultura, revela uma tentativa de integrar o Eros à ordem da paideía grega: o amor como instrumento de formação política e ética. O amante ideal não busca prazer, mas excelência. O amado ideal não se entrega por beleza, mas por mérito. Surge aí a figura do Eros regulado, domesticado, submetido a um código: o amor não é negado, mas disciplinado.

Contudo, lido à luz de Nietzsche, esse discurso carrega uma crítica velada à própria cultura que o produz. Pausânias celebra uma forma de amor que transcende o instinto, mas ao fazê-lo, encobre o fato de que continua operando com base na força do desejo. A sublimação do corpo em nome da alma não elimina o Eros vulgar — apenas o reorganiza sob novas máscaras. Para Nietzsche, isso revela a origem da moral como transvaloração: o fraco, incapaz de afirmar o desejo com força total, inventa normas que o subordinam a ideais “superiores”.

Assim, o amor celeste exaltado por Pausânias pode ser visto como forma refinada de ressentimento: ao não poder possuir plenamente, transforma a posse em vício. O amor que deseja o belo corpo é rebaixado; o que deseja a alma é enobrecido. Mas por que? Porque este último pode ser controlado, institucionalizado, inserido no jogo político da pólis. O amor celeste, tal como descrito, não é mais puro — é mais funcional. Serve à ordem, à educação, à estabilidade. É o Eros convertido em ferramenta.

Nietzsche, em sua genealogia da moral, veria aqui o mesmo processo que transforma o impulso vital em culpa, o instinto em pecado, o corpo em perigo. O amor, originalmente potência criadora, torna-se mecanismo de controle. O Eros de Pausânias, embora mais nobre em aparência, é castrado em essência. Ele já não quer, ele espera. Já não transborda, ele negocia. Não é mais trágico — é político.

Por outro lado, essa tentativa de regulação do amor também denuncia o seu poder: se o Eros não fosse perigoso, não haveria necessidade de codificá-lo. A divisão entre o vulgar e o celeste é, nesse sentido, uma confissão da força do desejo. Pausânias não quer eliminar o Eros — quer contê-lo. Mas Nietzsche lembraria: o que é contido permanece ativo, subterrâneo, pronto para explodir.

O amor, para Nietzsche, não pode ser domesticado sem perder sua grandeza. Sublimá-lo é aceitável, desde que não o negue. O que Pausânias propõe, porém, é um amor útil — e todo amor útil é amor enfraquecido. A verdadeira grandeza do Eros está em sua inutilidade: ele não serve a nada, a não ser à vida como excesso, como criação, como risco. E é por isso que, para Nietzsche, todo amor que exige justificativa moral já não é amor, mas cálculo.

Pausânias quis salvar o amor da vulgaridade; Nietzsche diria que o matou pela virtude. No fim, resta a pergunta: é possível amar sem domesticar o desejo? É possível formar sem conter, elevar sem mutilar? Pausânias responde com regras; Nietzsche, com martelos. E entre ambos, o Eros segue ardendo — dividido, mas não vencido.

Artigo 3 – Erixímaco e a fisiologia do desejo: amor como ritmo cósmico e pulsão de ordem.

O discurso de Erixímaco marca uma inflexão importante no Banquete, pois desloca o Eros do domínio exclusivamente humano para o plano cósmico. Médico, discípulo do saber técnico, ele vê o amor operando nos corpos, nos astros, nas estações, na música e nos ritos. Eros, nesse contexto, é princípio de harmonia, de equilíbrio entre contrários, força que governa o universo mediante proporção e simetria. A saúde, a ordem e até mesmo a piedade seriam, segundo ele, expressões da capacidade do amor de unir o diverso sem suprimir a diferença.

No entanto, é justamente nessa visão "ordenadora" do amor que se abre uma cisão em relação à concepção trágica do Eros anterior, tal como evocada por Fedro. Se ali o amor é fogo, aqui ele é medida. Se ali ele eleva pela irrupção violenta, aqui ele eleva pela contenção racional. Essa transição de um Eros dionisíaco a um Eros apolíneo pode parecer coerente com o espírito platônico, mas ao mesmo tempo denuncia uma tentativa de reduzir a grandeza da paixão amorosa à regularidade do cosmos técnico – algo que Nietzsche não deixaria de denunciar como domesticação do trágico.

É neste ponto, contudo, que a inserção da visão de Plotino se torna fundamental. Pois Plotino, retomando Platão à luz de uma ontologia mística, eleva o amor a um novo patamar, superando tanto o caos dionisíaco quanto a ordem médica de Erixímaco. Para Plotino, Eros não é simplesmente um movimento harmônico entre opostos nem uma força impulsiva: é o retorno de todas as coisas à unidade originária. Amor é o eco da alma que caiu no múltiplo e deseja regressar ao Uno. Não é desejo de corpo, nem busca de saúde, nem impulso heróico: é nostalgia metafísica da Fonte.

Em Plotino, o amor já não é apenas o princípio que une os elementos no mundo sensível, mas o próprio motor da ascensão espiritual. Ele interpreta o Eros platônico de forma radical: a alma ama porque foi emanada; e esse amor é, no fundo, o desejo de reintegrar-se ao que a ultrapassa. Aqui, Eros não organiza o mundo — ele o transcende. O cosmos de Plotino não é o campo onde o amor equilibra forças divergentes, mas o palco da saudade ontológica. O corpo, para Plotino, é sombra; a verdadeira harmonia é o silêncio da alma unificada no Um.

Dessa forma, enquanto Erixímaco vê o amor como ritmo no mundo — mediador entre calor e frio, som e silêncio, excesso e carência —, Plotino vê o amor como fuga do mundo: não como harmonia dos contrários, mas como sua dissolução na unidade anterior a todo dualismo. A medicina do amor, em Erixímaco, cura pela justa medida. A mística do amor, em Plotino, salva pela extinção da medida.

Nietzsche, por sua vez, rejeitaria ambos os caminhos. Tanto o ideal técnico de Erixímaco quanto o êxtase metafísico de Plotino seriam, para ele, expressões da mesma renúncia à vida: uma pela tentativa de ordenar o caos; outra pela vontade de apagá-lo em nome de uma unidade imóvel. O trágico, que em Fedro era ainda faísca viva, agora se vê encoberto pela luz do método ou pela sombra do Uno. Eros, que deveria elevar pela intensificação da vida, torna-se, em ambos, o caminho da negação.

Essa tensão entre os três autores revela a ambiguidade fundamental do amor em Platão: ele pode ser força de criação vital, como em Nietzsche; força de harmonia racional, como em Erixímaco; ou impulso de retorno ao divino, como em Plotino. Mas é nesse entrechoque que o Banquete encontra sua grandeza — não oferecendo uma definição estática do Eros, mas lançando o leitor no abismo de suas múltiplas manifestações.

Nietzsche, ao contemplar os discursos que se sucedem no Banquete, reconhece no de Erixímaco a emergência de um impulso tipicamente socrático: a tentativa de submeter a vida ao critério da racionalidade. O amor, que até então se apresentava como potência selvagem, fundadora, capaz de levar o homem ao sacrifício e à transfiguração, é agora traduzido em linguagem técnica, médica, aritmética. Eros, para Erixímaco, torna-se um fator de homeostase, uma equação de opostos reguláveis — e é aí, para Nietzsche, que começa o declínio.

O amor reduzido à harmonia dos corpos, ao equilíbrio das estações, à saúde do organismo, é já um amor moralizado, instrumentalizado, sem altura trágica. Nietzsche denunciaria nisso o sintoma do niilismo: a vontade de reduzir a vida ao mensurável, ao seguro, ao controlável. O médico-filósofo que fala no Banquete antecipa a figura moderna do racionalista que tenta domesticar os impulsos, regulando a existência segundo normas utilitárias e técnicas. Trata-se da mesma pulsão decadente que, para Nietzsche, contaminou o cristianismo, a ciência e a filosofia pós-socrática: a negação da vida em sua desordem fecunda.

Erixímaco vê o amor onde há saúde, simetria, ordem, e evita o amor que é vertigem, abismo, explosão. Para Nietzsche, esse é o erro fatal: confundir a vida com o que a conserva, e esquecer que o que a cria e a recria é precisamente o que a excede. A pulsão amorosa que gera arte, pensamento, cultura e grandeza não se submete a uma métrica cósmica. Ela rompe. Ela força o devir. Eros, em sua forma mais alta, é excesso, não medida. É elevação que devora, não conciliação que preserva.

Há, portanto, em Erixímaco, um medo disfarçado de sabedoria. Um temor do trágico sob a máscara do médico. E Nietzsche via nisso o triunfo do ressentimento: o tipo fraco, incapaz de suportar a intensidade da vida, transforma o Eros em algo funcional, terapêutico, sanitário. Mas o amor, em sua origem, é o que arranca o homem da normalidade, do conforto, da segurança: é aquilo que o lança no risco de tornar-se mais do que é. É esse o Eros que Nietzsche reivindica — não o amor que cura, mas o amor que consome.

Contra o médico, o artista; contra o equilíbrio, a embriaguez; contra a harmonia, o perigo. Eros nietzschiano é força dionisíaca, princípio de criação e destruição, movimento que ultrapassa qualquer finalidade. Não há saúde mais alta do que aquela que se arrisca a morrer para se afirmar. A visão de Erixímaco, embora pretensamente elevada, revela-se pobre, burguesa, fraca — incapaz de compreender que o amor verdadeiro não mede, não organiza, não calcula: ele quer, e quer com tal força que não teme o preço.

Para Nietzsche, o amor não é o que nos equilibra, mas o que nos rompe. Ele não nos torna sadios — ele nos torna dignos. E é nesse sentido que Erixímaco, ao pretender elevar o Eros ao plano do cosmos, o arrasta para baixo: da grandeza do heroísmo à modéstia da função orgânica. Contra isso, Nietzsche grita: que morram os amantes sãos, pois somente os apaixonados trágicos foram dignos dos deuses.

Artigo 4 – Aristófanes e o mito da separação: o trágico no centro da busca amorosa.

Com o discurso de Aristófanes, o Banquete adentra o terreno do mito – não como recuo à fábula, mas como acesso a uma verdade profunda que escapa à lógica discursiva. A alegoria dos andróginos separados pela ira divina funda uma imagem do amor como busca ontológica por uma unidade perdida. O desejo erótico, nesse cenário, não nasce da carência ocasional, mas de uma mutilação ontológica: o homem deseja porque foi dividido. O amor não é desejo de algo, mas de alguém que já foi parte de si.

Para Nietzsche, que via no mito uma das formas mais elevadas de expressão da verdade trágica, o discurso de Aristófanes conserva resquícios de grandeza, mas também insinua o germe de uma moral decadente. Há algo de nobre na intuição de que o amor é movimento, tensão, busca incessante. O desejo como força que impele o homem à sua totalidade perdida pode ser lido como metáfora da vontade de potência que ainda não se encontrou. O impulso de reunir o que foi dividido é, em certo sentido, a afirmação de que a existência deve ser superada — que há algo além do dado, algo que exige ser conquistado.

Entretanto, o risco que Nietzsche identifica aqui é a romantização da falta. Quando o amor é definido como saudade do outro, como tentativa de restaurar uma unidade originária, corre-se o perigo de converter o desejo em lamento. Eros torna-se então a expressão de uma nostalgia estéril, e não de uma potência criadora. A imagem dos corpos partidos, que se buscam para reencontrar sua inteireza, pode ser lida, para Nietzsche, como resignação metafísica: o amor como consolo, não como transfiguração.

Nietzsche não quer um amor que busca recompor o que foi perdido. Ele quer um amor que cria o que nunca existiu. O Eros trágico não olha para trás, mas para cima. Não é retorno, é superação. A imagem do andrógino pode, então, ser vista como símbolo da alma que teme o devir, que teme a solidão, e que busca no outro não a alteridade fecunda, mas a confirmação narcísica de uma identidade pretérita. É o amor como fuga da dor, e não como afirmação dela.

Ainda assim, Nietzsche reconheceria um mérito oculto no mito de Aristófanes: a ideia de que o amor é sofrimento. A separação é dor, e o desejo é ferida. Mas enquanto o comediógrafo sugere que a cura está na fusão dos amantes, Nietzsche diria que a grandeza está em permanecer dividido — e ainda assim desejar. O trágico não se resolve pela completude, mas pela afirmação da falta como força. Amar, nesse registro, é suportar a distância, e nela crescer.

O verdadeiro Eros, então, não quer o outro para restaurar a unidade perdida, mas para se perder mais. Não deseja a fusão, mas a tensão que desafia, que eleva, que abre o abismo entre o que se é e o que se pode tornar. Amar é tornar-se digno da ferida, não curá-la. Amar é não ser inteiro — e desejar sê-lo, sem jamais ser.

Aristófanes, com seu mito, aproxima-se de uma verdade trágica: o amor dói porque divide. Mas ao propor a reunião como solução, ele trai o próprio trágico que evocou. Nietzsche resgataria o que há de mais profundo nesse mito — a dor como condição do desejo — e rejeitaria seu consolo final. O amor, para ele, não é reencontro. É criação. Não é fusão. É luta. E nessa luta, o homem se supera — ou se apaga.

Capítulo II – Eros, Filosofia e Ascese do Espírito.
Artigo 1 – Agatão e a estética da sedução: máscaras do belo e limites da aparência.

O discurso de Agatão marca, no Banquete, o ponto culminante da ilusão estética. Jovem, belo e refinado, Agatão não apenas representa fisicamente o ideal sensível do amor, mas também verbaliza sua concepção com uma elegância encantadora que revela sua própria sedução pela aparência. Eros, em sua voz, não é força bruta, nem impulso vital ou princípio cósmico: é, sobretudo, beleza em si. Belo em si mesmo, amante do belo, eterno, jovem, delicado, puro, justo — Agatão reveste o amor com todos os atributos da perfeição sensível e moral.

A construção de sua imagem de Eros é ao mesmo tempo elogio e dissimulação. Tudo no discurso visa encantar, conquistar, seduzir — mas nada toca a verdade profunda do desejo. Nietzsche, ao ouvir essa fala, a reconheceria de imediato como produto da decadência: um amor que não conhece a dor, nem a carência, nem o perigo. Um amor convertido em ideal inofensivo, falsamente elevado, moralmente asseado. Trata-se de um Eros que já não quer incendiar, mas adornar. Não quer mover, mas agradar.

Esse amor idealizado, segundo Nietzsche, é produto direto da moral apolínea e do esteticismo superficial. Agatão canta o belo porque teme o trágico. Ele recobre o desejo com uma máscara, a mesma máscara que a arte decadente passou a usar para esconder o sofrimento da existência. Trata-se da falsificação da vida — não sua intensificação. A beleza que Agatão celebra é a beleza domesticada, socialmente aceitável, que não fere, não subverte, não exige. É uma beleza fraca, feita para o aplauso, não para o abismo.

O discurso é poético, mas vazio; brilhante, mas estéril. Eros é exaltado como o mais belo dos deuses, mas permanece abstrato, sem carne, sem drama. Não há contradição, não há luta, não há verdade. Nietzsche denunciaria aqui a ausência de tragédia, de dor, de intensidade. Agatão não conhece Eros — ele conhece apenas Narciso. Seu amor é imagem, reflexo, artifício. Não deseja o outro; deseja ser desejado. Por isso, seu Eros é frágil: não move montanhas, apenas espelhos.

Para Nietzsche, esse tipo de discurso representa o ponto em que a cultura se divorcia da vida. A arte torna-se ornamento; a filosofia, retórica; o amor, farsa. O que Agatão revela é o espírito do decadente: aquele que não suporta a verdade da existência e constrói mitos anestésicos para se proteger. O amor, então, não é mais potência de transfiguração, mas vitrine para vaidades.

Contudo, há uma ironia dramática que Platão insere com precisão: é justamente nesse momento de ápice estético que Sócrates intervém. O mestre feio, irônico e cortante, desmascara Agatão com poucas palavras. Eros, dirá ele, não pode ser aquilo que não deseja. Se é belo, não deseja o belo. Se é perfeito, não deseja o perfeito. O discurso de Agatão é desmontado não com violência, mas com verdade.

Esse instante é, para Nietzsche, de grande importância simbólica: é o momento em que a aparência é confrontada com a realidade. A máscara de Agatão cai, revelando que sua concepção de Eros não era mais que uma negação do desejo autêntico. O amor verdadeiro é imperfeito, inquieto, ambíguo. Ele não se deixa encantar por definições, nem se reduz a uma forma ideal.

Portanto, Agatão não falava de Eros — falava de si. De sua necessidade de se proteger da dor com a beleza, de ocultar a fraqueza com retórica, de se manter intacto diante da intensidade do desejo. Mas o amor, como verá Sócrates, não respeita esse pudor. Ele não é jovem, belo e virtuoso. Ele é pobre, ousado, perspicaz, faminto. E, por isso mesmo, é capaz de elevar — porque fere antes de curar. Ama quem sangra. Ama quem suporta o feio, o incômodo, o impossível.

E Nietzsche, nesse ponto, concordaria com Sócrates: o amor começa quando acaba a ilusão. Eros nasce do abismo, não do palco.

Artigo 2 – Diotima: o amor como escada ontológica do sensível ao inteligível
(com contraponto crítico à luz da filosofia de Schopenhauer)

No discurso que Sócrates apresenta como tendo vindo de Diotima, o amor é retirado do campo das opiniões e das aparências para assumir sua mais alta definição filosófica: não como deus, mas como daimon intermediário entre o mortal e o imortal. Eros é apresentado como carência ativa, impulso ascendente que leva a alma a transitar do desejo físico à contemplação da Ideia. O amor que começa pelo corpo, e passa pelas belas almas, deve culminar no amor ao conhecimento e, por fim, na visão do Belo em si — absoluto, eterno, imutável.

A famosa escada do amor, apresentada por Diotima, estrutura-se como um itinerário espiritual. Cada degrau é uma purificação. Cada estágio, uma renúncia. Da beleza do corpo individual à beleza da alma, das leis e saberes à beleza das ideias, e destas à Beleza mesma — Platão nos entrega aqui a concepção mais refinada do amor como ascese, como caminho ontológico e epistemológico. Amar é subir. Amar é tornar-se capaz de desejar o que não muda. Amar é deixar de desejar o que morre.

Contudo, à luz da filosofia de Schopenhauer, essa elevação platônica do amor seria interpretada não como superação da vontade, mas como máscara intelectual de sua servidão. Para Schopenhauer, o amor não é um intermediário entre o corpo e a ideia, mas pura e brutal expressão da Vontade — esse princípio cego, irracional e eterno que governa o mundo como sofrimento incessante. O impulso amoroso, por mais que se revista de formas elevadas, é, no fundo, o artifício da espécie para se perpetuar. O indivíduo ama porque está preso a uma força que o excede e que o usa — a Vontade de viver.

A escada de Diotima, portanto, seria para Schopenhauer uma ilusão — talvez bela, mas ilusão. Não há degraus reais entre o desejo de um corpo e o amor ao Belo em si; há apenas sublimações da mesma força: o desejo sexual, reconfigurado em linguagem metafísica. A vontade de viver, segundo ele, manipula o indivíduo, levando-o a acreditar que está se elevando, quando na verdade apenas está sendo levado a preservar o ciclo do sofrimento. O amor é, então, uma forma refinada de engano. Não há eros filosófico; há eros biológico travestido de ideia.

A crítica schopenhaueriana destrói o fundamento da escada platônica: se todo querer é sofrimento e servidão, a única saída não é ascender por ele, mas negá-lo. Por isso, ao contrário de Platão, Schopenhauer vê a redenção não na contemplação do Belo, mas na negação do desejo. A castidade, a renúncia, a anulação da vontade — essas são as verdadeiras formas de libertação. Enquanto Diotima diz que o amor leva ao Bem, Schopenhauer diz que o amor nos prende ao ciclo da dor. Onde Platão vê subida, ele vê prisão.

Contudo, a crítica de Schopenhauer, embora devastadora, expõe uma tensão profunda no discurso de Diotima que Nietzsche também identificará: a tentativa de espiritualizar o desejo sem negá-lo completamente. Diotima não reprime o amor, como farão os ascetas, mas o transforma em escada. Seu Eros não é o fim do desejo, mas sua purificação progressiva. É esse esforço de resgatar a potência do querer sem cair na animalidade que torna sua doutrina ambígua — e talvez trágica. Pois, ao tentar conduzir o desejo à verdade, ela corre o risco de falsificá-lo.

Ainda assim, a filosofia de Diotima permanece como a tentativa mais nobre da tradição ocidental de salvar o amor do niilismo: de mostrar que o desejo pode ser educado, elevado, ordenado sem ser destruído. E mesmo que Schopenhauer denuncie isso como idealismo, como fantasia metafísica, não se pode negar a grandeza do gesto: transformar o amor — essa força incerta e inquieta — em instrumento de ascensão.

E é nessa tensão que o leitor se vê lançado: entre a escada de Diotima e o abismo de Schopenhauer. Entre o desejo que sobe e o desejo que prende. Entre o amor que purifica e o amor que mascara. Talvez não haja resolução. Talvez amar seja sempre desejar o que excede a vontade — e saber que, mesmo assim, estamos presos a ela. Mas é essa luta entre o que queremos e o que cremos desejar que funda o drama mais profundo da alma. E o Eros que nasce disso é, por isso mesmo, o mais humano: dividido, impuro, e eternamente em busca.

Artigo 3 – Sócrates e o amor trágico: sabedoria, ausência e desamparo criador
(com análise crítica à luz da filosofia moral de Kant)

A figura de Sócrates, no centro do Banquete, não é apenas o intermediário entre os discursos — ele é o ponto de inflexão, a subversão filosófica da estética, da mitologia e da técnica do amor. Após desmascarar Agatão e narrar o ensinamento recebido de Diotima, Sócrates encarna, por sua própria presença, o amor como carência ativa, como tensão não resolvida entre o sensível e o inteligível. Feio, pobre, incômodo, mas imperturbável, ele revela que o verdadeiro amante não é aquele que possui, mas aquele que permanece desejando, mesmo sem esperança de realização. Eros, nele, não é posse, mas potência contínua.

Nietzsche já nos havia preparado para ver nesse amor socrático um princípio de sublimação e transfiguração — ao custo da intensidade vital. Mas agora, ao confrontá-lo com a filosofia prática de Kant, outra dimensão emerge: a relação entre desejo e dever. Kant, que rompeu com a metafísica clássica e reconstruiu os fundamentos da moralidade a partir da razão pura, não podia aceitar que o amor fosse guia seguro da ação. Em sua filosofia, o valor de uma ação não está no sentimento que a move, mas na máxima universalizável segundo a razão. O amor, por mais nobre que pareça, não tem mérito moral se for paixão; só o dever possui dignidade.

Ao aplicar esse crivo à figura de Sócrates no Banquete, Kant veria nele não exatamente um moralista, mas alguém que se aproxima da ideia de autonomia racional. Sócrates ama, mas resiste. Ama, mas não se rende. Ama, mas submete o desejo à forma inteligível do Bem. Seu amor não é patológico, é prático — no sentido mais profundo: ele é dirigido por uma finalidade racional. O amante filosófico não busca o prazer, mas a perfeição. E nesse ponto, Kant e Sócrates se tocam: ambos recusam a escravidão ao desejo imediato em nome de algo superior, mesmo que esse superior seja apenas formal.

Contudo, Kant impõe uma cisão ainda mais radical: o amor, para ser moral, deve abstrair-se do interesse. A boa vontade, base de toda ética, exige a anulação do desejo em favor da razão. Isso significa que, mesmo quando ama, o sujeito ético deve agir não por amor, mas por dever. Isso o distancia de Diotima, que ainda via no amor uma escada natural; Kant destrói a escada e ergue o imperativo categórico. A alma não sobe porque ama — ela deve subir porque é livre. O amor, se permanece impulso, não é digno.

Em Sócrates, porém, o amor não é paixão cega, mas nem por isso se converte em dever formal. Ele está em tensão: deseja, mas filosofa; sofre, mas se mantém livre. Essa ambivalência é o que o torna trágico. Para Kant, essa tensão ainda seria insuficiente: a razão deve dominar. Para Sócrates, a razão não domina — ela dialoga com o desejo, ressignifica-o, mas não o anula. A virtude, nele, é erótica — não puramente deontológica.

É nessa diferença sutil que Kant falha em absorver o espírito do Banquete: o amor, em Platão, é aquilo que funda o movimento da alma para além de si. Em Kant, a moral não nasce do amor, mas da liberdade racional. Amor pode acompanhar o bem, mas não fundá-lo. Sócrates, ao contrário, vive a tensão entre querer e saber, entre desejar e contemplar, entre Eros e Logos. Sua sabedoria não é renúncia do amor — é habitação contínua da ausência. Ele não ama para possuir, nem para cumprir um dever — ama porque amar é o que torna o espírito capaz de verdade.

Kant diria: não aja por amor, aja por dever. Sócrates diria: deseje o Bem ao ponto de viver sem possuí-lo. A ética kantiana exige autonomia contra a inclinação. O amor socrático transforma a inclinação em impulso ascensional. O primeiro é formal, o segundo é dramático. Um se basta à razão; o outro necessita da dor.

Por isso, o amor de Sócrates é trágico: ele sabe que o Belo em si não pode ser possuído. Sabe que a verdade é inalcançável. E mesmo assim ama. Ama sem esperança, mas sem desistir. Sua sabedoria é ausência, não posse. É distância, não fusão. É a coragem de desejar eternamente o que excede toda regra, toda forma, todo dever. E é nesse ponto que Sócrates escapa a Kant: porque seu amor não é virtude moral — é força filosófica. É tensão viva entre o querer e o não ter. E por isso mesmo, é mais humano. E mais alto.

Artigo 4 – O Belo em si: Eros como força metafísica ou vontade de potência sublimada
(com análise à luz da filosofia amorosa de Santo Agostinho)

Ao término do Banquete, quando Sócrates encerra a exposição do amor como ascensão à contemplação do Belo em si — eterno, imutável, invisível, absoluto — Platão parece alcançar, por meio da boca de seu mestre, o ponto máximo da filosofia erótica: o momento em que o desejo deixa de buscar qualquer forma corpórea e volta-se integralmente à Ideia, ao que não nasce nem perece, ao que é e jamais deixa de ser. Amar, nesse sentido, torna-se um êxtase metafísico: a alma, libertada das amarras sensíveis, suspensa em puro espírito, vê, ainda que brevemente, aquilo que está além de toda imagem — o Bem.

Contudo, essa contemplação que pretende ser filosófica se aproxima, cada vez mais, do terreno da mística. E é aqui que a perspectiva de Santo Agostinho se impõe como uma leitura inevitável, pois Agostinho, mais do que qualquer outro dos Padres da Igreja, reconheceu no Eros platônico não apenas um impulso racional, mas o sinal de uma carência existencial que só Deus poderia preencher. O amor que sobe pela escada de Diotima, que se purifica e se espiritualiza, é lido por Agostinho como um desejo que clama por transcendência — não pela Ideia, mas pelo Criador.

Na juventude neoplatônica de Agostinho, o Belo era ainda uma realidade abstrata e impessoal, acessível ao intelecto por via da razão purificada. Mas em suas Confissões, o amor deixa de ser mera escalada intelectual e se revela como grito interior. "Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei!" — este clamor é a recusa explícita da posse do Belo como Ideia e a afirmação do Belo como Pessoa. O objeto do amor já não é a Beleza em si, mas o Deus vivo, o Verbo encarnado, a origem e o fim de toda sede humana. O Eros filosófico torna-se, nele, Caritas: não mais desejo de subir, mas entrega total ao Amor que desceu.

Dessa forma, Agostinho inverte a escada de Diotima. Não é o homem que sobe ao Belo — é o Belo que desce ao homem. O amor não é conquista racional, mas graça recebida. Onde Platão via o amor como carência ativa, Agostinho vê o amor como súplica. Onde Platão diz que Eros nos torna semelhantes aos deuses, Agostinho afirma que o amor verdadeiro nos revela a nossa miséria — e nos salva não pela ascensão do desejo, mas pela descida da misericórdia.

Ainda assim, há um ponto de convergência real: tanto Platão quanto Agostinho concebem o amor como tensão que não se satisfaz no mundo. Ambos denunciam o caráter efêmero do corpo, o engano dos sentidos, a limitação do tempo. Mas onde Platão propõe a contemplação das Formas eternas, Agostinho propõe a união com Deus. A contemplação platônica é intelectual; a agostiniana é orante. O primeiro busca; o segundo clama. O primeiro vê; o segundo ama. E no limite, o que os separa não é a intensidade do amor, mas a natureza do Belo.

Em termos agostinianos, o amor platônico ainda é orgulho disfarçado: quer subir por sua própria força, pela excelência do pensamento, pela purificação da razão. Mas o amor cristão exige humildade: é reconhecimento de que nenhum esforço humano pode alcançar o que apenas a graça pode conceder. O Eros, para Agostinho, só se realiza plenamente quando se converte em Ágape — quando deixa de desejar para começar a servir, quando deixa de subir para começar a se ofertar.

Nesse sentido, a figura de Sócrates, que ama o Belo sem jamais possuí-lo, permanece como prefiguração filosófica do drama agostiniano: amar aquilo que excede o mundo. Mas Sócrates para na fronteira. Ele vê, mas não adora. Deseja, mas não se rende. Age como intermediário, não como redimido. O amor que nele habita é ainda carência filosófica, não ferida salvífica. Agostinho ultrapassa esse ponto e afirma: só ama de verdade quem reconhece que, por si mesmo, não pode amar suficientemente — e por isso pede, reza, implora.

Assim, se Platão vê no amor a ponte entre o homem e o Bem, Agostinho vê no amor o abismo entre o homem e Deus — abismo que só pode ser vencido por Aquele que, sendo o próprio Amor, veio ao encontro da alma. E é por isso que, para Agostinho, o fim do amor não é a contemplação, mas a comunhão. Não é ver o Belo em si — é habitar no Amor que cria, julga e redime.

No fim do Banquete, o amor filosófico permanece suspenso, elevado, mas solitário. Em Agostinho, o amor cristão desce ao íntimo do homem, fere-o e salva-o. Ambos reconhecem a impossibilidade de se satisfazer neste mundo — mas só um confessa que tal insatisfação é convite ao infinito. A filosofia ergue a escada; a fé transforma o abismo em altar. Eros, purificado, torna-se Amor crucificado.


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