O estatuto do saber moderno repousa sobre uma estrutura metodológica que opera fundamentalmente pela divisão, pela especialização e pela abstração. A ciência, enquanto empreendimento epistêmico, não é uma apreensão do real em sua inteireza, mas um recorte, uma operação sobre parcelas da realidade, delimitadas segundo critérios técnicos, epistemológicos e operacionais.
Esse fato, embora reconhecido no âmbito da epistemologia, não impede que, na cultura, na política e nas dinâmicas do poder, a ciência seja convertida — e frequentemente é — em discurso totalizante, projetando-se como a própria instância da verdade última sobre o real. Aqui se manifesta uma tensão essencial: o saber que nasce do recorte apresenta-se como saber do todo.
A natureza metodológica da ciência impede, em princípio, qualquer pretensão ontológica plena. Ao construir modelos, ela necessariamente simplifica, isola variáveis, formaliza aspectos e abstrai contextos. Toda ciência, enquanto tal, opera por exclusão do excesso, do indeterminado, do não mensurável. Sua força reside justamente na capacidade de converter o complexo em tratável, o denso em manejável, o contínuo em discretizado.
Contudo, é precisamente essa operação — útil, eficaz, tecnicamente poderosa — que abre a brecha para sua captura enquanto narrativa. Na medida em que os recortes científicos são reificados, tomados como representação integral da realidade, surge um fenômeno que poderíamos denominar de fetichização epistêmica: o modelo se confunde com o mundo, o mapa se sobrepõe ao território, a descrição se converte em ontologia.
É nesse ponto que o saber científico ultrapassa sua função descritiva e se inscreve no regime dos discursos normativos e performativos. Ao ser mobilizado fora de seus próprios limites epistemológicos, ele passa a participar ativamente da construção de mundos simbólicos, da legitimação de práticas sociais, da sustentação de ordens políticas e da naturalização de determinadas visões de mundo.
Aqui se revela a dinâmica da captura do homem pela narrativa. Enquanto ser simbólico, o homem não se relaciona com o real de modo imediato. O mundo não lhe aparece como coisa em si, mas sempre mediado por linguagens, códigos, signos, sistemas de representação. A experiência humana é, em sua própria estrutura, uma experiência narrativamente constituída.
A linguagem não é, pois, simples veículo do pensamento, mas condição de possibilidade da própria constituição do mundo vivido. Isso significa que o homem não apenas produz narrativas; ele habita narrativas. Sua percepção do real, sua compreensão de si e dos outros, sua orientação no mundo — tudo isso se dá no interior de teias de sentido que, embora ofereçam inteligibilidade, também impõem quadros, recortes e limites.
Quando a ciência, enquanto narrativa de alta autoridade simbólica na modernidade, ocupa o lugar de filtro privilegiado da realidade, seus recortes passam a ser percebidos não como tal, mas como descrições da própria essência do real. Assim, o saber, que deveria ser instrumento, se converte em dispositivo de normatização do mundo e da própria experiência humana.
Isso não se limita ao campo da ciência. Todo discurso portador de pretensão de verdade — seja ele científico, religioso, ideológico ou cultural — carrega em si o risco da absolutização. O mecanismo é invariável: o que nasce como mediação se converte em prisão simbólica quando se perde a consciência de seu caráter construído, provisório e situado.
Essa é a condição trágica do homem: ser estruturalmente dependente da linguagem, da representação, da narrativa — e, por isso mesmo, estar sempre exposto à possibilidade de ser capturado por elas. O mesmo dispositivo que lhe permite escapar do caos do indeterminado é aquele que, quando naturalizado, o mantém refém de construções que ele próprio produziu.
Nesse horizonte, o único contramovimento possível não reside na recusa da linguagem, tampouco na rejeição do saber, mas na instalação permanente de uma atitude de vigilância ontológica e epistemológica. Trata-se de cultivar a lucidez sobre o fato de que toda descrição é recorte, toda teoria é modelo, todo saber é, antes de tudo, uma configuração provisória do real — jamais sua plenitude.
É, portanto, no retorno constante à experiência direta, ao fenômeno, àquilo que se apresenta antes e além de qualquer codificação discursiva, que o homem pode, ao menos parcialmente, se resguardar da captura total pela narrativa. Contudo, esse retorno não é um acesso absoluto ao ser, mas um gesto crítico, uma desmontagem dos dispositivos que pretendem falar em nome do todo, quando, na verdade, operam sobre fragmentos.
Em última instância, a liberdade do homem não se dá fora da linguagem, mas na consciência radical de que ela nunca é o próprio ser — e que todo discurso, toda ciência, toda narrativa é, simultaneamente, condição de sentido e risco de alienação.
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