Cultura é, em seu núcleo, um entrelaçamento de leis e regras, sendo estas últimas muitas vezes manifestas na forma de hábitos — gestos, ritos, comportamentos repetidos e transmitidos ao longo das gerações que, ao se sedimentarem, moldam o modo de ser de um povo. Não se trata apenas de uma coleção de costumes, mas de um sistema que, ao mesmo tempo que orienta, também restringe. Pois se a cultura é movimento, também é contenção: ela delimita fronteiras do possível, estabelece as linhas do aceitável e desenha o contorno da realidade vivida. Dentro desse sistema, o tempo age como um fixador, solidificando práticas a tal ponto que deixam de ser percebidas como escolhas e passam a operar como destinos.
É nesse âmbito, por vezes invisível, que a cultura se converte em obstáculo — não por intenção, mas por inércia. Aquilo que um dia foi resposta a uma necessidade, diante da repetição e do esquecimento de sua origem, torna-se norma, e a norma, sendo instituída, ganha resistência à mudança. Quando isso ocorre, a cultura já não apenas expressa a vida; ela a disciplina, a reduz e a impõe. Sociedades inteiras, uma vez capturadas nesse ciclo, veem-se incapazes de romper com os limites que a própria cultura inscreveu em sua experiência.
Esse conhecimento — o de que a cultura pode ser usada como contenção — não escapa àqueles que, dotados de certo saber estratégico, vislumbram aí uma oportunidade. Usam a rigidez cultural como forma de controle, como mecanismo de perpetuação de estruturas que favorecem poucos e silenciando muitos. O caso do Nordeste brasileiro ilustra com precisão essa engrenagem. A região, marcada historicamente por ciclos de escassez, secas prolongadas e políticas assistencialistas disfarçadas de benevolência, viu consolidar-se ao longo das décadas um imaginário cultural da superação, do suportar, do resistir.
Esse gesto contínuo de enfrentamento diante da falta, da ausência de recursos, da adversidade, ao ser reiterado geração após geração, acabou por se inscrever como um traço cultural. Resistir passou a ser não apenas uma reação, mas uma identidade. E quando o sofrimento é internalizado como algo próprio, e não como uma contingência a ser superada, ocorre uma transmutação perversa: deixa-se de buscar a solução estrutural dos problemas e passa-se a glorificar o esforço diante deles. O problema, em si, perde o status de algo que clama por resolução e transforma-se em palco para a manifestação de uma virtude cultural — a coragem, a persistência, o estoicismo.
A cultura, nesse cenário, deixa de ser uma expressão vital e passa a funcionar como uma prisão simbólica. O povo aprende não a se libertar da dor, mas a suportá-la com dignidade. E essa dignidade, embora nobre, é também trágica, pois ao mesmo tempo que engrandece o espírito, perpetua a estrutura. Em vez de se romper o ciclo, celebra-se sua continuidade. E é nesse ponto que a cultura deixa de ser apenas forma de vida e torna-se limite de vida.
"Aqui a gente não vive, mas aprendeu a sorrir bonito pro sofrimento".
(Cenário: Sertão da Paraíba, noite quente de junho. Ao fundo, zabumba, sanfona e triângulo conduzem o forró. As chamas da fogueira crepitam no terreiro, iluminando os rostos com tons alaranjados. Dois homens, JOSÉ e ANTÔNIO, se afastam um pouco do alvoroço, sentam em bancos de madeira rústica e observam em silêncio o povo dançando. O cheiro de milho assado e fumaça paira no ar.)
JOSÉ
(vendo o povo dançando, meio pensativo)
Olhe só, Tonho... É bonito, né? Mesmo com tudo que a gente passa, esse povo não se entrega. A seca vem, a terra racha, o gado some... mas a gente dança. Isso aí, pra mim, é força. Isso é nossa cultura.
ANTÔNIO
(encostado no banco, olhando pra fogueira)
Mas será que é mesmo, Zé? Ou será que é só costume de aguentar calado? Às vezes fico pensando se essa tal “força” que todo mundo fala, não é só jeito bonito de dizer que a gente aprendeu a aceitar as miséria como se fosse bênção.
JOSÉ
Mas, homi, não é aceitar não. É enfrentar. É saber que a vida é dura e mesmo assim fazer festa, criar menino, plantar feijão. Isso é grandeza! Isso é o que a gente é!
ANTÔNIO
(grave, olhando firme pra Zé)
Ou é o que fizeram a gente ser? Tu nunca pensou, Zé, que quanto mais a gente se acostuma com a dureza, menos eles sentem obrigação de mudar as coisa? Vê só: prometeram água encanada há quantas eleição? Chega a época do voto, aparecem com um caminhão-pipa e pronto, a gente vota rindo. E sabe por quê? Porque dizem que é “cultura” do sertanejo ser resistente. Resistente demais... até ao que não devia ser.
JOSÉ
Mas se a gente não aguenta, a gente morre. Vai fazer o quê? Esperar o governo? Esperar que alguém venha do sul resolver nossa vida? A resistência é o que nos segura de pé.
ANTÔNIO
(segura um pedaço de lenha e joga no fogo)
Mas viver só de resistência não é viver, Zé. É sobreviver. E isso cansa. O povo dança, canta, ri... mas por dentro tá todo mundo conformado. A cultura virou desculpa. Ao invés de solução, virou barreira. Quando foi que lutar virou só resistir e não exigir?
JOSÉ
(abaixa a cabeça, calado por uns instantes, depois fala mais baixo)
É... tu tem razão em parte, sim. Mas me diga, Tonho, e se a gente largar essa coragem de lado? Vira o quê? Gente quebrada? Gente que só chora?
ANTÔNIO
Não, Zé. A gente tem é que mudar o jeito da coragem. Não é deixar de ser valente, é ser valente pra mudar, e não só pra suportar. É dizer que a festa é linda, mas que a fome não devia fazer parte da música. É dançar sim, mas sem esquecer de cobrar.
JOSÉ
(suspira, olhando o povo dançando)
É... talvez a fogueira que a gente precisa acender é outra, né?
ANTÔNIO
(puxa um gole de café da garrafa de alumínio)
É, Zé... uma que queime o medo e ilumine a esperança. Porque coragem sem mudança é só resistência cega. E o povo merece mais do que só aprender a aguentar.
(Eles ficam em silêncio. Ao fundo, a música continua. A fogueira estala. José observa as brasas como se algo novo estivesse sendo aceso por dentro.)
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