Há uma crise que se impõe sobre a nação brasileira, mais profunda e silenciosa do que qualquer convulsão econômica, social ou política: a decadência espiritual. Não me refiro, aqui, à prática religiosa no sentido formal — esta, por vezes, se mantém viva nas superfícies dos ritos e das tradições. A decadência à qual aludo habita uma dimensão mais funda, anterior às formas e independente das doutrinas. Trata-se do esvaziamento do espírito enquanto sede da busca, da elevação, da abertura ao conhecimento e à grandeza da alma.
O traço mais nítido dessa ruína não está na ausência de fé, mas na recusa sistemática ao cultivo da interioridade, no desprezo pela alta cultura, pela reflexão, pela arte autêntica, pela filosofia e pela transcendência que, desde os primórdios da civilização, constituem os pilares que sustentam a dignidade humana. Um povo que rejeita o esforço da consciência, que substitui a contemplação pelo entretenimento vulgar, que reduz o pensamento ao consumo imediato de banalidades, inevitavelmente se vê à deriva — órfão de si mesmo.
O colapso das instituições, a desordem social, a corrupção moral e a deterioração da vida pública não são, senão, sintomas periféricos de uma enfermidade mais grave: a recusa em habitar a própria condição humana em sua plenitude. Quando a busca pelo sentido cede espaço ao culto do efêmero, quando o saber é tratado como suspeito e a ignorância como virtude, o espírito coletivo mergulha numa escuridão de onde só pode emergir pela reinstituição dos valores que transcendem o imediato.
O espírito, quando se recolhe, arrasta consigo a possibilidade da ordem. Sem espírito, não há verdadeira ética, não há polis, não há futuro. A nação, desprovida de homens que pensem, que se elevem, que busquem algo além do ventre e da matéria, torna-se um amontoado de interesses dispersos, onde a lei se torna simulacro, e a política, mercado de vaidades.
O Brasil, portanto, não padece de um problema meramente econômico, educacional ou institucional. Seu maior infortúnio é ontológico: é a recusa do ser em favor do parecer; é a rendição do espírito às forças do niilismo disfarçado de progresso, de pragmatismo ou de falsa liberdade.
Regenerar a nação não será possível sem que se regenere, antes, o espírito que nela habita. E este só se reergue quando volta a se perguntar pelo que é, pelo que deve ser, e pelo que, acima de tudo, transcende a própria existência.
Demais, a decadência espiritual que assola o Brasil não se manifesta apenas na recusa do saber ou na fuga da alta cultura; ela se traduz, sobretudo, na redução da existência a uma rotina ordinária — e, mais do que isso, a uma rotina degenerativa. Uma existência onde o homem, despojado de seu eixo metafísico, se vê condenado a uma luta diária pela sobrevivência, como se aquilo que é condição elementar da vida — água, alimento, vestuário — se tornasse, paradoxalmente, o fim último da própria existência.
Não se trata de uma contingência natural, mas de uma construção social meticulosamente desenhada por castas que, dominando as artes da manipulação, da mentira e da engenharia psíquica, convertem a população em mera massa de manobra. A lógica é simples e brutal: quanto mais um povo se ocupa com as urgências da matéria, menos tempo, menos energia e menos lucidez lhe restam para a reflexão, para a busca do sentido, para a rebelião do espírito.
Este mecanismo de dominação não se restringe às esferas visíveis da política, mas se infiltra nos tecidos da religião, da economia, do trabalho e até da família. Em todas essas instâncias, observamos a ascensão de uma tipologia humana específica: o sociopata adaptado. São indivíduos que, destituídos de qualquer comprometimento com o bem comum, com a verdade ou com a ordem do espírito, manejam os dispositivos do poder para garantir a reprodução de sua própria lógica de domínio.
A sociedade, por sua vez, anestesiada, dessensibilizada e domesticada, aceita sua condição sem resistência efetiva. A alienação deixa de ser um fenômeno meramente econômico ou cultural e se torna uma estrutura ontológica: uma ruptura entre o ser e a sua própria possibilidade de transcendência. Assim, não é apenas a liberdade política que se perde, mas a própria liberdade do espírito.
O resultado é uma sociedade que vive num estado de entorpecimento coletivo, onde as consciências são reduzidas à condição de peças numa engrenagem que se autoalimenta de miséria, medo, ignorância e servidão voluntária. O horizonte humano, nesse contexto, não é mais o da realização do ser, mas o da manutenção da sobrevivência — uma sobrevivência que, ironicamente, nunca se realiza plenamente, pois é projetada para ser sempre escassa, sempre inalcançável, sempre subjugada.
Regenerar essa ordem pervertida não é tarefa que se cumpra apenas com reformas externas, mas exige um processo radical de restauração interior. Trata-se de reinstituir a centralidade do espírito, de reconduzir o homem à sua dignidade ontológica, de devolver-lhe a capacidade de interrogar, de transcender e de recusar a servidão como destino.
Caso contrário — e que isso fique absolutamente claro — o eixo que se inverteu determinará o fim. A desordem espiritual que precede e sustenta a desordem social não é uma enfermidade que se cura espontaneamente. Sem um resgate autêntico dos fundamentos do espírito, sem a restauração da hierarquia dos valores, a sociedade inteira caminha, inevitavelmente, para o colapso — um colapso não apenas material ou civilizacional, mas ontológico.
Entretanto, esse resgate não se dá pelas massas, nem por apelos demagógicos, nem pela ilusão de que a própria degeneração produzirá sua cura. O retorno à ordem — espiritual, ética, cultural e política — exige, antes de tudo, que a verdadeira aristocracia tome consciência de seu papel histórico. E aqui é necessário desfazer qualquer mal-entendido: falo de aristocracia no sentido mais nobre, mais antigo e mais severo do termo — não a aristocracia do sangue ou da riqueza, mas a aristocracia do espírito, da virtude, da excelência.
Se esse grupo — ínfimo, como sempre foi ao longo da história — não se erguer para enfrentar, com todo o rigor, a hidra do fingimento, da inépcia e da maldade institucionalizada, então o destino da sociedade já estará selado. Não há futuro possível sob o domínio dos simulacros, dos sociopatas, dos ladrões e das prostitutas do poder — metáfora que aqui exprime não apenas os corpos, mas, sobretudo, os espíritos vendidos, aqueles que comercializam a verdade, a justiça e a dignidade em troca de migalhas de influência e de prestígio vazio.
Somente uma aristocracia verdadeira — formada por homens e mulheres dispostos a sacrificar o conforto da mediocridade pela grandeza do espírito — poderá realizar o expurgo necessário. Somente ela poderá romper o ciclo de decadência, varrendo do cenário social aqueles que, parasitários do Estado, das instituições e das consciências, fizeram do país uma fábrica de servidão.
O que está em jogo não é uma simples alternância de poderes ou de discursos. Trata-se, de forma irredutível, da luta entre duas ordens: de um lado, a ordem da mentira, da dissolução e do niilismo; de outro, a ordem do espírito, da verdade e da restauração da dignidade humana. E a história — impiedosa para com os que dormem — não perdoa civilizações que recusam seu próprio dever de ser.
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