quarta-feira, 25 de junho de 2025

Teoria das Ideias - Górgias.

Índice.

Capítulo I — Retórica como Técnica de Domínio

1.1 Fundamentos dialógicos do poder discursivo
1.2 A persuasão contrária à episteme: limites ontológicos
1.3 Justiça como forma reguladora da palavra eficaz
1.4 Convergência com a Ideia de Bem: critério de legitimidade

Capítulo II — Sofrer ou Praticar Injustiça: Julgamento Filosófico

2.1 A escolha trágica e a hierarquia axiológica dos males
2.2 Purificação ética pelo padecimento justo
2.3 Retórica submetida à dialética das Ideias
2.4 Síntese conclusiva: supremacia do justo sobre o útil

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Capítulo I — Retórica como Técnica de Domínio.
Artigo 1.1 — Fundamentos dialógicos do poder discursivo.

O diálogo Górgias, situado no cerne da crítica platônica à sofística, inicia-se com uma questão fundamental: o que é a retórica? A resposta de Górgias, que a define como a arte de persuadir por meio do discurso, é aceita em termos operacionais, mas imediatamente posta à prova por Sócrates, cuja função no diálogo é desestabilizar a aparência de saber. A retórica, nesse primeiro plano, se apresenta como um poder — dynamis — de conduzir as almas por meio da palavra, capaz de fazer o injusto parecer justo, e o ignorante parecer sábio. Isso revela o cerne do problema: trata-se de um poder formal, independente de qualquer conteúdo moral ou verdade substancial.

Sócrates, então, impõe a distinção entre techne e empeiria, entre arte verdadeira e mera experiência que visa agradar. A retórica, assim como a culinária em relação à medicina, pertence ao domínio do simulacro, pois não possui critério próprio de verdade ou de bem. Seu êxito se mede apenas pelo convencimento, não pela correspondência com o real. Essa crítica permite Platão introduzir sua concepção hierárquica do saber: há saberes que se ordenam pela finalidade intrínseca do bem, e há práticas que se alimentam da aparência e da sedução.

No fundo, o embate entre Sócrates e os sofistas no Górgias é o confronto entre duas ontologias: uma fundada na doxa e na eficácia persuasiva do momento, e outra orientada pela aletheia, a verdade como desvelamento do ser. A retórica, sem um vínculo com a ideia de justiça, torna-se instrumento de tirania, pois confere ao orador o poder de manipular juízos, invertendo os polos morais da realidade. Esse ponto já anuncia o princípio maior que será desenvolvido nos demais artigos: a necessidade de subordinar a palavra à ordem da Ideia, sem o que toda argumentação se torna instrumento de dominação arbitrária.

A linguagem, para Platão, é o veículo por onde o logos deve conduzir a alma em direção ao real. Se esse logos é pervertido, como o é na retórica dissociada da justiça, então o discurso se converte em antídoto do conhecimento. Assim, já no início do diálogo, a retórica surge não como um saber neutro, mas como um poder que exige ser julgado por uma instância superior: a dialética da verdade. A conclusão preliminar é clara: onde a palavra se emancipa da justiça, a civilização degenera em sofisma.

Artigo 1.2 — A persuasão contrária à episteme: limites ontológicos.

A crítica socrático-platônica à retórica no Górgias não se limita ao plano ético-político; ela é, antes de tudo, ontológica. A verdadeira oposição que estrutura o diálogo é entre o discurso que se ancora no ser e aquele que se enraíza na aparência. A teoria das Ideias — ainda que não plenamente desenvolvida aqui como o será no República — já se insinua como fundamento regulador da crítica: há um domínio inteligível, eterno, incorruptível, que confere medida e verdade às ações humanas. A retórica, quando exercida sem ciência (episteme) desse domínio, move-se na instância da doxa, e por isso não pode senão gerar desordem.

A essência do discurso legítimo, na perspectiva platônica, é conduzir a alma em direção à Ideia. Isto é, ao contrário da persuasão sofística que adapta o discurso ao ouvinte para dominá-lo, o logos verdadeiro exige do ouvinte uma elevação da alma rumo à verdade. Assim, o discurso justo não é aquele que agrada, mas aquele que ilumina. E essa iluminação só ocorre quando o que se diz reflete algo que é em si — o justo em si, o bom em si, o verdadeiro em si. Isso implica que o discurso é justo quando está em conformidade com a eidos, e não com os caprichos da conveniência momentânea.

A retórica, nesse ponto, revela seu desvio: ela é uma produção que não se refere a um modelo eterno, mas apenas a efeitos sensíveis, a reações imediatas. Por isso, ela não participa da ordem do ser, mas da do vir-a-ser, do múltiplo, do instável. Sua natureza é a do simulacro, pois pretende ser saber sem sê-lo, aparenta justiça sem tocá-la, assume a forma do logos enquanto trai sua finalidade superior. A distinção platônica entre aparência e realidade, entre mundo sensível e mundo inteligível, encontra aqui sua aplicação prática: a retórica, dissociada da Ideia, é um discurso sem objeto verdadeiro, um ruído convincente, mas vazio de ser.

Sócrates, ao exigir que todo discurso se submeta à investigação dialética, está precisamente exigindo que se busque o referencial das Ideias — e não o consenso ou a aprovação popular. A retórica, se pretende ser válida, deve ser reconstruída sob o crivo da dialética: ela deve deixar de ser instrumento de convencimento e tornar-se instrumento de conversão — não mais convencer pela força, mas converter pela verdade. Neste sentido, a retórica platônica ideal só existe quando ela é subordinada à contemplação do ser. A palavra deve ser um espelho da ordem inteligível, jamais uma arma moldada ao gosto dos desejos.

Em resumo, a crítica à retórica no Górgias é uma crítica à linguagem desconectada do ser. A persuasão que não se apoia na episteme das Ideias é, por definição, uma ilusão bem produzida. Só há verdadeira palavra onde há verdadeiro ser, e só há verdadeiro ser onde há participação na Ideia. Tudo o mais é ruído de mercado, jogo de sombras, eloquência de sepulcro.

Artigo 1.3 — Justiça como forma reguladora da palavra eficaz.

Se a retórica, ao se emancipar da verdade, torna-se perversa, então a questão central se desloca: como pode o discurso ser eficaz sem ser injusto? Sócrates, ao longo do Górgias, responde por exclusão: só é possível um logos justo se estiver submetido a um critério supra-discursivo — a Justiça enquanto Ideia. Trata-se, portanto, de reordenar a prática do discurso segundo uma ontologia normativa, na qual a retórica só adquire legitimidade quando serva da verdade e, por extensão, da justiça. Assim, a palavra eficaz não é a que convence, mas a que ordena a alma e a cidade segundo o que é, e não segundo o que parece.

Nesse sentido, Platão já opera, implicitamente, com a noção de mimese ontológica: toda prática humana só é legítima quando imita uma realidade superior. A retórica justa é aquela que participa da Ideia de Justiça e, ao fazê-lo, educa a alma do interlocutor para reconhecer o verdadeiro bem. A eficácia retórica não deve ser confundida com eficiência política ou poder de manipulação. Ela deve ser medida pela sua capacidade de reconduzir a alma à ordem do ser, pois é nessa ordem que se inscreve a Justiça enquanto forma. Só se pode dizer que um discurso é justo quando ele, no fundo, é um reflexo sensível de uma estrutura inteligível.

No plano concreto, isso significa que a função do orador não é agradar, nem vencer, mas curar. A medicina da alma — analogia frequente no vocabulário socrático — exige que a palavra corte, limpe, expurgue ilusões. Assim como o médico que engana para salvar, o orador verdadeiro pode ferir o orgulho, contrariar o prazer, romper com convenções, desde que a palavra conduza ao bem. O critério é sempre metafísico: é justo o que participa do Justo em si. A retórica desligada desse eixo torna-se uma técnica tirânica, ainda que adornada de boas intenções ou envolta em causas populares.

É por isso que Calicles, personagem do diálogo, representa não apenas um tipo político, mas uma degeneração do logos. Ele defende a injustiça como virtude dos fortes, a força como critério do direito, invertendo completamente a ordem das Ideias. Para Platão, essa inversão é sinal da decadência última: o logos já não reflete o ser, mas o desejo. Nessa perspectiva, a retórica de Calicles é a negação da linguagem como via para o bem. Ela é linguagem pervertida, pois rompe com a natureza mimética da palavra e a transforma em instrumento de dominação niilista.

Conclui-se que a justiça é o princípio formal da retórica legítima. Não há discurso verdadeiro fora da ordem das Ideias, e a Ideia de Justiça é, nesse contexto, o limite ontológico do discurso. Toda palavra que não se submete a ela está fora do real e, por conseguinte, fora do bem. Por isso, a retórica sem justiça não apenas falha moralmente — ela falha ontologicamente. Não é apenas corruptora de almas, mas falsa no mais profundo sentido do termo: ela simula um saber que não tem, simula uma verdade que não alcança, simula um bem que não existe. O logos, para ser verdadeiro, deve ser justo; e para ser justo, deve estar submetido ao ser.

Artigo 1.4 — Convergência com a Ideia de Bem: critério de legitimidade.

A estrutura argumentativa do Górgias culmina na exigência de um critério último que permita julgar toda prática humana — em especial aquelas que envolvem o poder de conduzir almas. Esse critério, ainda que não nomeado diretamente no diálogo, já se esboça com força: trata-se da Ideia do Bem, fundamento das demais Ideias e norma suprema de toda ação racional. A retórica, para ser legítima, deve se orientar não apenas pela Ideia de Justiça, mas, em última instância, pela Ideia de Bem, pois é dela que toda medida moral e ontológica deriva. A retórica que ignora o Bem não apenas desvia a alma da verdade, mas destrói sua própria finalidade, que deveria ser educativa e ordenadora.

Na doutrina das Ideias, a Justiça é uma forma que deriva e participa do Bem, assim como a Verdade e a Beleza. Portanto, um discurso só pode ser verdadeiro, belo ou justo se for também bom, isto é, se participar da Ideia de Bem. Essa participação exige que o discurso deixe de ser instrumento de interesse e passe a ser caminho de ascensão. Sócrates, ao rebaixar a retórica comum e exaltar o logos filosófico, está traçando uma hierarquia entre o discurso fundado no vir-a-ser e aquele fundado no ser. A palavra, para ser logos, deve iluminar — e a fonte dessa luz é o Bem.

É nesse ponto que a crítica à retórica se transforma em teodicéia filosófica. A linguagem só tem valor enquanto meio de recondução da alma à sua origem, à sua forma pura e eterna, que é o Bem. Ao não mais servir a essa finalidade, a palavra humana se torna um erro essencial — ela passa a operar contra a alma e contra o cosmos, instaurando a desmedida. Essa desmedida, no plano político, se revela como tirania; no plano psicológico, como vaidade e orgulho; no plano ontológico, como ruptura com o ser. A retórica sofística, tal como praticada por Górgias, é a técnica da separação: separa o discurso da verdade, a alma de sua forma, o mundo sensível do inteligível.

Ao contrário disso, a retórica sob o crivo da dialética se transforma: ela já não visa persuadir, mas converter; não visa vencer, mas curar; não visa agradar, mas elevar. Essa transformação implica uma reorientação metafísica da linguagem: toda palavra deve espelhar o Bem, ou será apenas ruído. O critério de legitimidade do discurso, portanto, não é sua eficácia social, mas sua fidelidade ontológica. A questão não é se o orador é convincente, mas se o que ele diz conduz ao ser. Isso exige do orador um duplo movimento: conhecimento das Ideias e domínio da alma.

Conclui-se, pois, que a crítica platônica à retórica desemboca necessariamente numa teologia filosófica do Bem. O Bem não é uma escolha moral entre alternativas humanas; é a fonte do ser, da medida e da verdade. A retórica que ignora o Bem não é neutra — é destrutiva. É melhor, então, ser um orador fracassado que permaneça fiel ao Bem do que um retórico brilhante a serviço da mentira. Pois aquele que fala com o Bem no coração já participa do divino; o outro, ainda que elogiado pelos homens, já caiu fora da ordem do ser. A palavra, quando separada do Bem, torna-se a ruína da alma — e a alma é, para Platão, a verdadeira cidade.

Capítulo II — Sofrer ou Praticar Injustiça: Julgamento Filosófico.
Artigo 2.1 — A escolha trágica e a hierarquia axiológica dos males.

No desenvolvimento do Górgias, a distinção mais incisiva de Sócrates emerge não entre tipos de discurso, mas entre tipos de mal: sofrer a injustiça ou cometê-la. Para a sensibilidade comum, imersa na doxa, o mal maior é padecer — ser humilhado, dominado, ferido. Já para Sócrates, guiado pela ordem das Ideias, o mal maior é praticar a injustiça, pois isso corrompe a própria alma e a desfigura ontologicamente. Trata-se aqui de uma inversão radical da axiologia vulgar, pois a hierarquia dos males é reconfigurada: a injustiça ativa é o verdadeiro mal, pois rompe a alma com o Bem.

A lógica socrática fundamenta-se na estrutura metafísica da alma: esta é ordenada quando participa do justo, e desordenada quando o recusa. Assim, o ato injusto, mesmo que traga vantagens aparentes no plano sensível, opera como um corte na ordem ontológica da alma. O agente injusto adquire, pela própria ação, uma forma inferior de ser, aproximando-se do que há de caótico, enquanto a vítima da injustiça, desde que não retribua o mal, preserva sua integridade. Essa distinção não é meramente ética; é ontológica: o justo se assemelha ao ser, o injusto ao não-ser.

É nesse ponto que a teoria das Ideias reaparece como estrutura de julgamento: a justiça não é convenção, mas participação num modelo eterno. Portanto, não é a consequência do ato que determina sua bondade, mas sua conformidade com a Ideia. O mal de padecer uma injustiça é acidental; o mal de cometê-la é essencial. O primeiro toca o corpo ou a fortuna, o segundo atinge a alma. Sócrates insiste: “É melhor padecer injustiça do que cometê-la”, pois o dano que se sofre no primeiro caso é externo e reversível, enquanto no segundo é interno e deformador da própria essência racional.

A escolha trágica que se impõe é, então, uma escolha entre parecer e ser: parecer vitorioso, mas ser injusto — ou parecer fraco, mas ser justo. A retórica, quando corrompida, sempre empurra para a primeira escolha. Por isso ela é perigosa: ela mascara o mal, tornando-o desejável, e disfarça o bem, tornando-o repulsivo. Ela destrói a clareza da hierarquia moral que deve reger a alma. Em contraste, a filosofia reconstrói essa hierarquia com base na verdade do ser, e oferece à alma um critério eterno: a conformidade com o Bem.

A decisão entre cometer ou sofrer injustiça, portanto, não é circunstancial; é metafísica. O verdadeiro mal não é o dano, mas a perversão da forma da alma. E como essa forma só é preservada na medida em que a alma se alinha com as Ideias — sobretudo com a Ideia de Justiça —, o maior bem é permanecer justo mesmo diante da injustiça. Só o ignorante ou o corrompido poderia inverter essa ordem. A filosofia, portanto, não promete imunidade ao sofrimento, mas integridade diante dele. Ela não protege do mal externo, mas impede o mal absoluto: tornar-se injusto e, com isso, exilar-se do ser.

Artigo 2.2 — Purificação ética pelo padecimento justo.

A noção de que é melhor sofrer a injustiça do que cometê-la, para além de uma reorientação axiológica, carrega implicações purificadoras no plano da alma. O sofrimento, quando suportado com justiça, torna-se instrumento de depuração interior, pois, ao contrário da ação injusta que macula a essência racional do agente, o padecimento involuntário apenas afeta o que é inferior na constituição humana — o corpo, a fama, os bens transitórios. A alma, centro da identidade platônica, não é atingida pelo mal recebido, mas apenas pelo mal praticado. Essa distinção é decisiva: ela permite compreender o sofrimento como um meio de fortalecimento ontológico, e não de degradação.

Neste ponto, Platão articula implicitamente sua doutrina da paideía como ascese. A alma justa, ao recusar retribuir o mal e ao aceitar a dor como consequência de sua integridade moral, aproxima-se da ordem das Ideias. Ela se purifica das paixões inferiores — ira, ressentimento, vaidade — e se fixa na contemplação do Bem. O sofrimento justo, então, torna-se analogia do exercício filosófico: assim como a dialética exige esforço e desapego dos sentidos, o padecimento injusto, se aceito sem corrupção interior, serve como teste da alma. Ambos são modos de purificação (katharsis), pois retiram da alma o que é estranho à sua forma.

É por isso que Sócrates, ao longo do Górgias, recusa a defesa pessoal e a autopreservação pela persuasão. Para ele, seria indigno usar a palavra como arma para escapar de uma punição injusta se, para isso, fosse necessário trair a verdade. Ele prefere aceitar o castigo imerecido a comprometer a alma com o erro. O sofrimento, nesse caso, é pedagogia metafísica: ensina à alma que seu valor não reside nas aparências sociais, mas na sua conformidade com o ser. Sofrer sem rebaixar-se é, então, um modo de ascender.

Essa concepção remete diretamente à estrutura da teoria das Ideias: o que é verdadeiramente real não é o que sofre mudança, mas o que permanece. E a alma justa, ao suportar a injustiça sem se converter ao mal, revela sua participação no que é eterno. Sofrer, nesse sentido, torna-se prova de incorruptibilidade. Já a alma que comete injustiça, mesmo se coroada de êxito, prova sua degradação essencial: ela abandona a ordem do ser para aderir ao efêmero, ao mutável, ao não-ser. O verdadeiro juiz da alma, portanto, não é o tribunal dos homens, mas o tribunal das Ideias.

A retórica, quando pervertida, tenta inverter esse juízo: ela faz do sofrimento um sinal de fraqueza, e do sucesso injusto um sinal de inteligência e habilidade. Platão denuncia essa inversão como a raiz de toda corrupção política e moral. A purificação da alma exige, antes de tudo, a rejeição dessa mentira, e a aceitação da verdade dura: o justo pode sofrer, o injusto pode triunfar, mas só o primeiro permanece no ser. A dor, então, não é castigo, mas prova. Não é sinal de falência, mas de fidelidade. Nesse quadro, a retórica deve calar, para que o logos da verdade fale. Pois onde há justiça, mesmo no sofrimento, ali está a alma intacta, e com ela, o verdadeiro homem.

Artigo 2.3 — Retórica submetida à dialética das Ideias.

A purificação da alma pelo sofrimento justo encontra sua plena inteligibilidade quando se considera o lugar que Platão reserva à dialética como única via legítima para o conhecimento e para o discurso verdadeiro. No Górgias, a retórica aparece como potência sedutora que se opõe à dialética — não por ignorância, mas por escolha. O orador, como denunciado por Sócrates, opta conscientemente por persuadir sem saber, agradar sem corrigir, conquistar sem justificar. Diante disso, a reabilitação do discurso só se torna possível se for reconstruída sob o governo da dialética — isto é, da ascensão da alma em direção às Ideias.

A dialética é a única prática discursiva que se submete ao critério do ser. Ao contrário da retórica, que se move na ordem do possível e do provável, a dialética busca o necessário e o eterno. Ela opera por divisões e sínteses, conduzindo a alma por graus sucessivos de inteligibilidade até o princípio primeiro, que é o Bem. Somente quando o logos é regido por essa orientação vertical ele se torna verdadeiramente humano — pois só então reflete o real, em vez de manipulá-lo. A retórica, se quiser escapar da acusação de perversão, deve, pois, converter-se: submeter-se à dialética como forma superior de discurso e como critério de validade.

Essa submissão exige uma transformação estrutural: o orador não pode mais visar a vitória, mas a verdade. A palavra já não é instrumento de domínio, mas de desvelamento. A alma do interlocutor não deve ser dominada, mas elevada. Isso só é possível quando o discurso participa do que é — e o que é, em Platão, são as Ideias. Logo, toda fala que não esteja referida à ordem das Ideias é fala estéril, quando não perversa. Só há discurso legítimo onde há referência ontológica, e essa referência só é possível por meio da dialética.

No Górgias, essa tensão é dramatizada no confronto entre Sócrates e os sofistas. Estes simbolizam o logos desligado do ser; Sócrates, ao contrário, encarna a palavra reconduzida ao seu princípio. Não se trata apenas de estilos retóricos distintos, mas de visões de mundo antagônicas: uma baseada na conveniência e na persuasão, outra na verdade e na medida. Sócrates não quer vencer; quer curar. Não deseja aplauso, mas retidão. E essa retidão só se alcança quando o discurso reflete, mesmo que imperfeitamente, a estrutura inteligível da realidade. A retórica verdadeira, portanto, é dialética em ato.

A implicação maior dessa submissão da retórica à dialética é que todo discurso se torna responsável diante do ser. Já não basta falar bem — é preciso falar o que é. O logos deixa de ser arma e se torna ponte: entre o sensível e o inteligível, entre a alma errante e sua forma eterna. O orador, então, assume o papel de guia ontológico, e não mais de encantador de plateias. Ele fala para libertar, e não para dominar. E sua palavra só é eficaz porque está fundada naquilo que não muda, naquilo que é por si: as Ideias.

Conclui-se, pois, que a retórica, se quiser escapar do julgamento condenatório de Platão, deve renascer sob a luz da dialética. Isso significa abandonar o reino da doxa e ingressar no da episteme; deixar de seduzir e começar a conduzir; deixar de manipular e começar a iluminar. O discurso verdadeiro é aquele que reflete o ser — e só esse é digno do nome de logos. Todo o resto é ruído, aparência, ilusão — simulacro de fala. E o simulacro, em Platão, é o inimigo do real.

Artigo 2.4 — Síntese conclusiva: supremacia do justo sobre o útil.

O percurso filosófico estabelecido no Górgias culmina na formulação de uma tese que desafia não apenas as práticas políticas e retóricas da época, mas a própria concepção vulgar do bem: é preferível ser justo e sofrer, do que ser injusto e triunfar. Esta tese, que ao senso comum soa absurda, adquire consistência rigorosa quando examinada à luz da teoria das Ideias. Pois o que Platão afirma, em última instância, é que a medida do valor não está na utilidade imediata nem na aparência do êxito, mas na participação no ser. A justiça não é um meio para algo; ela é o próprio bem, na medida em que reflete e deriva da Ideia do Bem.

A retórica, quando serve ao útil, está sempre em risco de se converter em instrumento da injustiça. Mas quando submetida ao justo, torna-se prolongamento do ser — palavra que participa da ordem eterna e, por isso, reconstrói a alma. A distinção entre chrêsimon (o útil) e agathon (o bem) é aqui decisiva. O útil é relativo, sempre dependente de contextos e fins mutáveis; o bem é absoluto, pois está fundado no que é por si. O discurso retórico que visa o útil pode até convencer, mas corrompe. O que visa o bem pode desagradar, mas salva. Esta é a hierarquia que estrutura toda a ontologia moral de Platão.

A alma humana, sendo imagem do inteligível, só encontra sua paz quando participa do que é estável, verdadeiro e justo. Tudo o que a desvia dessa ordem, mesmo que ofereça prazer, sucesso ou prestígio, é nocivo. E tudo o que a reconduz a essa ordem, mesmo que doloroso, é salvífico. Assim, o sofrimento por causa da justiça é, em Platão, um privilégio ontológico. Ele revela que a alma não se dobrou ao sensível, que não foi capturada pela ilusão do imediato, mas permaneceu fiel ao ser. O triunfo da injustiça, ao contrário, é a evidência de que a alma rompeu sua aliança com o eterno — e, com isso, se degradou.

Essa conclusão implica uma redefinição radical do sucesso humano. O homem justo, ainda que desprezado, pobre ou punido, é ontologicamente superior ao injusto admirado. Pois sua alma permanece ordenada, e essa ordem o faz participar do divino. O injusto, por mais que triunfe, carrega em si a desordem e a feiura da alma que traiu o Bem. A justiça, então, não é um contrato social nem uma conveniência coletiva, mas a forma eterna que dá medida ao agir humano. É o traço divino na alma — e por isso, tudo deve ser sacrificado por ela, inclusive a vida, se necessário.

A retórica, enquanto domínio da palavra, está sempre diante desta escolha: servir ao útil ou ao justo. O Górgias ensina que a palavra só tem dignidade quando serve à justiça — e só serve à justiça quando se submete ao ser. Toda palavra que busca agradar sem iluminar é traição. Toda eloquência que se afasta da verdade é corrupção. Só a linguagem ordenada pela Ideia pode libertar. E por isso, no fim, a retórica se curva — ou se perde.

É neste ponto que a obra se fecha como sistema: a alma, o logos e a pólis só são justos quando participam da ordem inteligível. Fora disso, há apenas caos organizado, aparência de harmonia, sombra sem essência. A verdadeira política, a verdadeira filosofia, e mesmo o verdadeiro sofrimento, só fazem sentido dentro dessa estrutura: a supremacia do justo sobre o útil, da alma ordenada sobre o corpo ileso, da verdade sobre a vitória. Tal é a lição do Górgias: não basta falar — é preciso ser justo. E só o justo, mesmo ferido, permanece no ser.

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