ÍNDICE
Capítulo I – A Verdade em Juízo
Artigo I – A Palavra contra os Juízes
Artigo II – A Virtude contra a Cidade
Capítulo II – A Morte como Testemunho Filosófico
Artigo I – A Filosofia como Missão Indivisível
Artigo II – A Sentença como Derrota da Polis
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Capítulo I – A Verdade em Juízo.
Artigo I – A Palavra contra os Juízes.
Sócrates se ergue diante dos atenienses não como réu, mas como espelho da própria cidade. Sua defesa não é uma súplica, tampouco uma retórica aduladora, mas a exposição nua da verdade — e, por isso mesmo, insuportável aos ouvidos da massa e dos que detêm o poder circunstancial. Diante da assembleia, ele denuncia não apenas os que o acusam, mas a lógica mesma da acusação, enraizada no preconceito contra o pensamento livre, contra o homem que não se curva às ilusões do consenso.
A ironia socrática é aqui mais do que um método: é uma arma moral. Ao confessar ignorância, Sócrates revela a soberba daqueles que julgam saber. Ele não se coloca acima dos outros, mas denuncia que os outros se colocam acima da verdade. A acusação de corromper a juventude se desfaz como farsa: corromper, para os juízes, é ensinar a pensar. E não acreditar nos deuses da cidade? O que são os deuses da cidade senão projeções do próprio poder que o tribunal quer preservar?
A fala de Sócrates fere, pois não busca agradar. Ao invés de ceder, ele inverte os papéis: é o tribunal que se encontra julgado, não ele. Ao invés de se humilhar para poupar-se da pena, ele reafirma a integridade de sua vida. A coragem com que desmonta, uma a uma, as acusações, é a coragem de quem já não pertence ao mundo da opinião, mas ao domínio do Logos. Sócrates se defende sem se defender — pois sabe que o homem justo nada tem a temer, nem da morte nem dos homens.
O julgamento torna-se símbolo da condição trágica da filosofia: ser sempre mal compreendida, ser sempre temida pelos que confundem ordem com silêncio, paz com obediência. Sócrates, ao falar aos juízes, fala à posteridade. Ele não busca absolvição, mas testemunho. O tribunal o escuta como réu; a história o ouvirá como fundador.
Artigo II – A Virtude contra a Cidade.
Na continuidade de sua defesa, Sócrates não se limita a justificar suas ações; ele desnuda o vício oculto da própria cidade. A polis, que se pretende justa, revela-se incapaz de suportar o homem verdadeiramente justo. Sócrates não é inimigo de Atenas, mas sua mais dolorosa consciência. Sua vida, dedicada à investigação da virtude e à provocação dos cidadãos ao exame de si mesmos, torna-se intolerável à estrutura corrompida de uma democracia que teme a liberdade do espírito mais do que os erros do poder.
Ao afirmar que sua missão lhe foi dada pelo deus — por meio do oráculo de Delfos —, Sócrates recoloca a filosofia no plano do sagrado. A cidade, que se pretende guiada pelos deuses, rejeita justamente aquele que, segundo a voz divina, é o mais sábio por reconhecer seus próprios limites. Essa inversão dramática mostra que a virtude verdadeira não tem lugar garantido no seio da política. O filósofo é marginal, não por escolha, mas por destino: ele perturba, desinstala, impede a acomodação da mentira.
Sócrates insiste que jamais abandonará sua tarefa, mesmo que libertado sob a condição de silenciar. Pois aceitar esse pacto seria trair não apenas a verdade, mas a alma mesma da cidade. A lei que o condena é, em sua raiz, uma confissão de medo: medo da crítica, da dúvida, da interrogação constante que revela a fragilidade dos valores assumidos como certos. Sócrates demonstra que a verdadeira piedade não é obedecer aos ritos da cidade, mas submeter-se ao tribunal da razão, onde o bem é a única norma.
Assim, sua defesa não é o esforço de um cidadão em salvar-se, mas o sacrifício do filósofo para salvar a dignidade da própria filosofia. Ele não acusa os juízes de injustiça apenas contra si, mas contra o princípio que sustenta toda possibilidade de justiça. Sócrates não quer vencer no tribunal; ele quer que a cidade seja digna da verdade. E, ao recusar-se a transigir, ele se ergue como um símbolo: aquele que prefere morrer a viver em contradição com a virtude. Seu exemplo sela, com sangue e razão, o vínculo inseparável entre a liberdade do espírito e a saúde da polis.
Capítulo II – A Morte como Testemunho Filosófico.
Artigo I – A Filosofia como Missão Indivisível.
A sentença foi proferida. O tribunal pronunciou a morte do filósofo, mas não sua derrota. Sócrates permanece sereno. Sua serenidade, porém, não é desdém pela vida, mas obediência àquilo que é mais alto do que a própria vida: a razão em serviço do bem. Ao invés de lamentar a pena, ele transforma a morte em ato pedagógico, em epílogo coerente de uma existência devotada à busca da verdade. Em nenhum momento ele se esquiva do destino; em nenhum momento abandona a inteireza do discurso que até ali sustentou.
Sócrates reafirma, diante da iminência da morte, que sua missão não pertence ao plano da conveniência nem da escolha individual. É um chamado superior — uma tarefa que transcende o cálculo e não admite cessar. Interrompê-la, ainda que em nome da própria sobrevivência, seria negar o próprio fundamento da filosofia. Ele não a exerce como profissão, mas como vocação. É inseparável do seu ser. Como poderia o filósofo continuar a viver, tendo calado sua consciência?
A cidade, ao condená-lo, pensa purgar um incômodo; na verdade, exila a própria alma. Sócrates mostra que a vida sem exame não vale a pena ser vivida — e ao dizer isso, expõe a miséria da maioria que apenas existe, sem jamais interrogar o porquê. Sua morte, portanto, é denúncia e é oferta. Denúncia da ignorância organizada como poder político; oferta de um testemunho último sobre a unidade entre pensamento e ação. Sócrates não é herói; é mártir da razão.
Na figura desse homem condenado pelo Estado por “ensinar a pensar”, revela-se uma verdade decisiva: toda cidade que rejeita o filósofo rejeita a si mesma. Toda sociedade que teme a verdade cava sua própria ruína. Sócrates não deseja escapar — deseja que a cidade acorde. E se, ao morrer, ele não a convence, deixa ao menos gravado no tempo o vestígio de um modo mais alto de viver: aquele que se curva apenas diante do bem.
Artigo II – A Sentença como Derrota da Polis.
Ao beber o veneno, Sócrates não é o único a morrer. Com ele, morre uma chance da cidade salvar-se de si mesma. A execução do filósofo é o fracasso da política em reconhecer a sua própria medida. Pois se a filosofia é o critério da justiça, matar o filósofo é consagrar o poder como critério de verdade. Sócrates, ao não recuar diante da pena, devolve à cidade um espelho: não foi ele que falhou — foi Atenas que se traiu.
A sentença contra Sócrates é menos um ato de ignorância que um gesto deliberado: os juízes sabiam que ele dizia a verdade, mas essa verdade os humilhava. Sua simples presença desmontava o prestígio dos que se achavam sábios e o conforto dos que viviam sem pensar. Sua morte, então, é pedagogia do ressentimento: a vingança da cidade contra aquele que a obrigava a se enxergar. Mas ao fazê-lo, Atenas revela o que se tornou — uma comunidade incapaz de suportar a liberdade que afirma sustentar.
Sócrates morre sem ódio. Não invoca maldição, não exige vingança. Seu último gesto é o de quem permanece fiel à ordem mais alta, mesmo diante da injustiça. Ao lembrar a seus amigos que sacrifiquem um galo a Asclépio, ele deixa um enigma: a morte como cura. Cura da vida não examinada? Cura da prisão do corpo? Cura da cidade doente? Seja qual for o sentido, o gesto final de Sócrates é ainda filosófico — mesmo no fim, ele não abandona o mistério, mas o integra à verdade vivida.
Atenas venceu juridicamente. Mas perdeu simbolicamente. Porque se a cidade precisa matar o seu filósofo para sobreviver, já está morta em essência. A filosofia, ao contrário, vive da morte de Sócrates — e nele se eterniza. A recusa de submeter-se ao medo, a firmeza diante da injustiça, a fidelidade à missão dada por Deus: tudo isso faz de sua morte não o fim, mas a inauguração de um paradigma. A derrota do corpo foi a vitória do espírito.
A cidade matou Sócrates. Mas foi Sócrates quem julgou a cidade. E ela foi achada culpada.
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