segunda-feira, 9 de junho de 2025

A Involução da Simbólica: Da Ordem ao Caos do Sentido - Ou, a Queda do Símbolo.

 
Capítulo I — A Era da Forma: Quando o Símbolo Fundava o Real.

1. O Símbolo como Ponte entre o Invisível e o Visível

2. A Palavra como Arquétipo: Nomear era Conhecer

3. O Rito e a Imagem: Operações do Real

4. A Sacralidade da Forma: o Objeto como Reflexo do Ser

5. O Cosmos em Ordem: a Simbólica como Estrutura de Mundo

6. A Unidade entre Coisa e Significado

7. A Convergência da Linguagem com o Destino

Capítulo II — A Quebra do Elo: A Dissociação entre o Nome e a Coisa.

1. A Substituição da Presença pelo Conceito

2. Da Teofania ao Signo Arbitrário

3. A Técnica como Simulacro da Forma

4. O Esvaziamento do Rito: a Superfície sem Profundidade

5. A Palavra Tornada Função

6. A Razão Separada do Mistério

7. O Objeto Reduzido ao Útil

Capítulo III — O Reino do Sujeito: A Inversão da Cosmogonia.

1. A Consciência como Centro do Mundo

2. O Colapso do Símbolo na Psicologia do Eu

3. A Estética do Vazio: a Arte Pós-Simbólica

4. O Imaginário Desconectado do Arquétipo

5. A Nova Babel: Termos sem Referência

6. O Culto da Subjetividade como Nova Religião

7. A Morte do Sentido: O Mundo como Espelho Cego



Capítulo I — A Era da Forma: Quando o Símbolo Fundava o Real.

1 - O Símbolo como Ponte entre o Visível e o Invisível.

O símbolo, na raiz de sua função mais profunda, não é mera representação arbitrária de uma ideia, mas a própria ponte entre dois mundos — o visível e o invisível. Onde a linguagem racional falha ao tentar nomear o que escapa aos sentidos, o símbolo opera. Ele não explica: revela. E essa revelação não é da ordem da lógica discursiva, mas da apreensão silenciosa que liga o finito ao infinito, o tempo à eternidade, o homem ao mistério.

Desde os primórdios da consciência humana, o símbolo habitava o centro da experiência do mundo. Não era decorativo, nem acessório. Era o modo como o real se dava — o sol como figura do divino, a serpente como ambivalência entre morte e sabedoria, a montanha como eixo entre céu e terra. O símbolo condensava e projetava, trazia à carne aquilo que pertencia ao espírito, permitia que o invisível tivesse corpo, sem jamais se esgotar nesse corpo. Havia uma sacralidade que não estava no objeto em si, mas na ordem relacional que ele expressava. O símbolo fundava uma analogia estrutural entre planos distintos da realidade.

A perda dessa ponte não se deu de modo súbito, mas por erosão. À medida que o olhar moderno começou a dissociar o objeto do mistério que ele carregava, o símbolo foi sendo degradado a sinal, e depois a ruído. Sua potência foi substituída pela explicação funcional; seu poder de convocar o invisível foi abafado por teorias e mecanismos. Restou o mundo das superfícies, em que tudo pode ser lido, mas quase nada compreendido.

A história da humanidade pode ser lida como a história do que se fez com os símbolos. Quando eles eram respeitados como mediadores entre os mundos, havia ordem, sentido e participação. Quando passaram a ser tratados como convenções humanas, despidos de transcendência, iniciou-se a desintegração da experiência simbólica. O que resta é o sintoma de uma cisão: o mundo tornou-se opaco, e o homem, órfão do invisível, tenta agora encontrar no próprio eu o que antes lhe era dado pela presença viva do símbolo.

2 - A Palavra como Arquétipo: Nomear Era Conhecer.

Se o símbolo erguia a ponte entre o visível e o invisível, era a palavra que atravessava essa ponte, portando sentido e instaurando presença. O símbolo precisava da palavra como veículo; a palavra precisava do símbolo como raiz. Juntas, fundavam o real. E é justamente nesse ponto de junção que se revela o colapso da experiência simbólica: quando a palavra se desconecta do símbolo, ela perde sua profundidade e se torna ruído.

Em sua origem, a palavra não era apenas som articulado nem instrumento comunicativo; era, sobretudo, um ato criador. Nomear não significava apenas atribuir um rótulo a uma coisa, mas penetrar em sua essência, ligá-la ao seu princípio. A palavra, em sua função arquetípica, possuía uma densidade ontológica: dizia o que a coisa era no próprio ser. Havia uma correspondência profunda entre o nome e a realidade nomeada — o verbo carregava em si a força de instaurar, delimitar, ordenar o que era indistinto. Nomear era conhecer, e conhecer era participar.

Essa participação não se dava por análise, mas por comunhão. Ao nomear, o homem tradicional não se colocava como observador externo; ele se inseria numa ordem maior, reconhecendo a palavra como veículo do real e do sagrado. Por isso, nas culturas antigas, o nome era guardado, temido, revelado apenas em ritos. Saber o verdadeiro nome de algo ou alguém era ter acesso à sua verdade interna, era, de certo modo, possuir uma chave de ligação entre o terreno e o eterno.

A palavra não era neutra. Ela vinculava. Por isso, maldição e bênção tinham peso real, e os juramentos, selos invioláveis. Falar era comprometer o ser. A linguagem era sacramento, não código. O logos não era uma abstração; era o princípio ordenador do cosmos — e a palavra humana ecoava, em menor escala, essa função primeira do Verbo originário.

Com a progressiva racionalização do mundo, a palavra perdeu sua espessura. Deixou de ser arquétipo para tornar-se convenção, sinal sem substância, forma sem força. A multiplicação dos nomes desconectados de sua essência conduziu à babel da linguagem contemporânea: palavras gastas, ambíguas, moldadas à utilidade, à ideologia ou ao marketing. O nome já não diz o ser — serve ao desejo. A linguagem, separada do mistério, torna-se ruído.

Essa degeneração não é apenas um problema linguístico, mas espiritual. Quando a palavra se esvazia, o mundo se torna mudo. O homem, incapaz de dizer o real, passa também a não mais reconhecê-lo. Surge então a tirania da opinião, a corrosão do sentido e a desconfiança de toda verdade. Quando nomear já não é conhecer, conhecer já não transforma. E onde a palavra não transforma, o ser se torna inacessível.

Essa inacessibilidade do ser, provocada pela queda da linguagem arquetípica, abre caminho para o próximo estágio da decadência simbólica: o colapso da operação ritual e imagética. Pois se o símbolo era ponte, e a palavra seu veículo, o rito e a imagem eram os atos vivos dessa travessia. Quando estes também perdem sua força, não resta mais caminho entre o homem e o invisível — apenas a ilusão de sentido projetada sobre a superfície das coisas. É a essa ilusão que o próximo artigo se dedicará.

3 - O Rito e a Imagem: Operações do Real.

Com o símbolo como ponte e a palavra como seu veículo, era o rito quem operava essa travessia — e a imagem, sua epifania visível. O rito não era uma encenação, tampouco uma tradição repetida mecanicamente: era a atualização do elo entre o mundo sensível e o mundo espiritual. Ele não representava o sagrado, ele o tornava presente. A imagem, por sua vez, não era uma cópia ou decoração, mas a manifestação formal de uma presença invisível. Rito e imagem constituíam, assim, os gestos e formas do próprio real.

Enquanto a palavra nomeava, o rito fazia descer. A realidade invisível era invocada e vinculada ao tempo através do gesto ritual. Cada ação, cada forma, cada movimento repetido obedecia a uma estrutura que não era inventada, mas revelada. Não era o homem quem criava o rito — era o rito que formava o homem. Por isso, nas sociedades tradicionais, não havia distinção entre ação sagrada e vida comum: toda existência estava ordenada por um princípio ritual, que garantia a permanência do mundo e a integridade da alma.

A imagem, inserida nesse contexto, não era interpretada como símbolo morto, mas como presença viva. O ícone, na tradição oriental, não é uma representação artística; é janela aberta para o eterno. A estátua de um deus na Antiguidade não era vista como pedra ou madeira, mas como corpo visível de uma realidade espiritual. Assim, olhar, tocar ou venerar uma imagem não era idolatria — era comunhão.

Mas com a erosão da palavra arquetípica, o rito tornou-se caricatura e a imagem, simulacro. O gesto perdeu sua potência ontológica e foi reduzido a performance estética, política ou emocional. O rito tornou-se espetáculo; a imagem, fetiche. A operação simbólica foi substituída pela estética da superfície. E o que antes era canal de presença passou a ser distração ou consumo.

Esse deslocamento operou não só uma ruptura com o sagrado, mas também uma reconfiguração do próprio real. O mundo deixou de ser um campo de forças espirituais para tornar-se um conjunto de objetos disponíveis à manipulação. A ritualidade foi confinada à religião institucional, e a imagem sequestrada pela publicidade, pelo entretenimento, pelo culto ao eu.

Neste cenário, o ser não mais se manifesta por intermédio da imagem ou do rito, e o tempo deixa de ser sagrado para tornar-se funcional. A operação simbólica, enquanto estrutura da realidade, é dissolvida. O homem, já sem acesso ao invisível por meio do gesto ou da forma, começa a fabricar simulacros, na tentativa desesperada de reencantar um mundo que ele mesmo esvaziou.

Com isso, a passagem do símbolo à superfície é concluída. Aquilo que antes fundava o real agora serve apenas para decorar sua ausência. O próximo passo, inevitável, será a deformação do objeto enquanto reflexo da ordem. O objeto, desprovido de transcendência, cederá lugar ao sujeito como centro de sentido — e a cosmogonia, até então estruturada do alto para o baixo, do ser para o homem, será invertida.

4 - A Sacralidade da Forma: o Objeto como Reflexo do Ser.

O colapso do rito e da imagem não apenas silenciou a linguagem do invisível — ele desencadeou uma queda mais profunda: a perda da sacralidade da forma. No universo simbólico tradicional, toda forma portava um significado que a ultrapassava. Nada era neutro. O objeto, em sua constituição, não era um ente isolado no espaço, mas reflexo de uma ordem superior, uma manifestação visível da estrutura do ser. A forma não era escolhida ao acaso, tampouco moldada pela preferência individual: era transmitida, obedecida, preservada.

A forma implicava um limite, uma medida, uma finalidade. A arquitetura, por exemplo, não nascia do desejo de expressão pessoal, mas da necessidade de expressar o lugar do homem entre o céu e a terra. Um templo não era construído para abrigar uma função, mas para revelar uma presença. O mesmo se aplicava aos objetos do uso cotidiano: a jarra, a lâmina, o tecido, o vaso — cada qual obedecia a uma proporção que não era apenas técnica, mas cósmica. A beleza, neste contexto, era sinal de verdade: a forma bela era aquela que, além de cumprir sua função, tornava visível uma harmonia invisível.

Esse regime da forma não era opressivo — era fundante. Ele não esmagava a criatividade, mas a orientava. O homem, ao moldar a matéria, submetia-se ao gesto da criação e, com isso, participava da ordem do real. A forma correta era aquela que refletia a medida do mundo. Assim, o objeto não era simples utilitário, mas sacramento da presença, intermediário silencioso entre o visível e o eterno.

Mas à medida que o símbolo perde vigor e a palavra se esvazia, a forma passa a ser entendida como aparência. E quando a aparência se desconecta do ser, resta apenas o design. O objeto, outrora portador de uma função sagrada, é reduzido à mercadoria — moldado pela estética do consumo e pelo gosto efêmero da subjetividade. A simetria já não remete à ordem, mas ao cálculo. A proporção já não evoca o cosmos, mas a técnica. A beleza deixa de ser sinal de verdade e passa a ser manipulável, fabricável, descartável.

Com isso, o mundo se torna plano. Os objetos, sem profundidade simbólica, tornam-se coisas entre coisas. Não há mais elo entre o que é visto e o que é. O visível não aponta para o invisível, mas fecha-se sobre si. A forma deixa de ser via de acesso ao ser para tornar-se superfície de projeção do eu.

Esse esvaziamento da forma anuncia a transição final: a inversão do eixo cosmogônico. Antes, o objeto revelava o ser. Agora, é o sujeito quem define o objeto. O sentido já não é descoberto, mas inventado. A verdade já não é buscada fora, mas produzida dentro. A realidade, por fim, cede lugar à percepção — e com isso, não apenas a simbólica é perdida, mas o próprio mundo começa a se dissolver no espelho narcísico da consciência.

A próxima etapa do declínio revelará esse deslocamento de forma ainda mais nítida: a passagem da ordem objetiva à fragmentação subjetiva, onde o cosmos, outrora espelho do ser, torna-se reflexo da vontade individual. O símbolo está morto; resta o eu, coroado como seu próprio deus.

5 - O Cosmos em Ordem: a Simbólica como Estrutura de Mundo.

Enquanto a forma permanecia sagrada e o objeto refletia uma realidade superior, o cosmos se apresentava como uma totalidade ordenada — não um agregado de elementos dispersos, mas uma arquitetura viva, regida por proporções e correspondências. A simbólica, nesse contexto, não era um sistema de significados atribuídos, mas o próprio alicerce da realidade. O mundo era compreendido como uma expressão do logos, e a simbologia era a gramática desse logos. Tudo possuía seu lugar, sua função e sua relação com o todo.

A experiência cósmica era de pertencimento. O homem não era um indivíduo isolado, mas parte integrante de um organismo maior, cujas leis ele não criava, mas reconhecia. O céu indicava o tempo, os astros regiam os ciclos, as montanhas eram os eixos da estabilidade, os rios os condutores da vida, o fogo o elo com o espiritual. Cada elemento da natureza tinha valor simbólico e estava imerso numa rede de relações que conferia sentido à existência.

Essa estrutura simbólica não era opressiva, pois não impunha significados externos à realidade: ela revelava o que já estava inscrito no ser das coisas. A simbólica era a leitura do mundo como expressão do invisível. Era por meio dela que se compreendia a vocação dos seres, a finalidade dos gestos, o porquê das formas. O mundo não era um dado neutro, mas um texto sagrado a ser lido, interpretado e vivido.

O colapso dessa visão começou quando a estrutura simbólica foi substituída por uma estrutura conceitual, e depois funcional. A relação entre as coisas deixou de ser qualitativa e passou a ser quantitativa. A harmonia foi trocada pela eficiência. A analogia foi dissolvida pela análise. E a ordem do cosmos foi reduzida a leis naturais operando sobre matéria cega.

A simbólica, já marginalizada como superstição, foi confinada à esfera do irracional, do mítico, do artístico. O mundo deixou de ser lido como manifestação do espírito e passou a ser medido como recurso. O homem, antes participante de uma ordem que o transcendia, tornou-se o árbitro de uma realidade manipulável. O cosmos tornou-se universo — espaço sem centro, sem hierarquia, sem vocação.

Essa perda da estrutura simbólica não foi apenas um empobrecimento da linguagem: foi a mutilação da experiência do real. Onde antes havia correspondência e profundidade, restou contingência e opacidade. O que era mundo passou a ser ambiente. O que era ser passou a ser função. A realidade perdeu sua espessura vertical e tornou-se um plano horizontal, desprovido de eixo.

Essa horizontalidade prepara a deformação final: a dissolução da unidade entre coisa e significado. Pois uma vez que o cosmos já não expressa o invisível, e a simbólica não mais estrutura o mundo, resta apenas a multiplicação de fragmentos desconectados. O símbolo, já quebrado, torna-se signo esvaziado. A linguagem deixa de revelar e passa a obscurecer. A verdade se perde entre jogos de interpretação. E o ser é engolido pela multiplicidade do irrelevante.

É essa ruptura final — a separação entre a coisa e o que ela quer dizer — que abrirá caminho para o triunfo da subjetividade como único critério de realidade. E com isso, o último elo simbólico será rompido: o mundo deixa de ser palavra pronunciada pelo Ser, para tornar-se ruído inventado pela consciência.

6 - A Unidade entre Coisa e Significado.

No coração da experiência simbólica, havia uma certeza silenciosa: tudo o que existe carrega um sentido, e esse sentido está unido à coisa como alma ao corpo. A pedra não era apenas matéria bruta, mas sinal de permanência; a árvore não apenas organismo vivo, mas eixo de ligação entre os mundos; o fogo, mais que calor, era purificação e passagem. Nessa visão, coisa e significado eram inseparáveis — não porque um fosse projeção do outro, mas porque ambos emergiam de uma mesma fonte, de uma mesma realidade originária onde forma e espírito não se haviam ainda separado.

A unidade entre coisa e significado não era uma construção humana, era dada. O homem não impunha sentido ao mundo — ele o descobria. A linguagem, por isso, era humilde: ela nomeava o que já tinha sentido, e ao nomear, participava do mistério. O que chamamos hoje de “interpretação” não era, naquele contexto, uma leitura subjetiva, mas uma escuta da forma, um mergulho na estrutura do real. A coisa dizia algo porque ela mesma era dita por um Logos que sustentava tudo o que é.

Essa unidade foi sendo corroída na medida em que a consciência passou a se perceber como fonte de sentido, e não mais como receptora. A coisa, então, deixou de carregar uma verdade própria e passou a depender da interpretação humana para adquirir valor. O que antes era símbolo tornou-se signo; o que era dado tornou-se construído. A linguagem, rompida de seu vínculo ontológico, passou a flutuar sobre a realidade como um véu artificial. O objeto já não fala: ele é interpretado. O mundo deixa de ser revelação e passa a ser produção.

Esse deslocamento marca o início de um deserto espiritual. Sem a unidade entre a coisa e seu significado, o homem se vê cercado de formas que nada dizem, de objetos que apenas existem, de palavras que não tocam. Vive, então, entre fragmentos. A linguagem já não aponta para o ser, mas gira em torno de si mesma. E quanto mais fala, menos diz. Essa multiplicação de discursos sem raiz prepara o advento de uma era marcada não pela escuta do sentido, mas pela fabricação do sentido.

A unidade, rompida, dá lugar à arbitrariedade. Os símbolos tornam-se produtos da imaginação ou instrumentos de poder. O significado passa a ser moldado pelo desejo ou pela ideologia. O que antes era elo se torna imposição. O mundo, esvaziado de vocação, transforma-se em tela para a projeção de vontades. O sujeito, enfim, ocupa o lugar da origem, e o objeto se dissolve como mero suporte de interpretação.

Este rompimento — entre a coisa e o que ela é — não é apenas uma crise do símbolo: é uma inversão da relação entre o homem e o real. É o ponto onde a simbólica morre e dá lugar à técnica, ao discurso, ao artifício. A verdade já não habita o mundo, mas o discurso. E é no discurso que o homem tentará agora reconstruir uma ordem — não mais baseada na escuta do Ser, mas na manipulação do sentido.

É esse deslocamento que prepara o terreno para a operação final da queda simbólica: a linguagem não mais como revelação, mas como domínio. O próximo passo será a redução do Logos à função. Já não se fala para nomear o real — fala-se para operar sobre ele. É a era da linguagem tornada instrumento, do discurso transformado em poder. A palavra deixa de ser ponte e se torna ferramenta. A última transformação antes da inversão completa da cosmogonia.

7 - A Convergência da Linguagem com o Destino.

Quando a unidade entre a coisa e seu significado ainda era intacta, a linguagem não era separável do destino. Nomear não era apenas atribuir um som — era colocar em movimento uma realidade. Havia uma correspondência entre dizer e ser. O verbo, pronunciado com reverência e em seu tempo justo, operava. A linguagem, nesse sentido, não era ferramenta, mas desdobramento do próprio ser; falava-se porque se era, e era-se porque algo havia sido dito antes. A palavra habitava a espessura do tempo, entrelaçada à ordem do mundo, e ao pronunciá-la, o homem inscrevia-se no destino que o precedia.

Não havia espaço, portanto, para o delírio da autonomia total. O sujeito não era criador do sentido, mas seu herdeiro. Cada nome continha uma direção, cada termo abria uma possibilidade, cada enunciação implicava um pacto com o invisível. Por isso os antigos temiam a blasfêmia, a mentira, a palavra vã: não por moralismo, mas por reconhecimento do poder oculto da linguagem. Falar era agir, e agir era selar caminhos. A linguagem era o lugar onde destino e liberdade se entrelaçavam, não como antagonistas, mas como tensores de uma mesma travessia.

Com a ruptura simbólica, essa convergência é desfeita. A palavra, agora separada do ser, torna-se manipulação. Fala-se para convencer, seduzir, iludir, ordenar. O dizer não remete mais ao destino, mas ao resultado. A linguagem é instrumentalizada, e seu poder, que antes era mistério, converte-se em técnica. Nasce então a retórica sem alma, o discurso sem chão, a fala sem risco. Tudo pode ser dito, e nada precisa ser verdadeiro. O destino, antes revelado no nome, é substituído pelo cálculo — o futuro não mais se ouve, apenas se planeja.

O mundo passa a girar em torno da eficácia do discurso, e não de sua correspondência com o real. Já não se busca a palavra justa, mas a palavra útil. Já não se escuta o silêncio entre as palavras, mas se preenche tudo com barulho. A linguagem, que outrora era ponte entre o visível e o invisível, entre o homem e sua vocação, torna-se um sistema autônomo, fechado em si. O destino, enfim, é silenciado. E em seu lugar, instala-se a tirania da escolha: o homem, livre de toda ordem superior, se arroga criador de si mesmo — mas sem mapa, sem norte, sem tempo.

Essa autonomia linguística, no entanto, é ilusória. O sujeito que pensa estar dizendo tudo, na verdade, já não diz mais nada. Rodeado por signos que não se ancoram em nada além de sua própria circularidade, ele fala ao espelho. O destino, antes escutado, é agora fabricado — mas o que se fabrica não tem raiz. A linguagem, esvaziada de presença, torna-se o campo da simulação.

Aqui, o ciclo se fecha: aquilo que começou como ponte torna-se prisão. O símbolo, antes revelação, degrada-se em função; a palavra, antes participação, converte-se em manobra; o destino, antes escutado no nome, é apagado pelo ruído da vontade. Tudo agora parte do sujeito. Nada mais lhe é dado: ele deve criar, impor, reinventar. Mas ao fazê-lo, não funda mundos — apenas projeta miragens.

É neste exato ponto que a cosmogonia se inverte. O centro não está mais no alto, mas no interior da consciência. O mundo, que outrora tinha uma ordem a ser revelada, passa a ser território da projeção subjetiva. O próximo capítulo inicia-se nesse abismo: quando o sujeito, desligado do símbolo, passa a se ver como origem de todo sentido — e a realidade, enfim, cede lugar à percepção.

Capítulo II — A Quebra do Elo: A Dissociação entre o Nome e a Coisa.

1 - A Substituição da Presença pelo Conceito.

Ao final do primeiro capítulo, a inversão estava posta: o símbolo, que unia a coisa ao invisível, foi substituído por uma linguagem desligada do ser, e o destino, outrora escutado, dissolveu-se na fala do sujeito. Este movimento culmina em um novo regime de percepção: não mais se parte da presença do real, mas da construção conceitual que o sujeito projeta sobre ele. O que era vivido como dado sagrado e revelação é agora interpretado como abstração. O conceito toma o lugar do símbolo, e o espírito cede espaço à análise.

Essa transição é decisiva: a presença, que não precisava ser explicada porque se impunha em sua própria manifestação, torna-se um problema a ser traduzido pela mente. O mundo, antes habitado como um templo, torna-se objeto de estudo, um sistema a ser compreendido e dominado. O visível já não remete ao invisível, mas à definição lógica. O ser, já não mais invocado, precisa ser descrito, esquadrinhado, classificado. A experiência simbólica, que envolvia o corpo, a alma e o espírito, dá lugar à operação do intelecto racional, separado da vida.

O símbolo era denso: nele coexistiam múltiplas camadas de sentido, e o tempo de sua leitura era o tempo da maturação interior. O conceito, por outro lado, é leve, claro, funcional — feito para ser assimilado e descartado. No mundo simbólico, o olhar era demorado, participativo; no mundo conceitual, o olhar é técnico, rápido, objetivante. A realidade já não precisa falar — ela deve ser medida. Já não se contempla: calcula-se.

Este deslocamento não se deu sem violência. Ele exigiu a expulsão do sagrado da linguagem, o silêncio imposto àquilo que não pode ser reduzido a definição. O mistério, que outrora era o fundo último de toda realidade, passou a ser um incômodo. A clareza tornou-se um fim em si, e tudo o que não podia ser iluminado pela razão passou a ser tratado como superstição ou ignorância. A metafísica tradicional foi declarada inútil, a teologia relegada à fé privada, e o símbolo rebaixado à metáfora poética.

A presença, que outrora operava uma transformação no sujeito, é agora substituída por um esquema. Não se entra mais em contato com a verdade — aprende-se sua definição. A formação simbólica, feita de silêncio, rito, intuição e abertura, é substituída pela formação conceitual: lógica, crítica, progressiva, acumulativa. Mas nesse acúmulo, perde-se o essencial: o contato com o ser.

A substituição da presença pelo conceito é o primeiro passo da segunda queda: o abandono da experiência como via de conhecimento. A verdade já não é algo que transforma quem a encontra, mas algo que se diz, que se possui, que se transmite como conteúdo. O saber é arrancado de sua função iniciática e tornado produto.

Esse novo regime prepara a etapa seguinte do colapso simbólico: a emergência do signo arbitrário, onde já não há correspondência entre a palavra e a realidade. Com o símbolo morto e o conceito autonomizado, a linguagem torna-se um sistema fechado, referindo-se apenas a si mesmo. O signo, desvinculado do ser, já não revela: oculta. É o que se verá no artigo seguinte.

2 - Da Teofania ao Signo Arbitrário.

Com a substituição da presença pelo conceito, o real deixou de ser algo vivido e passou a ser algo representado. Mas essa representação, que no início ainda guardava ecos do símbolo, logo seria reduzida a um sistema funcional de signos sem profundidade ontológica. Aquilo que antes se manifestava como teofania — a aparição do divino nas coisas, nos gestos, nas palavras — é dissolvido num código de signos autônomos, onde já não há correspondência direta entre linguagem e ser. A realidade torna-se interpretável apenas enquanto construção mental, e a linguagem, enfim, se emancipa de qualquer fundamento ontológico.

Na teofania, a coisa é mais do que ela mesma. Ela carrega uma presença, uma tensão interna entre o que se vê e o que se revela. Um relâmpago no céu era mais que descarga elétrica — era o traço de um juízo. A água, mais que líquido vital, era purificação. Tudo era veículo do invisível. Já no signo moderno, não há nada além da convenção: ele representa o que decidimos que represente. A linguagem, que era sagrada porque remetia ao inefável, passa a ser arbitrária porque responde apenas à lógica humana.

Esse deslocamento rompe o eixo vertical da experiência. O signo já não remete ao alto, mas ao lado — a outro signo, a outro conceito, a outro discurso. A linguagem torna-se um circuito fechado, autorreferencial. O mundo, ao invés de revelação, é tomado como construção. E assim, toda tentativa de verdade é absorvida por jogos de interpretação: nada é definitivo, tudo é linguagem. Tudo é leitura. O ser, silenciosamente, é esquecido.

A teofania exigia escuta, silêncio, disposição interior. O signo exige apenas consumo. Ele opera rápido, troca de lugar com facilidade, molda-se às demandas de utilidade ou afeto. Enquanto o símbolo persistia no tempo e exigia contemplação, o signo se esgota no instante, servindo à comunicação imediata. O signo é ágil, mas raso. Ele entrega tudo de uma vez, e ao fazê-lo, nada transforma. A experiência deixa de ser vertical para tornar-se horizontal: não há mais profundidade, apenas sucessão de superfícies.

Isso abre caminho para a estetização total da linguagem: quando tudo é signo, tudo pode ser moldado, reconstruído, reapropriado — inclusive o sagrado. Religiões viram marcas, mitos tornam-se slogans, arquétipos são diluídos em personagens de entretenimento. O signo não exige fidelidade nem silêncio. Ele exige apenas interpretação, gosto e adesão. Já não há mais o que ouvir: há apenas o que escolher. O mundo torna-se uma vitrine simbólica — bela, fluida e vazia.

Esse esvaziamento do signo, que o separa do ser e da teofania, não apenas altera a linguagem: ele corrompe a própria percepção. O que se vê já não está mais ligado ao que é. A experiência torna-se flutuante, instável, desancorada. O homem, cercado por signos desconectados, já não consegue mais distinguir o que é revelação do que é invenção. O real, que antes exigia reverência, torna-se objeto de manipulação.

O próximo estágio dessa queda será o triunfo da técnica: quando o signo não apenas se separa do ser, mas é deliberadamente fabricado para operar sobre ele. A linguagem se torna instrumento, e o símbolo é substituído por comandos. Não se fala mais para dizer — fala-se para produzir efeitos. A operação técnica da linguagem marca a entrada definitiva no regime do simulacro, onde o real é apenas aquilo que pode ser ativado.

3 - A Técnica como Simulacro da Forma.

Com o signo já desconectado do ser, a linguagem deixa de apontar para qualquer realidade transcendente e passa a operar apenas como sistema funcional — meio de controle, manipulação e reprodução. É nesse ponto que a técnica se impõe como novo princípio ordenador: ela não revela, não representa, não contempla — apenas opera. O que antes era forma carregada de sentido agora é substituído por estrutura útil. A técnica toma o lugar da simbólica como matriz da ação humana, mas sem mistério, sem destino, sem presença.

A forma simbólica exigia fidelidade a uma ordem anterior ao sujeito. Ela não era inventada, mas reconhecida, respeitada, obedecida. Havia um arquétipo que precedia toda criação humana. A técnica, por outro lado, inverte essa relação: já não se parte do ser, mas da função. A pergunta não é mais “o que isto significa?”, mas “para que serve?”. O valor de algo deixa de estar no que ele revela e passa a estar no que ele produz.

Assim, a técnica gera simulacros: cópias de formas anteriores, vazias de qualquer conteúdo simbólico. Uma catedral moderna pode ter a aparência de uma antiga, mas já não é templo — é atração turística. Um rito pode ser encenado, mas já não comunica presença — é performance cultural. A linguagem da técnica preserva os contornos da forma, mas esvazia seu centro. O simulacro não mente: ele apenas omite a ausência.

A técnica não se contenta em operar sobre o mundo — ela começa a recriá-lo à sua imagem. Substitui a natureza por modelos, a experiência por dados, o corpo por interface. Tudo deve ser convertido em função, eficiência, controle. O mundo torna-se um projeto em constante reformulação, onde a estabilidade da forma é vista como atraso e o mistério como obstáculo. A técnica não tolera o que escapa à operação.

Nesse novo regime, o tempo simbólico — lento, cíclico, orgânico — é substituído pelo tempo técnico: contínuo, progressivo, acumulativo. O gesto, antes vinculado ao rito e à memória, torna-se ação mecânica. O espaço, antes estruturado por hierarquias sagradas, é plano, modular, operável. A linguagem, agora reduzida a comando, já não diz, mas executa. A palavra deixa de ser palavra — torna-se instrução.

O resultado é a produção incessante de realidades artificiais. Mas essas realidades não têm espessura ontológica — são funcionais, reversíveis, descartáveis. O homem, cada vez mais imerso nesse universo de simulacros, perde o senso do que é essencial e do que é transitório. Já não sabe distinguir o que é feito daquilo que é dado. A técnica cria um mundo habitável, mas sem alma. Um mundo eficiente, mas sem presença. Um mundo comunicável, mas sem silêncio.

Esse esvaziamento culmina na completa neutralização do símbolo. Já não há mais espaço para o sagrado, para o indizível, para o que exige escuta. Tudo é transparente, programável, adaptável. O próximo passo será a completa liquefação do gesto: quando até mesmo o rito simbólico for esvaziado de toda profundidade e transformado em espetáculo. O gesto, que antes fazia descer o invisível, agora será usado apenas para causar impacto. A superfície será tudo — e o centro, nada.

4 - O Esvaziamento do Rito: a Superfície sem Profundidade.

Quando a técnica toma o lugar da forma e a operação substitui a contemplação, o rito — outrora eixo sagrado entre o visível e o invisível — torna-se casca, repetição sem elo, movimento sem raiz. O gesto, que antes atualizava uma presença, passa a existir apenas para ser visto. Já não invoca, apenas representa. Já não liga, apenas exibe. O rito se esvazia porque o mundo perdeu a densidade simbólica que lhe dava sentido. Ele continua a ocorrer, mas é como um corpo sem alma — imita o que foi, mas já não é.

Na ordem simbólica, o rito não era invenção humana: era resposta a uma ordem recebida. Ele não visava o impacto, mas a fidelidade. Cada gesto, cada pausa, cada silêncio obedecia a uma gramática sagrada, transmitida como herança. Nele, o tempo se suspendia. O espaço era santificado. O corpo participava de uma liturgia que o superava. O rito não era feito para o espectador: era uma travessia, um mergulho no invisível. Sua eficácia não estava no que mostrava, mas no que convocava.

Com a ruptura da linguagem e o domínio do signo arbitrário, o rito é progressivamente despojado dessa função ontológica. Ele passa a ser traduzido em termos estéticos, sociais ou psicológicos. Deixando de ser porta, torna-se vitrine. Em vez de mediar a relação com o transcendente, passa a reafirmar identidades, despertar emoções ou entreter. Ele ainda preserva sua forma externa — mas o fogo interior foi extinto.

Nesse novo cenário, o rito é reconfigurado como espetáculo. Seu valor não está no mistério que guarda, mas na impressão que causa. Sua duração é cronometrada, sua estética calibrada, sua linguagem adaptada ao gosto do público. Tudo é ensaiado para agradar, nada é feito para transformar. A profundidade cede à superfície, e a presença à performance.

Este esvaziamento não é uma mera decadência cultural — é o sintoma de uma mutação espiritual. O mundo, já não percebido como teatro do sagrado, transforma seus gestos mais antigos em gestos teatrais. Aquilo que por séculos foi vivido como passagem entre mundos é reduzido a símbolo cultural, evento turístico, marco identitário. A memória, sem raiz, torna-se espetáculo. O rito, sem presença, torna-se máscara.

E o mais grave: o homem, ao participar desses ritos vazios, já não percebe que estão vazios. A superfície é tão cuidadosamente mantida que se confunde com o centro. O gesto repetido sem sentido começa a gerar o falso sentimento de sentido. O rito, então, já não conecta com o invisível, mas simula essa conexão. Ele passa a funcionar como placebo espiritual — satisfaz o desejo da alma por transcendência, sem, no entanto, abrir passagem para ela.

É neste terreno preparado que a linguagem sofre sua mutação final: deixa de ser forma, deixa de ser representação, e converte-se em função pura. A palavra, já desligada da realidade, do símbolo e do rito, passa a ser operação lógica, programação, instrução. A linguagem torna-se inteiramente técnica — e o mundo, um sistema de controle. Essa é a etapa seguinte da queda: a palavra tornada função, a fala sem mistério, o dizer que já não escuta.

5 - A Palavra Tornada Função.

Com o rito reduzido à sua casca e a imagem esvaziada de presença, a última transmutação da linguagem se consuma: a palavra, que outrora era sopro criador, agora se converte em função. Já não é verbo que dá forma ao real, mas comando que opera sobre ele. O dizer deixa de ser revelação e se transforma em operação. Fala-se não para entrar em comunhão com o ser, mas para obter um efeito, causar um impacto, cumprir uma tarefa. A palavra se torna técnica — e sua verdade, irrelevante.

No regime simbólico, cada palavra tinha peso, pois nascia da escuta. Dizer algo era assumir responsabilidade sobre o que se tornava no mundo por meio daquele som. O nome era uma invocação, o discurso um gesto ritual, a fala um modo de inscrição na ordem do ser. Por isso, o silêncio era sagrado: não porque fosse ausência de ruído, mas porque era o solo onde a palavra verdadeira nascia.

Com a progressiva substituição do símbolo pelo signo, do signo pela técnica, e da técnica pelo espetáculo, a linguagem se torna pura função. Não há mais palavra justa — há palavra eficaz. Não se busca sentido — busca-se adesão. A comunicação já não exige escuta, mas resposta. Falar é acionar, ativar, induzir. A linguagem torna-se cálculo, algoritmo, instrumento. Ela serve a propósitos, não a revelações.

Esse rebaixamento não apenas empobrece a linguagem — ele transforma o próprio modo como o ser humano se relaciona com o mundo. A palavra, esvaziada de transcendência, perde sua capacidade de ligar o homem ao invisível, ao outro, ao real. Restam comandos, slogans, instruções, frases formatadas, protocolos. O discurso público torna-se automatismo. A linguagem cotidiana, repetição de fórmulas. Até mesmo a oração se vê ameaçada por essa lógica: torna-se mantra psicológico, técnica de autocontrole, e não mais um grito do abismo em direção ao mistério.

A função substitui o significado. A frase não precisa mais ser verdadeira — basta que funcione. A palavra não precisa mais apontar para algo — basta que provoque algo. Com isso, o logos é destruído. E quando o logos morre, o mundo desaba como estrutura de sentido. O homem passa a habitar um universo onde tudo pode ser dito, mas nada pode ser escutado.

A palavra funcional é compatível com o mundo da máquina, não com o mundo da alma. Por isso ela domina os sistemas, mas empobrece os espíritos. Ela comanda, mas não consola. Informa, mas não transforma. Ordena, mas não convoca. Sua frieza é sua força — e sua condenação. Pois onde a palavra não vibra, a alma não desperta. Onde a palavra não escuta, a verdade não desce.

Esse é o ponto mais baixo da queda simbólica: quando o homem já não fala ao mundo, mas apenas sobre ele. Quando já não invoca, mas apenas executa. A linguagem torna-se ferramenta de controle, e não mais via de participação. O silêncio do símbolo é substituído pelo barulho da função.

O próximo artigo revelará a consequência última desse processo: quando o homem, já sem palavra viva, e sem rito eficaz, se vê diante de um real totalmente reduzido à utilidade — e, portanto, absolutamente descartável. O que se segue é o mundo onde o ser é substituído pela demanda, e a linguagem pela propaganda. O mundo em que o sagrado já não está ausente — está esquecido.

6 - A Razão Separada do Mistério.

Quando a palavra se converte em função e a linguagem perde sua espessura simbólica, a razão, que em outros tempos era ponte para o alto, se separa do mistério e passa a operar isolada, como princípio autônomo. O pensamento, que antes nascia da admiração e se abria ao incompreensível como horizonte, torna-se cálculo. Já não pensa a partir do ser, mas sobre o que pode controlar, quantificar, prever. A razão, agora instrumental, deixa de buscar a verdade como revelação para tornar-se ferramenta de dominação.

Na ordem simbólica, razão e mistério não se excluíam: a primeira conduzia à soleira do segundo. O pensamento verdadeiro era aquele que, ao fim, se calava diante do inefável. Pensar era ordenar, sim, mas também preparar-se para escutar. A razão era uma luz — mas luz que nascia dentro da sombra, sem pretensão de dissipá-la. Ela não se opunha ao sagrado: era uma de suas vias.

A modernidade, ao contrário, marca o momento em que a razão se declara suficiente. Ela já não se curva ao que a excede. Tudo o que não pode ser reduzido à análise é descartado como superstição. O mistério é substituído pelo enigma — e o enigma, por um problema a ser resolvido. O que não pode ser dito em linguagem clara é considerado sem valor. A dúvida, que antes era impulso para o assombro, se transforma em cinismo metodológico.

Esse deslocamento tem consequências ontológicas. O mundo deixa de ser percebido como uma dádiva e passa a ser encarado como um sistema a ser desvendado. O saber já não é um caminho de transfiguração interior — é poder. A inteligência, que deveria ser abertura ao ser, torna-se fechamento em torno do ego. O pensamento, agora prisioneiro da função, perde sua vocação contemplativa. Filosofia se torna técnica de análise; teologia, linguagem interna; poesia, exercício de estilo. O mistério, que sustentava todas as formas, é eclipsado.

E o ser humano, afastado do mistério, perde também o contato com o seu próprio centro. Pois o mistério não é o que está lá fora, nas coisas inalcançáveis — é o que está dentro, no que resiste à dissecação. Ao abandonar o mistério, o homem se abandona. Ele perde a verticalidade, a sede do eterno, o chamado ao que está além. Sua razão torna-se um espelho fechado, refletindo apenas a si mesma, girando no vazio da própria lógica.

A cultura gerada por essa razão separada é produtiva, mas estéril. Gera arte sem beleza, pensamento sem transcendência, ciência sem humildade. Ela constrói máquinas, mas não sentidos. Cria conforto, mas não significados. O mundo, sob sua lógica, se torna legível, mas insuportável. Tudo é acessível, e nada é íntimo. Tudo é dito, e nada é escutado. A palavra tornou-se função — e a razão, gerente dessa função.

É essa separação que abre caminho para a última redução: a do objeto a pura utilidade. Pois se o mistério é excluído, e o pensamento convertido em operação, já não há por que manter o ser pelo que ele é. As coisas passam a valer não por sua presença, mas por sua função. O objeto não fala — serve. O mundo, agora mudo, será finalmente convertido em estoque. É essa a próxima etapa da queda: o objeto reduzido ao útil, e o real convertido em recurso.

7 - O Objeto Reduzido ao Útil.

Separada do mistério e guiada por uma razão tornada pura operação, a percepção do mundo atinge seu grau mais raso: o objeto já não é mais forma sagrada, nem sequer vestígio de presença — é agora ferramenta. Seu valor não está em si, mas no uso que dele se pode extrair. O objeto deixa de manifestar o ser e passa a obedecer à demanda. O mundo, convertido em estoque funcional, já não é contemplado, mas explorado.

Essa transformação não ocorre apenas no plano material. Ela contamina o olhar. Tudo é avaliado com base em sua capacidade de gerar benefício, resolver problemas, satisfazer desejos. A árvore, outrora símbolo da vida e eixo do mundo, torna-se madeira em potência. A água, antes presença purificadora, vira recurso hídrico. A terra, que por séculos foi mãe, transforma-se em solo produtivo. Não há mais coisas — há insumos. Não há mais seres — há materiais. O mundo é convertido em reserva de utilidade, em plataforma de exploração.

Esse rebaixamento opera silenciosamente. As palavras continuam a ser ditas, os ritos ainda são encenados, as imagens persistem — mas tudo se move agora dentro da lógica do útil. A função sufoca a vocação. O que não serve, some. O que não responde à demanda, é ignorado. O tempo não é mais o da colheita, mas o da entrega. O espaço não é mais orientado por símbolos, mas por fluxos. Até mesmo o corpo humano é convertido em máquina a ser otimizada, medida, redesenhada.

O olhar simbólico dava ao objeto uma dignidade invisível. Ele não era algo a ser usado, mas algo a ser respeitado, pois participava de uma ordem maior. Agora, desligado dessa ordem, o objeto é avaliado pela eficiência, pelo desempenho, pelo custo. O gesto humano, que outrora era expressão de reverência ou participação, torna-se ato de posse. O mundo é desmontado em partes, classificadas, precificadas, descartáveis.

Esse processo não é neutro — ele forma subjetividades. O homem que reduz o mundo ao útil reduz também a si mesmo. O sujeito passa a se perceber dentro da mesma lógica que impõe ao mundo: o valor de sua existência passa a depender da performance, da utilidade social, da produtividade. Ele se autoavalia, se ajusta, se otimiza. A vida já não é vivida — é gerenciada.

Ao reduzir o objeto à função, não apenas se elimina o símbolo, mas se inviabiliza qualquer caminho de retorno. O símbolo exigia silêncio, espessura, lentidão — tudo o que a lógica do útil rejeita. O mundo perde a capacidade de convocar. Resta a pressão para produzir, consumir, resolver. O real deixa de ser morada e se torna obstáculo. O tempo simbólico, que unia o homem à eternidade, é devorado pelo tempo técnico, que só reconhece prazos.

Esta é a conclusão provisória da segunda queda: o mundo, uma vez linguagem do invisível, é agora tela para a vontade. Mas esse deslocamento não termina aqui. Pois uma vez que tudo está reduzido à utilidade, e o objeto já não possui substância própria, a última inversão se aproxima: o real, vazio, será preenchido pela imagem. O sujeito, isolado num mundo plano, tentará então encontrar sentido não mais nas coisas — mas em si mesmo. E o que começa é a terceira e última parte da queda simbólica: a cosmogonia invertida. O reino do sujeito.

Capítulo III — O Reino do Sujeito: A Inversão da Cosmogonia.

1 - A Consciência como Centro do Mundo.

O percurso até aqui revelou a progressiva corrosão da experiência simbólica: o símbolo como ponte foi desfeito, a linguagem esvaziada, o objeto reduzido à função. No fim do processo, quando o mundo já não fala, o rito já não opera, e o objeto já não significa, resta apenas uma instância possível para onde todo o sentido pode ser projetado: o sujeito. Não é mais o real que impõe sua ordem sobre a consciência — é a consciência que impõe seus contornos sobre o real. Inicia-se, assim, o último movimento da queda simbólica: a inversão da cosmogonia.

Se antes o mundo era lido como expressão de uma ordem que o antecedia, agora passa a ser visto como construção da mente. A consciência, ao invés de escutar, fabrica. Ao invés de se dobrar ao que é, define o que será. O sujeito ocupa o lugar outrora reservado ao mistério. Ele se faz medida de todas as coisas — e essa medida, sendo interior, já não responde a nenhum critério que a transcenda. O que é real passa a depender da validação subjetiva. Sentir é mais determinante que compreender. Querer, mais decisivo que conhecer.

Nesse novo regime, o mundo é colonizado por significados que não brotam da experiência simbólica, mas da vontade individual. Tudo passa a ser espelho, e não janela. A realidade já não é território do sagrado, mas tela de projeção do eu. O outro é acessado apenas enquanto reflexo ou ameaça. A linguagem se curva à subjetividade: dizer não é mais comprometer-se com o real, mas expressar um estado. O símbolo não é mais revelado, é fabricado.

Essa mutação tem raízes ontológicas. O sujeito moderno já não reconhece a existência de uma ordem objetiva. Tudo se torna relativo à perspectiva. O saber é fragmentado. A verdade, emocional. O bem, negociável. Cada um se converte em criador do próprio cosmo — ou de sua própria narrativa, o que dá no mesmo. O mundo, despido de signos que o vinculavam a um centro, torna-se disperso, fluido, sem eixo. A solidez do ser é trocada pela volatilidade da percepção.

Esse processo é apresentado como libertação, mas esconde um colapso. Pois o sujeito, ao se colocar como centro, elimina tudo que o ligava ao alto. Sua soberania vem acompanhada de um peso insuportável: ter que dar sentido sozinho. E como nada fora de si responde, ele gira em torno de si mesmo, como planeta sem órbita. A interioridade, antes santuário, torna-se labirinto.

O mundo subjetivado já não possui símbolos, apenas signos móveis. A identidade, em vez de ser recebida como vocação, é construída como performance. O tempo não conduz à maturação do ser, mas à reinvenção constante de si mesmo. Tudo é provisório, reversível, fluido. Essa fluidez é vendida como liberdade, mas opera como dissolução. Sem forma, sem rito, sem nome, o sujeito vive imerso num mar de estímulos e respostas, órfão de presença.

Assim, a cosmogonia se inverte completamente. O que antes descia — do alto ao homem, do mistério à linguagem, do símbolo ao gesto — agora emerge do sujeito, como produção, consumo, desejo. O céu não fala mais. O mundo não convoca. Resta o eu, habitando um cosmos silencioso, moldado à imagem da própria consciência. Um universo fechado — não por força externa, mas por negação da escuta.

A etapa seguinte revelará o que brota dessa inversão: uma linguagem estética construída não mais para expressar o ser, mas para encenar o eu. O vazio deixado pelo símbolo será preenchido pela imagem de si. E a arte, antes sacramento do invisível, tornar-se-á espelho da subjetividade. É o reino da estética do vazio.

2 - O Colapso do Símbolo na Psicologia do Eu.

Com o sujeito elevado ao centro da experiência, a linguagem, os gestos e os objetos perdem a função de mediar entre o homem e o invisível. Passam a servir, exclusivamente, à construção de si. Já não se busca a verdade como realidade que precede — busca-se autenticidade, coerência interna, afeto validado. O símbolo, que antes ligava o visível ao eterno, é reconfigurado como expressão interior: já não aponta para fora, mas para dentro. Torna-se reflexo, signo emotivo, elemento terapêutico.

Esse redirecionamento dissolve a função original do símbolo. Ele deixa de ser ponto de passagem entre planos e se converte em reflexo de estados psíquicos. A serpente, o fogo, o abismo, o anjo — antes arquétipos que carregavam forças universais — são agora interpretados como projeções da subjetividade. A simbologia é psicologizada, a linguagem ritual psicanalisada, e o mistério reduzido a fenômeno interno. O inconsciente, outrora abismo ligado ao transcendente, é circunscrito como território psíquico.

A subjetividade torna-se o novo altar. Mas trata-se de um altar instável, incapaz de sustentar a gravidade do real. Pois ao transformar o símbolo em reflexo psicológico, perde-se sua tensão vertical. Tudo se torna espelho. Já não se ascende — recua-se. O mergulho interior, que antes conduzia à purificação ou à iluminação, torna-se um circuito fechado de interpretações. O eu se lê, se interpreta, se ajusta — mas já não é convocado por nada além de si. O símbolo, sem transcendência, degenera em decoração psíquica.

Nesse cenário, a linguagem simbólica — tão cuidadosamente formada para nomear o invisível — é tratada como recurso terapêutico ou discurso de identidade. A palavra perde seu peso ontológico: passa a ser validação emocional. “Símbolo” torna-se sinônimo de estilo, de representação estética, de estado interno. Perde-se o sentido de convocação, de risco, de transformação. O símbolo já não exige silêncio nem rito, apenas reconhecimento.

A consequência profunda desse colapso simbólico na psicologia do eu é a desespiritualização da interioridade. O interior, antes santuário, se converte em oficina. O inconsciente, antes habitado por forças maiores que o indivíduo, passa a ser tratado como depósito de traumas e memórias — um repositório de experiências, não um espaço de revelação. O drama da alma cede lugar ao ajuste do afeto. E a angústia existencial, que outrora empurrava o sujeito à escuta do mistério, é tratada como disfunção emocional.

Esse deslocamento encerra uma fase crítica da inversão cosmogônica: o símbolo, ao se fechar na psicologia do eu, perde sua função universal. De mediação entre o homem e o sagrado, torna-se comentário sobre o próprio sujeito. O rito se torna técnica de autocuidado; a linguagem, veículo de autoexpressão; o mundo, pano de fundo da experiência subjetiva. O espírito, sem espaço nem nome, é confundido com estados de ânimo.

O passo seguinte desse esvaziamento será a transposição dessa lógica ao campo estético. A arte, antes manifestação simbólica do invisível, será reduzida à performance da subjetividade. A estética perderá sua função iniciática e passará a girar em torno do eu fragmentado. O símbolo será enterrado sob a imagem — e a imagem, elevada ao centro, se tornará tudo o que resta. O sagrado, por fim, será substituído pela autoexposição. É isso que revelará o próximo artigo: a estética do vazio.

3 - A Estética do Vazio: a Arte Pós-Simbólica.

Após o colapso do símbolo na interioridade e sua redução a reflexo psíquico, a arte — que por milênios serviu como via de revelação do invisível — converte-se em palco da exibição subjetiva. Não mais media, não mais invoca, não mais transforma. Serve, agora, como extensão da consciência solitária que, abandonada ao próprio eco, precisa afirmar sua presença por meio de formas cada vez mais ruidosas. A arte deixa de ser símbolo para tornar-se imagem — não imagem de algo, mas imagem de si mesma.

Na tradição simbólica, a arte não era entretenimento, nem expressão pessoal: era caminho, rito, linguagem de passagem. Cada forma, cada proporção, cada gesto plástico obedecia a uma estrutura superior. A beleza não era decorativa, mas reveladora. O ícone não mostrava: fazia ver. A escultura não imitava: atualizava presenças. O canto não preenchia o silêncio: o desdobrava. A obra não era o produto de um “eu”, mas de um vínculo — com a tradição, com o invisível, com o logos.

Na estética do vazio, isso tudo se desfaz. A obra não tem mais fundo. A beleza não conduz à verdade — é provocação sensível, jogo, ruído visual. A arte já não exige silêncio, mas reação. Não há forma arquetípica, apenas experimentação. A transcendência é descartada em favor da originalidade. O sentido não está na obra, mas no espectador. O artista já não escuta nem revela: fabrica. Ele não cultiva imagens do invisível — projeta estados do eu. A obra deixa de ser ponte e torna-se espelho.

Nesse novo regime, a estética substitui a metafísica. O símbolo é enterrado sob camadas de estilo, conceito, discurso. A arte torna-se comentário da arte. Forma sem fundo. Gesto sem convocação. Ironia substitui a contemplação. Ruptura substitui a permanência. A ausência de sentido é tratada como liberdade. E o vazio simbólico é recoberto por uma multiplicação de signos autônomos, ruidosos, mutáveis — imagens que não remetem a nada além do próprio gesto de serem vistas.

A estética do vazio é, portanto, a celebração da superfície. Ela é o momento final de uma longa retirada: do símbolo ao signo, do signo ao conceito, do conceito à função, da função à imagem. Tudo o que era peso torna-se leve. Tudo o que era silêncio vira estímulo. Tudo o que era hierarquia se dissolve em multiplicidade. A obra de arte não revela o ser — mascara o seu desaparecimento.

O resultado disso é paradoxal: nunca se produziu tanta imagem, e nunca se viu tão pouco. A saturação estética impede o olhar profundo. A sensibilidade é bombardeada, mas não é formada. A multiplicação de formas vazias anestesia. A arte já não eleva — distrai. Já não ordena — confunde. O belo, separado do verdadeiro, torna-se simulacro. E o simulacro, desconectado do símbolo, se prolifera como sintoma.

É nesse ambiente que a linguagem deixa de operar qualquer mediação. A palavra poética, o silêncio ritual, o gesto plástico — todos são sugados pela lógica da visibilidade total. Tudo deve ser mostrado. Tudo deve ser interpretado. Nada pode permanecer oculto. A presença, que antes se insinuava através da forma, é substituída pela exposição. E no lugar do sagrado, ergue-se o culto do eu visível.

Essa dinâmica conduz à etapa seguinte da queda: o rompimento final com os arquétipos e a substituição da imagem simbólica por simulacros subjetivos. O imaginário, antes estruturado por figuras universais, será fragmentado em estéticas pessoais, afetivas, instáveis. Não haverá mais formas comuns — apenas identidades visuais. A arte, enfim, tornada discurso, perderá até mesmo sua capacidade de encantamento. E o que emergirá será um mundo saturado de signos sem destino. A nova Babel.

4 - O Imaginário Desconectado do Arquétipo.

Uma vez dissolvida a simbólica e erguido o sujeito como único centro de referência, o imaginário se fragmenta. Não há mais arquétipos — há apenas imagens. Aquelas figuras primordiais, que estruturavam o sentido e sustentavam a experiência coletiva do mundo, são agora substituídas por formas instáveis, subjetivas, transitórias. O imaginário, em vez de ser espelho do invisível, torna-se vitrine do eu. E aquilo que antes era revelação profunda passa a ser consumo estético, afeto visual, identidade plástica.

O arquétipo não era imagem no sentido moderno: era forma primordial, eixo interno da realidade, tensão viva entre o visível e o eterno. Era algo que habitava o tempo e ao mesmo tempo o transcendente — o velho sábio, o guerreiro, a mãe, o rei, a torre, o deserto. Esses símbolos não pertenciam a uma cultura, mas a uma estrutura universal da experiência humana. Mesmo quando encarnados em mitos distintos, sua força vinha da mesma raiz: apontavam para algo além do indivíduo.

A fragmentação simbólica operada pela modernidade, no entanto, rompe esse eixo. A linguagem coletiva do imaginário se perde, e em seu lugar surgem formas múltiplas, efêmeras, moldadas por afetos pessoais ou por estéticas de mercado. A imaginação já não busca a figura arquetípica — busca o inédito, o expressivo, o impactante. A coerência interna da forma cede lugar à criatividade subjetiva. O símbolo universal é substituído por identidades visuais específicas. O imaginário já não serve ao ser — serve à construção do eu.

Essa desconexão gera uma nova condição: a desorientação da alma. Sem arquétipos, a imaginação deixa de formar o interior. Em vez de aprofundar, dispersa. Em vez de integrar, fragmenta. O sujeito, sem figuras que o chamem ao centro, salta de imagem em imagem, de afeto em afeto, sem jamais tocar um eixo. E o que antes era um caminho de iniciação simbólica se converte num zapping contínuo de estímulos. A memória arquetípica, que unia o indivíduo à totalidade, é substituída por um imaginário em constante mutação.

O resultado é um mundo saturado de referências e carente de sentido. O excesso de imagens não revela — oculta. As figuras já não remetem a realidades internas, mas a repertórios externos. O dragão já não é o guardião do limiar — é um ícone de marca. A cruz já não aponta para o sacrifício — é adorno gráfico. O labirinto, o fogo, a árvore, o mar — todos esvaziados de sua carga simbólica, tornaram-se signos intercambiáveis, moldáveis ao gosto de cada narrativa.

Essa fluidez mata o símbolo. Pois o símbolo exige resistência, exige forma que não cede à demanda. Ele fala não o que queremos ouvir, mas o que precisamos escutar. Ele não se adapta ao desejo — revela sua medida. Ao desconectar-se dos arquétipos, o imaginário perde essa função formativa. Ele já não conduz à maturação do espírito, mas ao inchaço do eu. Já não liga o homem ao mundo — isola-o dentro de suas próprias imagens.

É nesse cenário que se instala o caos linguístico da nova Babel: todos falam, todos expressam, todos significam — mas ninguém compreende. As palavras já não têm solo comum, os gestos já não remetem a uma história, os símbolos já não convocam. O mundo se torna um ruído de signos autônomos, colidindo sem cessar. O imaginário, desconectado do arquétipo, já não orienta: confunde.

A próxima etapa revelará o que brota dessa confusão — o culto da subjetividade como nova religião. Sem símbolo, sem arquétipo, sem linguagem comum, resta apenas a adoração do eu. E esse eu, agora elevado ao lugar do sagrado, torna-se medida de tudo — e peso de nada.

5 - A Nova Babel: Termos sem Referência.

O colapso do imaginário arquetípico e a substituição do símbolo por signos efêmeros desembocam numa consequência inevitável: o surgimento de uma nova Babel — não uma confusão de línguas externas, mas de sentidos internos. As palavras persistem, os discursos se multiplicam, as linguagens florescem em variedade — mas tudo se torna opaco. Os termos já não possuem chão, os significados já não apontam para nada fora de si mesmos. A linguagem, desconectada do real, perde sua função originária de revelação e torna-se ruído — e cada um, ao falar, fala para si.

Na Babel original, o castigo divino foi a perda da comunicação comum. Aqui, o colapso é interno: todos utilizam os mesmos termos — verdade, liberdade, amor, espírito, beleza, justiça — mas cada um os preenche com sentidos privados, afetivos, flutuantes. A palavra, que antes servia à comunhão com o real, agora serve à autoafirmação. Já não há escuta, porque já não há fundo comum. A linguagem se fecha sobre si, como espiral que gira, gira — e não toca mais nada.

O sujeito contemporâneo, cercado por signos que não apontam além de si mesmos, experimenta um tipo de mudez paradoxal: fala sem dizer, expressa sem comunicar, grita sem ser ouvido. A linguagem torna-se hiperativa e impotente. Prolifera discursos, mas não engendra entendimento. Cada discurso se torna território, cada palavra, trincheira. A semântica deixa de ser ponte e torna-se fronteira. E quando tudo pode significar qualquer coisa, nada significa coisa alguma.

Nesse regime, o símbolo não é apenas esquecido — é impedido. Pois para que ele opere, é necessário um chão comum, uma referência partilhada, uma realidade que anteceda a linguagem. Sem isso, o símbolo não consegue mais emergir. Ele se torna ininteligível, desconfortável, suspeito. Sua densidade contrasta com a leveza líquida da linguagem atual. Seu silêncio profundo ofende o ruído permanente da opinião.

A nova Babel é, assim, a etapa final da fragmentação: os indivíduos tornam-se ilhas de sentido, orbitando em bolhas linguísticas autorreferentes, alimentadas por algoritmos, afetos e impulsos momentâneos. A verdade deixa de ser buscada — é moldada. O bem deixa de ser universal — é negociável. O belo deixa de convocar — é clicável. A linguagem já não é via, mas arma. E a palavra, sem mistério, torna-se apenas mais um dado na luta por visibilidade.

Essa Babel não é ruína de torre — é torre de vidro, infinita e reflexiva, onde cada sujeito se vê e se escuta apenas a si mesmo. E ao tentar comunicar-se, projeta sobre o outro o mesmo ruído. O resultado não é apenas incompreensão — é isolamento. Mesmo cercado de vozes, o homem já não ouve ninguém. Mesmo rodeado de imagens, já não vê nada. Mesmo cercado de palavras, já não encontra o sentido.

Esse esgotamento da linguagem prepara o culto final da queda: quando, diante da ausência de símbolo, de arquétipo, de comunidade semântica, resta apenas uma coisa a ser adorada — o próprio sujeito. É o último refúgio, a última ilusão, o último altar: a subjetividade transformada em religião, e o eu elevado à condição de absoluto. É esse culto que será revelado no artigo seguinte.

6 - O Culto da Subjetividade como Nova Religião.

Após a derrocada do símbolo, a dissolução do arquétipo e a implosão semântica da linguagem, instala-se o vazio — mas um vazio que não permanece neutro. Ele exige preenchimento. A ausência do sagrado tradicional, a falência do mundo como revelação, a perda do horizonte comum de sentido — tudo isso culmina numa única possibilidade remanescente: a entronização do sujeito. O eu, agora desprovido de toda medida que o transcenda, é alçado ao trono que antes era reservado ao mistério. E assim se instaura o culto da subjetividade.

Este culto não é formal, nem precisa de templos — ele se expressa em cada instância onde o eu é tratado como fonte última de verdade, critério supremo do bem, e medida exclusiva da realidade. A interioridade, outrora santuário de escuta, torna-se centro de gravidade. O que importa já não é o que é, mas o que se sente. A experiência subjetiva substitui a evidência, a emoção sobrepõe-se ao juízo, e a autenticidade toma o lugar da verdade.

A religião da subjetividade não possui dogmas fixos — sua doutrina é o desejo, e sua liturgia é a expressão. Cada indivíduo se converte em profeta de si mesmo, sua identidade em revelação sagrada, sua sensibilidade em critério absoluto. O rito é a performance, a oração é o post, o templo é a própria imagem. O altar já não está no alto — está na câmera frontal. E a adoração não é dirigida a um Outro — mas ao reflexo.

Esse culto é, porém, silenciosamente violento. Porque, ao se desfazer de toda alteridade, destrói também a possibilidade da escuta, da correção, da entrega. Tudo que contraria o eu é tratado como opressão. Toda forma, como limitação. Todo símbolo, como ameaça. O sujeito, agora absoluto, torna-se intocável — e, portanto, inabitável. Pois ao negar toda transcendência, ele se encerra em si mesmo, e transforma sua liberdade em prisão.

A subjetividade, convertida em divindade, exige sacrifícios. Sacrifica-se a linguagem comum, sacrifica-se a memória, sacrifica-se o passado. Nada pode permanecer que o transcenda. A tradição é lida como opressão, o silêncio como omissão, a hierarquia como violência. Tudo deve ser remodelado segundo os afetos e desejos do eu. O mundo torna-se matéria plástica a ser moldada por estados internos — e os outros, instrumentos ou ameaças à soberania psíquica.

Nesse cenário, o símbolo não pode mais retornar. Ele depende de uma estrutura vertical, de uma escuta anterior, de uma forma que preceda o sujeito. Mas onde tudo parte da interioridade, o símbolo é visto como imposição externa. Sua densidade é intolerável. Sua profundidade, opressiva. O mistério, enfim, é recusado. Não por desconhecimento, mas por ressentimento. O sujeito já não suporta o que o excede.

Este é o ponto extremo da inversão cosmogônica: quando o homem, isolado na própria imagem, declara-se medida de todas as coisas — mas já não possui coisa alguma que o sustente. O eu absoluto é, na verdade, absolutamente vulnerável. Pois sem símbolo, sem linguagem comum, sem rito, sem arquétipo, tudo o que resta é a oscilação infinita do desejo.

A próxima e última etapa revelará a consumação dessa queda: quando o culto do eu implode, e tudo o que resta é o silêncio do real — não o silêncio do mistério, mas o da ausência. É o mundo onde o sagrado não está mais esquecido — está enterrado sob os escombros do eu. A morte do sentido, e a instauração do espelho cego.

7 - A Morte do Sentido: o Mundo como Espelho Cego.

O culto da subjetividade, ao proclamar o eu como fonte última de realidade, culmina numa consequência irreversível: o colapso da própria estrutura do sentido. Pois o sentido, para existir, requer transcendência. Ele precisa de um horizonte além do sujeito, de uma ordem anterior ao desejo, de uma linguagem comum que o preceda e o sustente. Quando tudo é devolvido ao eu, e o mundo é moldado unicamente pela interioridade, o sentido se implode. A realidade, já fragmentada, torna-se opaca. E o espelho, que por tanto tempo refletiu o rosto do sujeito, torna-se finalmente cego.

Neste ponto terminal da queda simbólica, não há mais símbolo, rito, palavra verdadeira, nem sequer imagem arquetípica. Tudo foi reduzido à expressão fugaz do desejo, ao ruído do eu multiplicado, ao labirinto de uma linguagem sem referencial. O mundo, antes habitado por presenças e estruturas que ligavam o visível ao invisível, torna-se apenas um plano de fundo — uma tela inerte sobre a qual o sujeito projeta suas aflições, suas vontades, suas imagens de si. Mas esse plano já não responde. Ele já não devolve nada.

O espelho, que por séculos permitia ao homem contemplar sua imagem como parte de uma ordem maior, como reflexo de uma vocação, como figura de um destino, torna-se agora superfície morta. O eu, ao buscar incessantemente a si mesmo, esvaziou-se. O que resta não é liberdade, mas dispersão; não é expressão, mas repetição; não é identidade, mas exaustão. O sujeito, agora absoluto, descobre-se nu. E o mundo, reduzido a sua imagem, revela-se estéril.

A morte do sentido não se dá com estrondo. Ela é silenciosa, difusa, cotidiana. Manifesta-se no tédio profundo diante da abundância de discursos. Na ansiedade gerada por escolhas infinitas e nenhuma vocação. No ressentimento contra toda forma, contra toda permanência, contra todo chamado que venha de fora. No uso da linguagem como máscara. Na arte como ruído. Na religião como espetáculo. Na política como identidade emocional. Tudo diz — mas nada convoca.

É neste cenário que a simbólica encontra seu ponto final. Não por ser superada, mas por ser esquecida. Não por perder sua verdade, mas por tornar-se intolerável para uma subjetividade que já não suporta limites. O símbolo, com sua verticalidade, é rejeitado por um mundo que só reconhece o plano. Sua profundidade é insuportável para uma alma educada no efêmero. Sua vocação de revelar torna-se suspeita para uma cultura que só admite fabricar.

O espelho cego não reflete o mundo — apenas repete o sujeito. E o sujeito, exausto de si, já não encontra mais o que buscar. Não há mais alto nem fundo. Apenas a planura interminável da autorreferência. Nenhum rito pode ser refeito, nenhuma palavra pode ser redita, nenhuma imagem pode ser restaurada sem uma ruptura radical com esse ciclo. O mundo não é mais interpretável — é apenas habitável como ruína.

Essa é a consumação da inversão cosmogônica: a extinção do símbolo no ponto exato em que o eu se absolutiza. A simbólica, que outrora estruturava o mundo como linguagem do ser, termina soterrada pela saturação do sujeito. E o homem, agora órfão de toda transcendência, contempla finalmente o que produziu — não um mundo novo, mas a ausência de mundo.

Resta o silêncio. Mas não o silêncio sagrado que antecede a palavra verdadeira. É outro: o silêncio mineral, inerte, do fim de toda escuta. A última palavra foi dita — e era apenas eco. Tudo o que poderia ser dito já foi dissolvido. O símbolo caiu. O espelho cega. E o mundo, enfim, se cala.

Conclusão — O Exílio do Sentido e a Espera pelo Silêncio Vertical.

A história aqui traçada não é apenas a descrição de uma decadência — é o mapa de um exílio. O símbolo, enquanto mediação entre o visível e o invisível, entre o homem e o real, entre o tempo e o eterno, foi paulatinamente destruído não por um ato de negação, mas por uma lenta substituição: por conceitos, depois por funções, mais tarde por imagens, até se tornar ruído. O símbolo não caiu de uma vez — ele foi sendo esquecido enquanto continuava a ser usado, até que seu uso se tornasse paródia e sua memória, incômoda.

Na base de tudo, não está o erro de uma doutrina, mas uma mutação do espírito. O sujeito moderno, desligado da escuta, da forma, da linguagem originária, não suporta mais ser convocado — quer apenas expressar. Não suporta mais o silêncio simbólico — quer visibilidade. O que se vê, ao fim desse percurso, não é um mundo libertado dos símbolos, mas um homem preso à própria imagem. O sujeito tornou-se surdo porque já não há o que ouvir: o mundo se calou sob o peso da autorreferência.

A cosmogonia foi invertida. O que antes descia do alto como revelação, agora é produzido de baixo como desejo. O que antes estruturava o mundo de forma ordenada e sacramental, agora flutua como linguagem privada e estética emocional. Tudo que era presença tornou-se performance. Tudo que era rito tornou-se espetáculo. Tudo que era palavra tornou-se opinião. A simbólica não desapareceu — foi profanada.

Mas há, talvez, um ponto final que é também um princípio. Pois quando o símbolo morre, e o sujeito implode sob o peso de si mesmo, resta ainda uma coisa: o vazio. Mas este vazio, ao contrário do que se pensa, não é apenas ruína — é espaço. Quando o ruído do eu cessar, quando a última máscara cair, talvez reste novamente o silêncio original. Não o silêncio da ausência, mas o da expectativa. Não o silêncio da indiferença, mas o do retorno.

O símbolo só pode renascer onde houver escuta. E a escuta só é possível quando o sujeito se reconhece não como centro, mas como receptáculo. Quando a palavra voltar a ser dom, e não ferramenta; quando a forma voltar a ser medida, e não invenção; quando o mundo for visto não como produto da mente, mas como revelação do ser — então o símbolo poderá reaparecer.

Esse retorno não será uma restauração cultural, nem uma imposição religiosa. Será um ato de humildade ontológica. Será a recuperação da capacidade de assombro. Será o reencontro com o silêncio vertical, aquele que antecede toda palavra verdadeira. Pois enquanto houver mundo, haverá símbolo. O problema nunca foi sua morte — foi o esquecimento da escuta.

E assim, o símbolo espera. Caído, sim — mas não morto. Enterrado, mas não apagado. Ele aguarda o fim do barulho. E no limiar do cansaço final, quando o sujeito já não suportar mais a leveza de si mesmo, talvez, num lampejo de silêncio, ele o escute outra vez. O símbolo não fala alto. Ele apenas reaparece — como uma forma antiga que nunca deixou de estar.



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