segunda-feira, 2 de junho de 2025

Entre Migalhas e Destinos: O Tempo, o Homem e o Silêncio do Fim.

 

Numa praça esquecida pelo próprio tempo, havia um velho. Sentado num banco gasto, ele lançava migalhas aos pombos, aos pardais, às criaturas invisíveis que só se mostram aos olhos dos que já não esperam mais nada. Seus olhos eram poços fundos onde não cabiam lágrimas nem esperanças — apenas a memória de tudo que já foi.

Chamavam-no de Tempo, mas ele mesmo já havia esquecido se esse nome lhe pertencia, ou se apenas lhe fora imposto, como se impõem aos rios seus leitos.

Enquanto observava os pássaros, murmurava palavras que ninguém ouvia — ou quase ninguém:

— O homem... — dizia — só caminha até onde o começo permite e até onde o fim tolera. Tudo além disso é ilusão. O princípio deu-lhe as regras; o fim, os limites. Entre um e outro, o homem não é nada.

Foi quando um vulto se moveu, saindo de trás de uma árvore retorcida. Sujo, com os cabelos desgrenhados e os olhos queimando como brasas que recusam apagar, um mendigo interrompeu o discurso do Tempo:

— Besteira! — gritou, cuspindo no chão. — Mentira velha! O homem não tem limites! Olha em volta, olha o que fizeram, o que constroem, o que destroem, o que reinventam! Quem disse que o começo dita as regras? Quem disse que o fim existe, se nós o dobramos todos os dias? O começo não é senhor de nada! O fim... o fim é quem teme a gente, porque somos nós que o adiamos, o burlamos, o matamos e depois fingimos que não o vemos!

O velho não se moveu. Apenas jogou mais uma migalha.

— Ah... — respondeu — pobre filho do esquecimento. Acredita mesmo que é senhor de algo porque ignora a mão que te pariu e o muro que te aguarda?

O mendigo se aproximou, desafiador:

— Pois eu te digo: o Começo... o Começo foi generoso demais. Deu ao homem o dom de trapacear o passado, de refazer o presente, e até de zombar do futuro. Deu a nós as cartas, os dados e até as mãos que os lançam. E o Fim... — olhou em volta, apertando os punhos — o Fim? O Fim quem escolhe somos nós. Ele não chega, não se impõe, ele se constrói.

O Tempo respirou fundo, fechou os olhos. O vento soprou, como sopra quando não o esperamos, carregando folhas secas, poeiras e lembranças.

Então sorriu. Não de alegria, mas daquele sorriso amargo dos que já viram o que os outros ainda não ousaram imaginar.

— Se é assim... — disse — então vamos ver. Vamos ver até onde vai essa dança dos homens, que acreditam decidir o que sequer compreendem.

E nesse instante, um terceiro personagem atravessou a cena — um garoto. Ninguém o percebeu de imediato. Ele chutava pedras, desenhava linhas invisíveis no chão, assobiava sem melodia. O garoto olhou os dois velhos — o Tempo e o Mendigo — e perguntou, como quem não carrega o peso de nenhuma resposta:

— E se vocês dois estiverem errados? E se nem o Começo, nem o Fim, nem o homem mandam em nada? E se tudo isso... for só jogo de sombra no fundo de uma caverna?

O silêncio que se fez não foi de espanto, nem de perplexidade. Foi o tipo de silêncio que só acontece quando a realidade, por alguns segundos, se dá conta de que talvez não exista.

O Tempo, então, levantou-se devagar. Sacudiu as migalhas das mãos, olhou o mendigo, olhou o garoto — e pela primeira vez em milênios, não respondeu. Caminhou. Sumiu na neblina.

O mendigo ficou. Sentou-se no banco. Pegou as migalhas que restaram e, pela primeira vez, começou ele mesmo a alimentar os pássaros.

O garoto? Ah... o garoto correu. Para onde, ninguém sabe. Talvez para o começo. Talvez para o fim. Ou quem sabe... para aquele lugar onde nem um, nem outro, ousam existir.

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