A Barbárie Interna — A Crise da Civilização segundo Ortega y Gasset e Mário Ferreira dos Santos.
Índice
Capítulo I – A Ruína do Espírito: Da Massa à Mentira Institucional.
Artigo 1: A Emergência do Homem-Massa e sua Consagração Social
Artigo 2: O Barbarismo Tecnocrático e a Corrupção das Cúpulas
Artigo 3: O Fim do Juízo: Relativismo, Irracionalismo e a Inversão dos Valores
Artigo 4: A Morte do Logos: entre a Rebelião e a Invasão
Capítulo II – A Inversão da Ordem: Da Autoridade à Deformação da Cultura.
Artigo 1: A Autoridade Silenciada: Quando o Superior se Submete ao Inferior
Artigo 2: Educação como Engenharia da Ignorância e a Destruição da Excelência
Artigo 3: A Técnica sem Alma e a Política como Espetáculo
Artigo 4: O Estado como Ente Bárbaro: Multidão Organizada contra a Verdade
Capítulo III – A Reconstrução pela Ordem: Logos, Hierarquia e Espírito.
Artigo 1: A Aristocracia do Espírito como Única Alternativa ao Caos
Artigo 2: Filosofia Perene e Metafísica como Fundamento Civilizacional
Artigo 3: O Dever das Elites: Pensar, Conduzir, Sacrificar
Artigo 4: Rumo a uma Nova Reconquista Espiritual: A Superação da Barbárie pela Verdade
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Capítulo I – A Ruína do Espírito.
Artigo 1 – A Emergência do Homem-Massa e sua Consagração Social.
A civilização moderna, embebida em sua própria vertigem, assiste à emergência de um tipo humano cuja presença massiva não se limita ao número, mas se impõe como norma: o homem-massa. Ortega y Gasset identifica nesse ente não um proletário ou burguês, mas uma estrutura de alma: o indivíduo que se exime do esforço de superação, repele a autoridade espiritual, e crê que sua mera existência o habilita a opinar, legislar, conduzir. Não se trata aqui de um diagnóstico sociológico comum, mas de uma patologia da civilização. O homem-massa não sabe o que não sabe, e justamente por isso se sente autorizado a tudo. Sua consciência é preenchida pelo imediatismo, pela ausência de hierarquia interior, pela repulsa à distinção. Ele não é contra os valores superiores porque os compreende e rejeita, mas porque é incapaz de concebê-los.
Esse novo tipo humano invade o espaço público e assume o centro da cultura, da política, da moral. A rebelião das massas não é um levante com tochas, mas uma ocupação silenciosa dos bastiões outrora reservados às aristocracias do espírito. É um processo de nivelamento em que tudo o que excede a vulgaridade média passa a ser visto como opressivo, autoritário, elitista. A excelência torna-se suspeita, o mérito uma afronta, a autoridade legítima, um resquício de tirania. Ortega percebe aqui um colapso interno das bases culturais: não é a barbárie dos invasores externos, mas a dissolução interna da civilização por seus próprios filhos.
É nesse ponto que Mário Ferreira dos Santos introduz sua análise devastadora: a barbárie já não é horizontal, mas vertical. Ela não brota apenas do seio das multidões ignorantes, mas se institui a partir das elites corrompidas. A invasão dos bárbaros se dá pelos altos escalões do pensamento, da política, da técnica. Os bárbaros modernos não são aqueles que desconhecem os fundamentos do saber, mas os que, conhecendo-os, os negam. Tornam-se professores, legisladores, cientistas, formadores de opinião, e de lá — com aparato técnico, linguagem sofisticada e legitimidade institucional — promovem a subversão dos princípios, a inversão dos valores, a supressão da lógica, a banalização do sagrado.
Ambos os autores convergem num ponto essencial: a crise não é material, nem política em sentido raso — ela é espiritual. O que se ergue sob a aparência de progresso é, na verdade, uma regressão oculta sob novos trajes. A massa triunfante, em Ortega, empurra a cultura para a trivialidade. A elite degenerada, em Mário, destrói a lógica e perverte o logos. De um lado, a multidão que usurpa o lugar das minorias criadoras. Do outro, os que deveriam guiar e educar, mas se tornam os agentes da destruição sistemática da verdade.
Essa simbiose entre ignorância ativa e traição intelectual configura o cenário da barbárie moderna. A rebelião das massas abre espaço; a invasão vertical consolida o domínio. A civilização, assim, desaba não pela violência das armas, mas pelo colapso do espírito, pela abdicação da razão, pela renúncia à ordem. O espírito humano, sem guia e sem freio, entrega-se ao delírio da autonomia absoluta, esquecendo que toda liberdade sem forma se torna escravidão ao caos. É esse o panorama sombrio que ambos os pensadores delineiam — e contra o qual conclamam uma reação que não é política nem econômica, mas ontológica: um retorno à verdade como fundamento do ser e da cultura.
Artigo 2 – O Barbarismo Tecnocrático e a Corrupção das Cúpulas.
Se em Ortega y Gasset a massa assume o centro sem saber o que fazer com o poder que usurpa, em Mário Ferreira dos Santos, o cenário se agrava: quem detém o saber, ao invés de proteger a verdade, a destrói. A barbárie torna-se, então, tecnocrática. Ela não veste farrapos, mas jalecos, ternos e togas. Não grita nas praças, mas escreve nos periódicos, fala nos parlamentos e ocupa as cátedras. A invasão vertical dos bárbaros é mais letal que qualquer revolta popular, porque utiliza os mecanismos internos da civilização — ciência, educação, arte, linguagem — para dissolver a própria ideia de civilização.
Essa elite pervertida não promove o caos de modo explícito. Ao contrário, apresenta-se como guardiã da razão, do progresso, da liberdade. No entanto, sua ação é corrosiva. É ela que recusa a metafísica como ultrapassada, que substitui a lógica pela retórica política, que transforma a ciência em instrumento de engenharia social, que converte o Estado em tutor de consciências. Em nome da neutralidade científica, elimina-se o bem e o mal; em nome da inclusão, elimina-se o mérito; em nome da autonomia, destrói-se a autoridade legítima. Mário denuncia, com precisão cirúrgica, essa operação silenciosa: o logos é substituído por uma paródia racionalista, que tem forma de pensamento, mas essência de destruição.
A crítica de Ortega à massificação ganha novo relevo quando lida à luz da análise de Mário. A massa triunfante, ao invadir os domínios da cultura e da política, precisa de legitimidade. E é justamente a elite tecnocrática corrompida que a fornece. Essa aliança — entre a ignorância satisfeita de si e o saber traidor — constitui a espinha dorsal da barbárie contemporânea. A rebelião das massas, que poderia ter sido contida por uma elite fiel à verdade e à ordem, é convertida em regime de governo por aqueles que deveriam ter sido o seu freio. Em vez de formar, instruir e elevar, essa elite rebaixa, simplifica e destrói. A filosofia vira ideologia; a arte, propaganda; a ciência, dogma de Estado.
Ortega previa que, ao se instalar no centro, a massa não toleraria oposição. E Mário mostra que os novos bárbaros, vindos de cima, preparam esse terreno: eliminam o pensamento divergente rotulando-o de arcaico, ultrapassado ou perigoso. Assim, cria-se uma monocultura de slogans, onde o que escapa ao consenso ideológico é censurado em nome da liberdade, e onde o dissenso racional é suprimido em nome da tolerância. Trata-se de um processo meticuloso: primeiro destrói-se o conteúdo, depois a forma. Por fim, resta apenas a aparência — e a barbárie ocupa o trono sob a máscara da civilização.
A gravidade desse processo está no fato de que ele não é percebido como regressão, mas celebrado como progresso. O homem-massa, elevado a cidadão-modelo, aplaude sua própria infantilização. A elite traidora, por sua vez, conserva sua aparência de autoridade enquanto renuncia à responsabilidade de guiar. A civilização se desfaz, portanto, pela colusão entre o delírio da base e a corrupção do cume. E essa decomposição, por ser silenciosa, institucionalizada e revestida de prestígio, é mais devastadora que qualquer invasão armada ou revolta popular. A barbárie não é mais o outro: ela somos nós, disfarçados de civilizados, operando com precisão cirúrgica a destruição de nossa própria casa.
Artigo 3 – O Fim do Juízo: Relativismo, Irracionalismo e a Inversão dos Valores.
A queda do espírito, denunciada por Ortega y Gasset e Mário Ferreira dos Santos, manifesta-se de modo agudo na ruína do juízo. Não apenas perde-se o hábito de julgar, mas o próprio critério de julgamento é diluído, relativizado ou ridicularizado. O homem-massa, em Ortega, recusa o esforço da razão e despreza o saber acumulado; já o novo bárbaro, para Mário, recusa a própria lógica e opera dentro de um irracionalismo institucionalizado. Ambos apontam para uma inversão do eixo da realidade: a verdade cede lugar à opinião, o bem à utilidade, o belo ao gosto, a autoridade ao consenso.
O relativismo se ergue como dogma absoluto. Já não há distinção entre o que é e o que parece ser; entre erro e verdade; entre virtude e vício. Tudo se equivale, tudo se justifica, tudo se “contextualiza”. O juízo — que implica discernimento, hierarquia e responsabilidade — é dissolvido em uma permissividade universal. A inteligência, sem critério, passa a se mover em círculos, ou, pior, se submete às emoções, às modas e às narrativas. O resultado é o triunfo da subjetividade sem forma, sem limite, sem orientação. O homem-massa celebra sua ignorância como autenticidade, enquanto os bárbaros verticais institucionalizam esse caos em nome da liberdade e da inovação.
Essa perversão não é neutra: ela inverte os valores, como um reflexo distorcido da realidade. O heroísmo é tido como opressão, o sacrifício como loucura, a ordem como autoritarismo, a verdade como intolerância. Ortega via com clareza essa atitude: o homem-massa não apenas desconhece a cultura superior, ele a despreza ativamente. Para ele, a distinção é ofensiva, a excelência é um ataque. O mundo deve ser moldado à sua medida estreita e confortável. Mário, por sua vez, aprofunda essa denúncia mostrando como essa inversão é operada metodicamente por intelectuais, jornalistas, cientistas e artistas, que, por meio da linguagem, da educação e da arte, reconfiguram o real para que se ajuste aos delírios da massa e aos interesses das estruturas de poder.
Nesse cenário, a lógica é descartada como opressiva, o pensamento vertical é acusado de “elitismo”, e qualquer tentativa de restaurar a ordem é vista como nostalgia reacionária. A barbárie se afirma com arrogância: não como ausência de forma, mas como forma invertida — um anti-mundo que mantém as estruturas da civilização, mas esvaziadas de seu conteúdo e revertidas contra seus próprios fundamentos. A ciência continua existindo, mas separada da verdade. A arte permanece, mas sem transcendência. A religião é tolerada, desde que destituída de dogmas. A educação subsiste, mas treinando operários mentais, não formando espíritos.
Essa nova configuração do mundo não é um erro acidental, mas uma destruição ordenada da ordem, como se a própria civilização tivesse entrado em necrose. E é precisamente essa a denúncia de ambos os pensadores: não se trata de um processo de decadência natural, mas de uma autodestruição organizada, promovida por aqueles que deveriam defender a cultura e guiar o espírito humano. O fim do juízo, nesse sentido, não é apenas um sintoma, mas a própria essência da barbárie contemporânea — pois sem juízo, não há distinção, e sem distinção, tudo é engolido pelo indiferenciado, pelo caos, pelo nada.
Artigo 4 – A Morte do Logos: entre a Rebelião e a Invasão.
A crise contemporânea, lida sob o prisma combinado de Ortega y Gasset e Mário Ferreira dos Santos, culmina num ponto decisivo: a morte do logos. Não a negação de uma lógica formal superficial, mas o colapso do princípio organizador do real — a perda do fundamento racional, ontológico e moral do mundo. Ortega identifica essa dissolução no plano social: o logos, outrora mediador entre o homem e o mundo, é substituído pela voz da massa, que já não busca compreender, mas impor. Mário, mais radical, aponta que essa morte do logos não é apenas ignorada: é promovida como virtude, celebrada como libertação, convertida em ideologia.
O logos não é apenas o raciocínio: é o princípio de inteligibilidade do ser. Desde Heráclito até os padres da Igreja, ele é visto como estrutura interna do cosmos e mediação entre o ser e o pensamento. Quando a massa se rebela, ela rompe com o logos na prática: não quer compreender o mundo, mas moldá-lo à sua ignorância satisfeita. Quando os bárbaros verticais invadem, eles rompem com o logos na teoria: desmontam suas bases metafísicas, lógicas e espirituais. Ambos, assim, o destroem: um por incapacidade, o outro por traição.
O resultado é uma sociedade sem centro, onde o real se torna fluido, manipulável, instável. O que antes era sustentado por fundamentos objetivos — verdade, justiça, bem, ser — agora flutua em discursos fabricados, onde o critério é a utilidade momentânea, o impacto emocional ou a conveniência política. O homem-massa celebra essa liquidez como liberdade; os bárbaros a impõem como método de controle. A perda do logos é, portanto, simultaneamente libertinagem e dominação: liberta o indivíduo de qualquer dever ontológico, mas o submete ao arbítrio das forças dominantes que moldam a realidade a seu bel-prazer.
O mundo sem logos é um mundo sem sentido, mas essa ausência não é reconhecida, e sim ocultada por uma inflação verbal. Multiplicam-se as palavras, os discursos, os manuais, os estatutos, os direitos — mas tudo sem raiz, sem centro, sem consistência. A linguagem, sem referência ao ser, torna-se instrumento de manipulação. A educação se torna doutrinação. A cultura, simulação. O debate, gritaria. A política, performance. O que se apresenta como pluralismo é, na prática, uma monocultura do indiferenciado, onde todas as formas são permitidas, exceto aquela que remete à verdade.
Ortega e Mário, cada um a seu modo, identificam esse colapso do logos como o momento decisivo da decadência moderna. O primeiro denuncia a irrupção do homem-massa como força histórica incontrolada, que arrasta o mundo ao seu nível mais raso. O segundo expõe o trabalho metódico das elites que, ao invés de deterem essa descida, a pavimentam, organizam e celebram. O ponto de convergência entre ambos é claro: a barbárie contemporânea não é ausência de forma, mas a instalação de uma anti-forma — a ocupação do trono da razão por seu simulacro ideológico.
Com a morte do logos, desaparece também a possibilidade de ordem legítima. O que resta é um mundo sem critério, onde os indivíduos são entregues à fragmentação interior, e a coletividade, ao delírio de um progresso vazio. A ruína do espírito atinge seu ápice quando já não se sabe o que se perdeu — e quando os que poderiam restaurar o logos se tornam seus coveiros. A barbárie, então, deixa de ser um risco futuro: ela já governa, fala bem, publica livros, frequenta congressos. E o silêncio do logos ecoa como o ruído ensurdecedor de um mundo que, tendo negado a verdade, não sabe mais o que é sequer perguntar.
Capítulo II – A Inversão da Ordem
Artigo 1 – A Autoridade Silenciada: Quando o Superior se Submete ao Inferior.
A marca da civilização, desde suas raízes mais arcaicas, é a presença de uma estrutura hierárquica do real: o superior conduz o inferior, o mais sábio orienta o menos sábio, o mais virtuoso forma o menos virtuoso. Essa ordem não é arbitrária nem opressiva: é a própria expressão do logos na esfera social, cultural e espiritual. Quando essa estrutura é rompida, o que se inaugura não é a liberdade, mas a confusão. Tanto Ortega quanto Mário denunciam precisamente essa ruptura — não como um erro tático ou político, mas como uma subversão ontológica do princípio da autoridade.
Para Ortega, o colapso da autoridade é consequência direta da ascensão do homem-massa. Ele, ao se colocar no centro do mundo, já não reconhece superioridade alguma fora de si. Vive de modo fechado em si mesmo, sem transcendência. Rejeita o passado, desconsidera a tradição e reduz todo saber a opinião. Sua voz exige a mesma consideração que a de um especialista; sua vontade deve pesar tanto quanto a de um estadista. A autoridade é vista como uma ofensa, e a obediência, como sinal de fraqueza. A civilização se democratiza não em sentido nobre, mas em sua forma mais rasteira: tudo se nivela por baixo.
Mário vai além: não é apenas que o inferior rejeita o superior — é que o superior aceita sua própria anulação. A autoridade, por medo, conveniência ou covardia, cede lugar à demagogia, à fraude, ao populismo. A função formadora do mestre, do sacerdote, do filósofo e do governante é abandonada em nome da aceitação passiva de demandas que não reconhecem mais critério. A elite não se limita a tolerar o igualitarismo destrutivo — ela o promove, o ensina, o sacramenta. A inversão da ordem torna-se política de Estado, projeto pedagógico, linguagem comum. O que deveria guiar, submete-se. O que deveria iluminar, apaga-se. E a escuridão que daí resulta é tratada como conquista civilizatória.
A verdadeira autoridade não impõe pela força, mas pela superioridade interior — de saber, de caráter, de presença. Mas numa cultura onde toda superioridade é automaticamente interpretada como dominação ilegítima, já não há espaço para o exercício da autoridade legítima. O pai que educa é um tirano. O professor que exige é um opressor. O sacerdote que anuncia a verdade é um fanático. Assim, o espaço público é esvaziado de toda presença vertical, e o que resta são líderes performáticos, especialistas sem alma e educadores que pedem desculpas por ensinar.
Esse cenário não é espontâneo: é o fruto de décadas de corrosão moral, filosófica e institucional. Ortega descreve os efeitos dessa inversão com lucidez trágica: a sociedade torna-se ingovernável, não por excesso de poder, mas por ausência de direção. Mário identifica os mecanismos desse processo: a falsificação da linguagem, o elogio do absurdo, o rebaixamento da filosofia, o abandono da lógica. Ambos convergem na constatação de que a barbárie se instala quando o superior se cala, e o inferior se impõe — não pela razão, mas pela quantidade, pela pressão emocional, pelo contágio coletivo.
A autoridade silenciada não é apenas um sintoma da crise: é o ponto de inflexão onde a civilização começa a ruir de dentro. Quando o homem superior recua, o caos avança. E o que parece igualdade ou inclusão, revela-se, no fim, a aniquilação de todo critério, de todo rumo, de toda esperança de elevação.
Artigo 2 – Educação como Engenharia da Ignorância e a Destruição da Excelência.
A educação, outrora caminho de ascensão do espírito e de formação do juízo, torna-se, na modernidade crítica analisada por Ortega y Gasset e Mário Ferreira dos Santos, um instrumento de nivelamento e, mais profundamente, um mecanismo programado de destruição da excelência. O que deveria ser uma ponte entre o homem comum e os valores superiores converte-se em um sistema de engenharia da ignorância organizada, onde o saber é substituído por opinião, o conteúdo por método, e a verdade por consenso.
Para Ortega, a educação foi o eixo fundamental da civilização europeia, na medida em que permitiu o surgimento de elites intelectuais, científicas e morais. Contudo, no mundo moderno, esse eixo é fraturado. A pedagogia se torna serva da massa: já não busca elevar, mas agradar. O estudante, em vez de ser conduzido à realidade e submetido a um rigor formativo, é tratado como cliente, sujeito de desejos, cujas vontades moldam o conteúdo e a forma do ensino. Em vez de cultura, há adestramento. Em vez de disciplina, complacência. O resultado é a geração de indivíduos cada vez mais ignorantes, mas cada vez mais confiantes em sua própria ignorância.
Mário Ferreira dos Santos enxerga esse fenômeno com ainda maior gravidade: para ele, a escola moderna é um dos principais vetores da invasão vertical dos bárbaros. Os currículos são reorganizados para eliminar toda referência à lógica, à filosofia tradicional, à ética clássica, à metafísica. O aluno é “formado” sem conhecer os fundamentos do saber — mas plenamente capacitado a repetir fórmulas ideológicas, slogans políticos e conceitos desconectados do real. A inteligência é atrofiada pela repetição mecânica; a memória, desprezada; a dúvida, exaltada como fim em si mesma. Tudo isso promovido por uma classe docente, muitas vezes, já colonizada por esse mesmo processo e alheia ao próprio papel.
Nesse panorama, a destruição da excelência não é um acidente: é uma política. A excelência — entendida como aquilo que transcende, exige esforço, estrutura e elevação — é percebida como ofensiva pela lógica igualitarista da modernidade. Formar um espírito superior não é mais visto como objetivo da educação, mas como sinal de elitismo, segregação ou “violência simbólica”. O saber se submete ao emocionalismo, ao pragmatismo e à militância. A escola, que deveria ser templo do logos, converte-se em laboratório da dissolução.
Essa deterioração da educação não se limita à escola: ela invade universidades, institutos, centros de pesquisa. A especialização cega substitui a visão total; o método sufoca o conteúdo; o tecnicismo mata o sentido. O homem formado nesse ambiente pode manipular fórmulas e operar máquinas, mas é incapaz de pensar o ser, de julgar o bem, de buscar a verdade. Ele é eficiente, mas sem alma; produtivo, mas sem direção. O próprio conceito de cultura superior é desconstruído, até restar apenas uma massa instruída na superfície, mas vazia por dentro.
Ortega já advertia: quando o homem-massa ocupa os centros de decisão cultural, a educação se torna reflexo de sua mediocridade. Mário mostra como essa mediocridade é institucionalizada, celebrada e reforçada pelos próprios agentes educacionais. O processo é completo: destrói-se o conteúdo, nega-se a forma, apaga-se a finalidade. O que resta é uma pedagogia que, sob o nome de formação, reproduz o vazio — e forma massas para servirem, não para pensarem.
A excelência, nessa configuração, não desaparece por acaso: ela é assassinada deliberadamente. Pois seu brilho acusa a escuridão, sua presença fere o igualitarismo, sua simples existência evidencia a decadência. E como os bárbaros modernos sabem disso, tratam de enterrá-la sob toneladas de relativismo, sentimentalismo e ruído. Com isso, a educação deixa de formar homens — e passa a fabricar peças para a máquina da barbárie.
Artigo 3 – A Técnica sem Alma e a Política como Espetáculo.
O colapso da ordem espiritual e a destruição dos fundamentos do saber não se restringem às esferas abstratas da cultura ou da filosofia. Seus efeitos penetram diretamente nos dois eixos operativos da civilização: a técnica e a política. Em Ortega y Gasset e Mário Ferreira dos Santos, encontramos uma crítica convergente ao destino moderno dessas duas dimensões: a técnica, divorciada da sabedoria; e a política, divorciada da verdade. Em ambos os casos, o que se observa é a mesma estrutura de perversão: o instrumento toma o lugar do fim, o meio torna-se absoluto, e a aparência ocupa o trono do ser.
Ortega observa que o homem-massa se aproveita de um mundo técnico que não compreende. Vive cercado de confortos, mecanismos, sistemas e tecnologias que herdou, mas cuja origem, desenvolvimento e sentido lhe são alheios. Ele não sabe como foram criados, tampouco se importa. O que importa é a funcionalidade, o uso imediato, o conforto. Essa postura leva à falência do espírito técnico no sentido originário — como desdobramento da razão humana aplicada à realidade. O que surge no lugar é o tecnicismo estéril, onde o fazer se emancipa do pensar, e o produzir dispensa o compreender.
Mário, por sua vez, mostra que essa autonomia da técnica, longe de ser neutra, torna-se instrumento de controle e dominação. A técnica sem alma é apropriada por estruturas ideológicas que a utilizam para modelar consciências, alterar valores, manipular massas. A ciência perde sua dimensão contemplativa e torna-se serva de agendas políticas ou comerciais. A tecnologia se converte em vetor de alienação. A racionalidade instrumental triunfa — mas é um triunfo vazio, porque separado da verdade e do bem. O resultado é um mundo eficiente e doente, veloz e desorientado, cheio de recursos mas vazio de sentido.
A política, nesse mesmo processo, sofre destino paralelo. Ortega denuncia a transformação do espaço político em palco para a massa: o debate cede lugar ao espetáculo, o governo à encenação. O político já não governa: ele atua. Deve ser agradável, maleável, visível. Deve agradar à massa, não conduzi-la. O critério de sua ação não é mais a justiça ou o bem comum, mas a aceitação pública. A política, como reflexo do homem-massa, abandona o logos e abraça o pathos — governa-se pelos afetos, pelas emoções, pelas imagens.
Mário denuncia o mesmo fenômeno com outra profundidade: a política torna-se o teatro da barbárie racionalizada. É por meio dela que se institucionaliza a inversão dos valores, que se impõem legislações contrárias à ordem natural, que se premia a ignorância e se criminaliza a virtude. O Estado se converte em organismo de engenharia psíquica e moral, onde a verdade é marginalizada e o poder se torna uma função da manipulação simbólica. As leis já não protegem o justo, mas regulam o comportamento conforme critérios ideológicos. Os líderes já não lideram: gerenciam. E os cidadãos já não participam: reagem passivamente a estímulos cuidadosamente programados.
Nesse cenário, a técnica e a política perdem sua função civilizatória. Tornam-se sistemas fechados, instrumentos de uma ordem invertida, meios de produção de um mundo que já não se orienta pelo ser, mas pela vontade de poder. Ortega e Mário, embora por caminhos distintos, revelam o mesmo diagnóstico: o maquinismo técnico e o espetáculo político são sintomas e operadores da barbárie moderna. A civilização, sem espírito, torna-se um cadáver funcional — ainda se move, ainda fala, ainda constrói, mas já não sabe por que existe nem para onde vai.
Artigo 4 – O Estado como Ente Bárbaro: Multidão Organizada contra a Verdade.
Quando a barbárie deixa de ser um estado de natureza e se transforma em mecanismo de poder, institucionalizado e protegido pelo aparato estatal, ela alcança sua maturação. O Estado moderno, que nasceu sob a promessa de racionalização do poder e proteção do bem comum, torna-se, nas análises de Ortega y Gasset e Mário Ferreira dos Santos, o maior agente da desordem organizada. Não se trata mais de erro de gestão ou desvio moral, mas de uma conversão estrutural do Estado em instrumento da irracionalidade, da homogeneização e da engenharia espiritual da massa.
Ortega vê no Estado moderno uma hipertrofia: ele cresce na medida em que o homem-massa se declara incapaz de conduzir a si mesmo, mas, ao mesmo tempo, recusa toda autoridade superior. Resultado: o Estado torna-se um substituto da responsabilidade pessoal, da religião, da moral e até da razão. Ele intervém em tudo, regula tudo, define tudo — não com sabedoria, mas com cálculo político. A massa deseja segurança, conforto e gratificação imediata, e o Estado assume a função de provedor absoluto, apagando a individualidade, a liberdade e a iniciativa. É a multidão organizada, não mais contra o caos, mas a serviço do caos sob a aparência de ordem.
Mário Ferreira dos Santos avança nesse diagnóstico e o radicaliza: o Estado moderno não é mais apenas um protetor deformado da massa — é o próprio bárbaro institucionalizado. É por meio dele que as doutrinas destrutivas se impõem, que o relativismo se torna política pública, que a lógica é banida da educação, que a linguagem é corrompida por decretos, que o pensamento é policiado por leis e normas. O Estado, longe de proteger a verdade, converte-se em máquina de propaganda, de dissolução e de aniquilação espiritual. Ele se torna o guardião da mentira organizada.
Essa transformação não ocorre de modo súbito. Primeiro, desconstroem-se as instituições espirituais (Igreja, filosofia, cultura clássica), depois elimina-se o ensino dos fundamentos (lógica, ética, metafísica), e por fim resta uma população atomizada, desorientada e dependente, pronta para ser moldada por qualquer força que se apresente como “moderna”, “científica” ou “inclusiva”. O Estado, vazio de verdade e repleto de técnicas, assume o controle total da vida — mas já não como expressão do logos, e sim como sua negação sistemática.
A convergência entre Ortega e Mário é completa aqui: ambos identificam no Estado moderno não apenas a falência da política, mas a institucionalização da barbárie. Em Ortega, é a massa que empurra o Estado para esse papel, exigindo proteção total sem contrapartida moral. Em Mário, é o topo que aceita — ou promove — essa transformação, traindo seu papel de guia e tornando-se cúmplice da ignorância. O resultado é um Leviatã sem alma: regulador, vigilante, invasivo, mas incapaz de produzir sentido, virtude ou grandeza.
Esse Estado bárbaro não precisa de tiranos explícitos: ele opera por burocracia, por normas, por sistemas. Ele não precisa de violência física: basta-lhe o controle da linguagem, a falsificação do bem, a domesticação do pensamento. A sua força está na sua invisibilidade, e seu perigo, na sua legitimidade. Ele não se impõe como opressor externo — ele se apresenta como amigo, como redentor, como protetor. Mas tudo que toca, rebaixa; tudo que organiza, desfigura; tudo que acolhe, destrói. A ordem que oferece é morta. O bem que promove é artificial. A verdade que tolera é condicionada.
Assim, o Estado deixa de ser um reflexo da ordem natural e se torna o centro da antiordem. A multidão organizada substitui o povo espiritual; a administração toma o lugar da autoridade; o consenso ideológico sepulta o juízo. Não há mais condução, mas simgerência. Não há mais finalidade, mas manutenção do funcionamento. O espírito, nesse sistema, é o inimigo principal — pois pensar, discernir, buscar o logos, é o que ameaça o domínio da máquina. E como ambos os autores alertam, quando o Estado se torna o maior inimigo da verdade, já não é possível chamá-lo de civilizado.
Capítulo III – A Reconstrução pela Ordem.
Artigo 1 – A Aristocracia do Espírito como Única Alternativa ao Caos.
Depois do diagnóstico rigoroso da ruína civilizacional — operada tanto pela rebelião da massa quanto pela traição das elites — resta apenas uma pergunta essencial: é possível restaurar a ordem? Ortega y Gasset e Mário Ferreira dos Santos não encerram seus pensamentos no pessimismo, embora não se iludam com soluções fáceis. Ambos indicam uma saída que exige não reforma de superfície, mas reconstrução a partir da origem: o espírito. E esse espírito, se quiser voltar a formar uma civilização verdadeira, precisa de uma aristocracia — não de sangue ou de poder econômico, mas de alma.
Para Ortega, a civilização é sempre obra de uma minoria. Não no sentido estatístico, mas qualitativo. Ele define essas minorias como os que exigem mais de si mesmos do que o mundo exige deles, que vivem sob tensão interior, que se disciplinam para servir à verdade e ao bem. São os poucos que pensam, criam, julgam, sustentam a herança do passado e a projetam ao futuro. Quando essa aristocracia do espírito perde o vigor, a massa sobe ao palco e tudo se deteriora. Por isso, a única chance de salvação está no ressurgimento dessa elite espiritual — não como classe dominante, mas como núcleo formador.
Mário Ferreira dos Santos, partindo de sua formação filosófica mais profunda, vai além. Para ele, essa elite não pode ser apenas culta: deve ser filósofica, lógica, metafísica, profundamente enraizada no ser. A verdadeira aristocracia não é aquela que detém poder, mas aquela que compreende o fundamento. Não se trata de liderar por estratégia, mas de conduzir por sabedoria. O filósofo, o teólogo, o educador, o verdadeiro cientista, o artista elevado — são esses os únicos capazes de oferecer resistência ao caos. Mas só o poderão fazer se estiverem ancorados no logos, no real, no eterno. A alma aristocrática é aquela que não se curva ao imediatismo, que não se submete ao aplauso, que não negocia com a mentira.
Ambos rejeitam a ideia moderna de que a salvação virá da técnica, da revolução política ou de reformas institucionais. O problema é espiritual — e só será superado pela regeneração interior de um número suficiente de homens capazes de ver e de agir a partir do ser. Não basta saber, é preciso amar a verdade. Não basta cultura, é preciso juízo. Não basta instrução, é preciso caráter. Essa aristocracia, portanto, é a restauração da figura do guia espiritual — aquele que educa, forma, orienta, julga e se sacrifica. Sem ela, tudo será repetição estéril do colapso.
Essa minoria não se impõe pela força, nem por decreto: ela se forma no silêncio, no sofrimento, na fidelidade ao que não passa. Ela não busca agradar, mas formar. Não negocia com o erro, mas combate-o. Não clama por poder, mas por verdade. Sua força está no testemunho, sua autoridade, na coerência entre o pensar, o dizer e o viver. E se hoje essa aristocracia é quase inexistente, é precisamente por isso que a barbárie triunfa. Mas sua ausência não elimina sua necessidade. Ao contrário: torna sua emergência absolutamente urgente.
É nela, e somente nela, que pode recomeçar a civilização. Pois só onde há espírito elevado, há critério. Onde há critério, há distinção. Onde há distinção, há hierarquia. Onde há hierarquia, há ordem. E onde há ordem, o logos pode, novamente, fazer morada entre os homens.
Artigo 2 – Filosofia Perene e Metafísica como Fundamento Civilizacional.
A reconstrução da ordem não pode ser realizada apenas com boa vontade ou ação pragmática. Ela exige uma fundação ontológica sólida, duradoura e imune à corrosão ideológica, algo que resista ao tempo, às modas e às manipulações do espírito humano. Tanto Ortega y Gasset quanto Mário Ferreira dos Santos, cada um a seu modo, apontam que a única base possível para uma verdadeira reconstrução da civilização é a retomada da filosofia perene — o núcleo imutável do pensamento sobre o ser, o logos, a verdade, a alma e o fim último da existência.
A filosofia perene não é um sistema fechado, mas um eixo axial. Ela não depende de época, cultura ou ideologia. Está presente em Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, Pascal, e mesmo em pensadores modernos que resistiram à dissolução do real em subjetivismo, como Schelling ou Voegelin. Trata-se da afirmação de que o ser é, o bem é, a verdade é, e que há uma ordem inteligível que pode e deve ser conhecida, vivida e transmitida. Negar isso, como faz o relativismo moderno, é renunciar não apenas à filosofia, mas à própria humanidade.
Ortega y Gasset, ao apontar o caos produzido pela massa e pela hipertrofia da técnica, sugere a necessidade de retorno à razão integral, à reflexão profunda, à cultura como exigência espiritual. Embora não use diretamente o termo “filosofia perene”, sua crítica ao racionalismo estreito e à cientificidade sem alma converge para essa ideia. Para ele, o homem só é verdadeiramente homem quando transcende a si mesmo pelo pensamento ordenado e pela consciência de sua inserção num todo que o ultrapassa. A civilização é, no fundo, o resultado de uma visão hierárquica e metafísica do mundo.
Mário Ferreira dos Santos, com maior rigor sistemático, não apenas defende a filosofia perene — ele a reconstrói. Sua obra monumental em lógica, ontologia, psicologia, política e ética é um esforço hercúleo para restaurar a arquitetura do espírito humano sobre fundamentos lógicos, objetivos e reais. Ele denuncia a filosofia moderna que abandonou o ser para se fechar no pensamento sobre o pensar. Ele rejeita o niilismo disfarçado de ciência. Ele combate a cultura da dúvida estéril e do irracionalismo existencialista. Para Mário, a reconstrução da civilização só é possível com base na realidade do ser e na inteligibilidade do mundo.
Sem metafísica, não há critério. Sem critério, não há ordem. Sem ordem, não há civilização. Eis o raciocínio. A técnica precisa de fim; a política precisa de bem; a educação precisa de verdade; e tudo isso só existe se o ser for admitido como real, e o logos como caminho legítimo de acesso ao ser. A filosofia perene não é uma alternativa entre outras: é o alicerce sem o qual toda edificação desaba, cedo ou tarde. Não é um luxo intelectual, mas uma exigência ontológica e civilizatória.
Essa retomada, porém, exige silêncio interior, purificação intelectual e coragem metafísica. Não se faz com slogans, nem com reformas educacionais pontuais. Ela exige o abandono da dúvida estéril, da ironia destrutiva e do desprezo pela verdade. Exige homens dispostos a reaprender a pensar desde o princípio — desde a existência, desde o ser, desde Deus. E aqui Mário e Ortega se unem: só onde houver espírito que pensa o real com reverência, amor e rigor, poderá haver restauração. De outro modo, a barbárie continuará a expandir-se sob disfarces cada vez mais sutis — e a ruína será definitiva.
Artigo 3 – O Dever das Elites: Pensar, Conduzir, Sacrificar.
A reconstituição de uma civilização em ruínas exige mais do que teorias e diagnósticos; ela impõe deveres, especialmente aos que ainda conservam alguma lucidez. Ortega y Gasset e Mário Ferreira dos Santos não falam ao público em geral, mas interpelam diretamente os poucos que ainda pensam, que ainda distinguem entre verdade e mentira, entre ser e aparência, entre ordem e caos. A esses poucos — a elite espiritual — recai o peso de uma tríplice obrigação: pensar, conduzir e sacrificar-se.
O primeiro dever é pensar. Mas pensar não como exercício estético ou dialético, e sim como ato de fidelidade ao real. Pensar como retorno ao ser. Pensar como combate contra a mentira organizada, contra os slogans, contra a lógica do ruído. A elite que deseja ser legítima precisa recuperar a responsabilidade de pensar com rigor, coragem e profundidade. Não se trata de acumular informações, mas de penetrar no sentido das coisas, de reencontrar os fundamentos, de ser guardiã do logos numa época que o despreza. Ortega via com preocupação que até os intelectuais haviam se transformado em técnicos ou ativistas. Mário denuncia com clareza: a maior parte da chamada inteligência contemporânea já não pensa — apenas repete.
Pensar, porém, não basta. O pensamento verdadeiro deve irradiar-se como direção. Aqui entra o segundo dever: conduzir. A elite que vê, compreende e discerne tem o dever de formar, orientar e educar. Não se trata de dominação, mas de serviço. Conduzir não é manipular a massa, mas elevar os outros à consciência, mesmo quando isso exige firmeza, severidade e incompreensão. Uma elite que não conduz, que não guia, que se esconde ou que busca apenas manter seus privilégios, é cúmplice da barbárie. A ausência de direção é o convite permanente ao caos. Ortega insiste: as minorias criadoras só justificam sua posição se assumem a tarefa de iluminar. Mário exige o mesmo: a liderança espiritual deve ser reconquistada com responsabilidade e entrega.
E, por fim, a elite deve sacrificar-se. Pois não há civilização sem sangue espiritual derramado. Quem deseja reconstruir a ordem deve estar disposto a pagar o preço. Significa renunciar à popularidade, suportar o isolamento, enfrentar o escárnio e, muitas vezes, agir sem qualquer esperança de reconhecimento. O verdadeiro aristocrata do espírito sabe que a fidelidade ao logos pode custar tudo, menos a verdade. Ele não está no mundo para triunfar segundo os critérios da época, mas para sustentar o que é digno — ainda que sozinho, ainda que vencido, ainda que condenado ao silêncio.
Essa exigência trágica é o ponto de maior profundidade na convergência entre Ortega e Mário. Ambos compreendem que não há salvação coletiva sem heroísmo interior. E que o heroísmo, nesta era, não se manifesta em gestos grandiosos, mas em atos discretos e firmes de resistência ao espírito do tempo. O educador que não cede ao relativismo, o juiz que respeita a verdade mesmo sob pressão, o artista que não se prostitui ao gosto da massa, o cientista que mantém a integridade, o sacerdote que não falsifica o evangelho — todos eles constituem os últimos guardiões da civilização.
E se há ainda alguma esperança, ela reside nesses poucos. Não por mérito pessoal, mas por missão. Pois só quem pensa a verdade pode guiá-la. E só quem a guia, pode encarná-la. E só quem a encarna, pode ser sua testemunha viva — mesmo entre ruínas.
Artigo 4 – Rumo a uma Nova Reconquista Espiritual: A Superação da Barbárie pela Verdade.
Se a barbárie contemporânea se consolidou não pelo assalto de forças externas, mas pela rendição interna do espírito, sua superação não poderá vir senão por uma reconquista — não de territórios, mas de almas. Ortega y Gasset e Mário Ferreira dos Santos, cada um segundo sua linguagem e tradição, indicam que a única revolução legítima a ser feita é a revolução espiritual do ser humano contra a mentira organizada, contra a vulgaridade sistêmica, contra o caos institucionalizado. É a verdade, e somente ela, que pode inverter o curso da decadência.
A verdade não é aqui entendida como conceito abstrato ou fórmula científica, mas como presença ontológica que exige fidelidade existencial. A verdade é o ser que se manifesta ao espírito quando este é purificado da ilusão, do interesse e da covardia. A reconquista espiritual é, por isso, um processo de ascese: é preciso que o homem reencontre o eixo vertical do real — a ordem que não se negocia, que não se relativiza, que não se adapta à massa nem ao poder. Ortega compreendia que, sem esse retorno à exigência do real, tudo se dissolvia no sentimentalismo coletivo. Mário é mais radical: sem a verdade, o espírito adoece, a cultura se corrompe e a civilização morre.
A nova reconquista não será conduzida por partidos, nem por reformas institucionais, nem por pactos sociais. Será conduzida por consciências despertas. A massa deve ser chamada, não adulada. O Estado deve ser limitado, não adorado. A técnica deve ser serva da verdade, não seu substituto. Para isso, é necessário um novo tipo humano: aquele que, mesmo esmagado pela estrutura do mundo moderno, recusa-se a trair o logos. É o homem que crê no ser, que ama a ordem, que sustenta a distinção entre o justo e o injusto, entre o alto e o baixo, entre o bem e o mal.
Essa reconquista não poderá ser feita por violência — pois ela é, antes de tudo, interior. Não se combate a barbárie moderna com métodos bárbaros. Não se restaura o espírito com ressentimento ou vingança. O combate verdadeiro se dá no plano do símbolo, da linguagem, da forma, da arte, da filosofia, da oração. Cada gesto verdadeiro, cada palavra justa, cada ideia clara, cada ato de firmeza espiritual é um golpe desferido contra o império da confusão. E mesmo que o mundo não mude imediatamente, a presença do justo basta para justificar o mundo.
Ortega chamava os homens superiores à responsabilidade, pois sabia que a civilização é sempre obra de poucos. Mário exigia dos pensadores não apenas lucidez, mas coerência, firmeza e disposição para o martírio espiritual. A reconquista só se inicia quando esses homens decidem viver como se a verdade fosse mais real que o mundo — e mais valiosa que a própria vida. Só então o logos voltará a circular entre os homens, não como sistema, mas como presença viva. E quando isso acontecer — mesmo que em pequena escala, mesmo que lentamente — a barbárie começará a recuar.
Pois não há escuridão que resista à luz que se mantém firme. E não há mentira que dure onde a verdade se ergue — mesmo que seja só em silêncio, mesmo que seja só por um.
Conclusão – A Barbárie Total: A Civilização Autoconsumida.
A sociedade atual é a própria consumação da barbárie descrita por Ortega y Gasset e Mário Ferreira dos Santos. Já não se trata apenas da rebelião da massa ou da invasão das cúpulas — o que vemos agora é a fusão completa de ambas em um sistema fechado, totalitário, sorridente, funcional e absolutamente decomposto. O homem-massa triunfou, e o fez sob o aplauso da elite que deveria contê-lo. A técnica substituiu o pensamento, a política tornou-se espetáculo histérico, o Estado converteu-se em tutor emocional da infantilização coletiva, e a verdade, outrora centro da cultura, foi expulsa como intrusa indesejada.
Vivemos numa sociedade onde o falso é normal, o vulgar é premiado e o superior é ridicularizado. A distinção desapareceu. O feio é celebrado como arte; o grotesco, como autenticidade; o irracional, como sensibilidade; o desordenado, como liberdade. A ignorância é ensinada como direito, e o erro como perspectiva. A escola já não educa, apenas forma massa dócil e mecanizada. A universidade já não pensa, apenas reproduz ideologias. A política já não governa, apenas se exibe em ciclos de indignação vazia. A ciência tornou-se catecismo de verdades mutáveis, e o povo — essa sombra do homem — contenta-se em consumir o que lhe oferecem, desde que entretenha, anestesie e não exija nada.
É a miséria completa. Não material — pois há conforto, tecnologia, alimentação e conectividade —, mas espiritual, intelectual e moral. É a miséria da alma que já não busca nada acima de si mesma. A miséria de uma civilização que já não crê no que a fundou. Que já não se volta ao alto, nem ao eterno, nem ao real, mas apenas ao agora, ao útil, ao imediato. É a civilização que, tendo renegado sua fonte, transformou-se em máquina de autodestruição automatizada. Um sistema que se alimenta da própria decomposição e a celebra como progresso.
A análise de Ortega mostrou como a ascensão da massa inverteu a estrutura da autoridade e dissolveu a cultura superior. Mário revelou como a elite intelectual tornou-se cúmplice ativa da destruição do espírito, usando a linguagem, a lógica e a filosofia para minar todo resquício de verdade objetiva. Ambos anteciparam com precisão o presente estado de coisas: uma civilização onde os bárbaros não estão às portas — estão nas redações, nos parlamentos, nas universidades, nos púlpitos, nas famílias, nos algoritmos.
E o que resta? Resta o mesmo que sempre restou em tempos de colapso: o espírito. Mas não o espírito diluído da nova era, nem o vago idealismo progressista. Resta o espírito real, encarnado em homens que, mesmo cercados pela mentira, ainda se recusam a dobrar o joelho. Homens que ainda buscam a verdade, mesmo no escuro. Que ainda julgam com critério. Que ainda reconhecem a ordem do ser e a superioridade do logos. A esses cabe não mudar o mundo — mas sustentar a verdade até que a mentira morra por exaustão.
Essa não é uma esperança otimista. É uma esperança trágica, aristocrática e espiritual. Exige renúncia, silêncio, paciência e sacrifício. Mas é a única digna. Pois quando tudo parece dominado, um só homem verdadeiro basta para manter acesa a chama da civilização. E essa chama, embora enfraquecida, ainda que esquecida, ainda que humilhada — permanece.
E enquanto ela permanecer, a barbárie ainda não venceu.
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