segunda-feira, 9 de junho de 2025

A Tradição como Unidade do Saber - Antônio Freixo.

 

A ideia de uma ciência que abarque toda a Natureza visível, suas relações e interações, não é nova — é, na verdade, demasiadamente antiga. Todavia, tal busca jamais deixou de permear a imaginação dos homens que, munidos apenas do intelecto, lançaram-se na procura daquilo que mais tarde veio a ser conhecido como Arché. Esse Arché, essa razão primordial, impulsionou o entendimento humano acerca do que o cerca, sendo buscado inicialmente nos elementos, até que, com o tempo, seu eixo foi redirecionado para o Ser.

Foi primeiro com Parmênides, depois com toda uma linha metafísica do Ser, que o homem passou a entender a premissa fundante da realidade: todo ente se origina na realidade de sua manifestação direta — ele é o que é. Essa ideia não pode ser tomada como nova, se formos sinceros. Na Torá hebraica, ela já aparece na sarça ardente, quando Deus fala com Moisés: 'Eu serei o que serei'. Dito em outras palavras, o que Parmênides viu — e outros também — foi a manifestação da vontade divina de que se conhecesse o seu Nome.

Essa ideia — a de uma tradição perene já presente nos primórdios do pensamento — não é nova; vem sendo defendida por muitos ao longo da História. Vemos uma síntese dessa concepção na conversão do platonismo e do aristotelismo por parte de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Ambos refinaram esses sistemas, dando-lhes um caráter estritamente católico, ao mesmo tempo em que permitiram ao catolicismo uma abordagem rigorosamente filosófica.

Portanto, abordar qualquer linha de pensamento que se pretenda detentora do domínio do saber exige, antes, compreender que esse saber pode ter suas raízes numa sabedoria que atravessa a história — e que, nascida numa manjedoura, se consumou.

(Jardel Almeida)



Capítulo I — A Ideia de um Conhecimento Perenemente Preservado.

  1. Artigo I — A Noção de Verdade como Constância: Fundamentos Arcaicos do Saber
  2. Artigo II — A Transmissão do Conhecimento na Tradição Antiga: Egito, Israel e Grécia
  3. Artigo III — A Unidade Intelectual do Mundo Medieval: Tradição, Filosofia e Revelação
  4. Artigo IV — A Persistência do Uno na Modernidade: Ecos da Sabedoria Antiga em Tempos de Ruptura
  5. Artigo V — O Conhecimento como Herança: A Sobrevivência da Tradição no Pensamento Contemporâneo

Capítulo II — Da Unidade à Tradição: A Comprovação de um Saber Sempre Presente.

  1. Artigo I — Arquitetura do Intelecto: O Fio de Ouro da Unidade na Diversidade
  2. Artigo II — Sabedoria e Revelação: O Elo entre Filosofia e Fé como Fundamento da Tradição
  3. Artigo III — A Tradição como Forma Viva do Conhecimento: Estrutura e Continuidade
  4. Artigo IV — A Tradição Contra o Tempo: Permanência e Resistência da Verdade no Mundo Fragmentado
  5. Artigo V — Conclusão: A Tradição como Expressão Suprema da Unidade do Saber

 

Capítulo I — A Ideia de um Conhecimento Perenemente Preservado.

Artigo I — A Noção de Verdade como Constância: Fundamentos Arcaicos do Saber.

Desde os primeiros registros do pensamento humano, a busca pela verdade não se apresentou como um mero esforço de acúmulo de dados ou constatações empíricas, mas como uma procura por algo que permanece, que resiste às variações do tempo, da cultura e da linguagem. A verdade, na concepção originária, não era tomada como algo mutável ou adaptável às circunstâncias históricas; ela era, antes, aquilo que se mantém. É por isso que, em distintas civilizações arcaicas, o saber era sempre associado ao eterno, ao que não muda, ao que funda. Entre os egípcios, a Maat — princípio de ordem, justiça e verdade — estruturava não só o cosmos, mas também o conhecimento legítimo. No pensamento védico, a ṛta cumpria função semelhante, expressando a ordem universal à qual o saber devia submeter-se. Já entre os hebreus, a verdade era associada à fidelidade de Deus à sua própria palavra, fazendo da revelação um eixo de constância, e não de adaptação. O mesmo se vê no início da filosofia grega: Parmênides afirma, com radicalidade, que o ser é e o não-ser não é — e que a via da verdade se opõe frontalmente à via da opinião.

Essa concepção arcaica de saber, estruturada sobre a permanência, não via valor em um conhecimento volátil, moldado pelas flutuações humanas. Pelo contrário, buscava-se um fundamento, uma raiz imóvel na qual o conhecimento pudesse repousar com segurança. Esse impulso à constância revela que, desde muito cedo, o homem intuiu que saber de verdade era tocar algo que o ultrapassasse, algo cuja validade não dependesse das contingências. Assim, mesmo antes da sistematização lógica ou científica do saber, já se encontrava nele uma tensão fundamental entre o transitório e o permanente, entre o que se vê e o que sustenta o visível. É desse embate que nasce o conceito de verdade como constância — não como repetição, mas como fidelidade a uma estrutura invisível que subjaz a toda manifestação do real. E é sobre esse alicerce silencioso que a tradição do saber se ergueu.

Artigo II — A Transmissão do Conhecimento na Tradição Antiga: Egito, Israel e Grécia.

Se no primeiro momento a verdade foi intuída como aquilo que permanece, no segundo passo de nossa análise torna-se inevitável compreender como essa verdade foi transmitida, isto é, como o saber — enquanto portador dessa constância — sobreviveu às gerações. A permanência da verdade, por si só, exigiria um veículo, um corpo através do qual pudesse atravessar os séculos sem se diluir nas circunstâncias. Esse corpo foi a tradição. E nela encontramos, nos povos antigos, não apenas um repositório de informações, mas uma verdadeira via iniciática do conhecimento.

No Egito, o saber não era público nem acessível indiscriminadamente; era reservado aos sacerdotes, aos escribas e aos iniciados nos mistérios, e sempre envolvido por símbolos e liturgias. A Maat, enquanto verdade e ordem, não era aprendida como um conceito abstrato, mas encarnada nos ritos, nas fórmulas, nas inscrições e na própria arquitetura dos templos. No mundo hebraico, por sua vez, o saber era transmitido oralmente, preservado pela autoridade profética e pelos escritos sagrados. A Torá não era apenas um conjunto de leis, mas um ensinamento vivo, cuja transmissão implicava não apenas repetição, mas compreensão espiritual. O que se mantinha não era só a letra, mas o espírito — e é nesse ponto que a tradição mostra sua força: manter o núcleo inalterado mesmo diante da mudança exterior.

Já na Grécia, apesar da ruptura com os modelos míticos, a tradição filosófica manteve o espírito da transmissão como base do saber. Sócrates não escreveu, mas formou discípulos. Platão, ao fundar a Academia, institui uma linhagem. Aristóteles, ao sistematizar o saber, cria não um ponto de chegada, mas uma base transmissível. A verdade, mesmo quando debatida, disputada e reformulada, ainda era entendida como algo que se recebe e se entrega. E isso indica que o conhecimento perene não se sustenta apenas por sua natureza imutável, mas também pela forma com que é comunicado — uma forma que conserva, mesmo enquanto se adapta.

A transmissão, portanto, não é mero ato de repetição. É, antes, uma dinâmica sagrada, na qual o conteúdo essencial é passado de um espírito a outro, de um mestre a um discípulo, exigindo fidelidade e discernimento. Assim, da constância do primeiro artigo chegamos à mediação do segundo: a tradição é o fio condutor que liga o eterno ao temporal, o invisível ao histórico. E é esse fio que, mantido vivo em diferentes culturas, nos permite falar de um único saber sob múltiplas formas — unidade que será investigada adiante.

Artigo III — A Unidade Intelectual do Mundo Medieval: Tradição, Filosofia e Revelação.

A tradição, como fio condutor do saber perene, atinge no medievo sua forma mais orgânica e articulada. O que antes aparecia de modo fragmentado — como em Egito, Israel e Grécia — agora se entrelaça numa síntese formal entre razão e fé, entre filosofia e revelação. O mundo medieval não apenas herda esse saber, mas o organiza e o submete a uma estrutura teológica e metafísica que o eleva à condição de sistema. Essa elevação, no entanto, não dilui a tradição em rigidez doutrinária, mas a conserva como uma arquitetura viva, onde cada elemento serve ao todo sem se dissolver em uniformidade.

A unidade que surge nesse período é intelectual, mas não exclusivamente racional. Trata-se de uma inteligência aberta ao mistério, em que a luz natural do intelecto é colocada a serviço da luz sobrenatural da revelação. Santo Agostinho, ao assimilar o platonismo, reconduz o ideal de verdade ao seu princípio último: Deus como o Ser e a Verdade eterna. Já São Tomás de Aquino, ao sistematizar Aristóteles dentro do quadro cristão, dá ao saber um corpo lógico que não nega o mistério, mas o ordena segundo as hierarquias do real. O ordo medieval não é só social ou político — é também ontológico. Cada saber ocupa um lugar em função de sua proximidade com a verdade última.

Nesse contexto, a tradição não é vista como um obstáculo ao progresso do pensamento, mas como sua garantia. É ela que assegura a continuidade, que evita desvios e rupturas nocivas. Por isso, a autoridade dos antigos — dos Padres, dos profetas, dos filósofos — não é questionada de modo arbitrário, mas considerada como o solo firme onde o novo pode brotar sem se perder. A fidelidade ao passado não impede a criação, mas a orienta. E essa orientação garante que o saber não se dissolva em opiniões, mas permaneça voltado ao que é, ao que foi e ao que será.

Assim, o elo com os artigos anteriores se reforça: a constância da verdade (Artigo I) e sua transmissão por meio da tradição (Artigo II) encontram no medievo sua convergência prática. A unidade do saber não é mais apenas intuída ou pressentida — ela é construída, defendida, cultivada como uma catedral do espírito. É dentro dessa estrutura que se moldará o confronto com a modernidade, tema que será abordado no artigo seguinte.

Artigo IV — A Persistência do Uno na Modernidade: Ecos da Sabedoria Antiga em Tempos de Ruptura.

A transição para a modernidade é marcada, à primeira vista, por um afastamento deliberado da tradição. O projeto moderno, impulsionado pela confiança no método, na razão autônoma e na experimentação empírica, parece rejeitar o saber herdado em nome do saber produzido. Entretanto, mesmo sob a aparência de ruptura, o impulso pela unidade do conhecimento permanece. A ideia de uma verdade universal, de um princípio que organize e explique o real, continua presente — embora deslocada para outras formas e linguagens. O que era Deus, Logos, Arché ou Ser, torna-se Razão, Natureza, Lei ou Sistema.

Descartes, ao fundar o cogito, não nega o fundamento, mas apenas o transfere. O sujeito pensante torna-se o novo ponto de partida, e ainda que toda certeza externa seja posta em dúvida, a busca pela certeza absoluta permanece como herança direta do ideal tradicional de um saber sólido. Leibniz, ao propor a harmonia preestabelecida, retoma o antigo princípio da ordem inteligível do mundo, ainda que sob uma nova roupagem metafísica. Kant, mesmo ao delimitar os limites do conhecimento humano, reafirma a necessidade de um solo transcendente — agora no reino das categorias e da razão pura.

A ciência moderna, apesar de seu método indutivo e fragmentário, não abandonou a pretensão à totalidade. As grandes sínteses de Newton, Maxwell, Darwin e Einstein são tentativas explícitas de abarcar o todo do real sob uma chave unitária. Mesmo as reações contra essas totalizações — como as de Nietzsche ou os ceticismos pós-modernos — denunciam, pela negação, a força persistente da ideia que buscam desmontar: a de um saber ordenado, transmissível e perene.

A modernidade, portanto, longe de romper com o espírito tradicional, apenas reconfigura sua expressão. O elo com os artigos anteriores se mantém: a verdade (Artigo I), a transmissão (Artigo II) e a síntese medieval (Artigo III) encontram, na modernidade, um campo de tensão e transformação. A tradição não é abolida, mas escondida sob novas formas. O que muda não é o desejo pela unidade, mas os meios com que se tenta alcançá-la — o que nos prepara para o artigo final deste capítulo, onde será abordado como, apesar de todas as mudanças, a tradição permaneceu viva até nossos dias.

Artigo V — O Conhecimento como Herança: A Sobrevivência da Tradição no Pensamento Contemporâneo.

Chegando ao limiar da contemporaneidade, torna-se evidente que a ideia de um saber perene, transmitido e sustentado por uma estrutura de unidade, longe de desaparecer, sobrevive — embora muitas vezes oculta sob camadas de linguagem desconexa e fragmentação metodológica. Do primeiro artigo a este ponto, percorremos a trilha da constância da verdade como ponto de partida, sua transmissão pela tradição, sua estruturação na síntese medieval e sua tensão na modernidade. Agora, resta compreender de que modo, mesmo sob o peso da fragmentação contemporânea, a tradição continua a pulsar como herança viva.

O século XX trouxe uma intensificação da ruptura. A ascensão das ciências especializadas, a multiplicidade das abordagens filosóficas e o ceticismo generalizado em relação às metanarrativas pareceram decretar o fim da unidade do saber. No entanto, mesmo nesse contexto, vozes se ergueram apontando para a permanência de uma sabedoria mais funda. Autores como René Guénon, Frithjof Schuon e outros da chamada escola tradicionalista, por exemplo, recolocaram em pauta a ideia de uma philosophia perennis, não como retorno nostálgico, mas como chave interpretativa da realidade. Em outro registro, o próprio retorno da metafísica em setores da filosofia analítica, ou a revalorização do símbolo e do mito nas ciências humanas, mostram que a tradição não foi vencida — apenas soterrada por discursos mais ruidosos.

Na teologia, na estética, na hermenêutica, e até mesmo em parte da física teórica, há tentativas de reencontro com uma totalidade perdida. O que as unifica, apesar das divergências de método e linguagem, é o reconhecimento de que o saber não pode prescindir de um fundamento. Que a multiplicidade sem eixo conduz à confusão, e que o conhecimento, sem origem e sem fim, torna-se apenas informação dispersa. Assim, mesmo na diversidade contemporânea, a estrutura da tradição ressurge como herança — talvez silenciosa, mas não extinta.

Esse fio que atravessa as eras, embora esgarçado em alguns pontos, mantém sua tessitura essencial. A constância da verdade, a transmissão pela tradição, a síntese medieval e a tensão moderna convergem, por fim, numa constatação: o saber verdadeiro, mesmo quando negado, continua a se manifestar. E é com esse reconhecimento que se abre o caminho para o próximo capítulo, onde deixaremos de lado a história da ideia para demonstrar, com rigor, que ela não apenas sobreviveu — mas permaneceu íntegra. A tradição, enfim, será vista como a prova da unidade real e contínua do saber ao longo dos tempos.

Capítulo II — Da Unidade à Tradição: A Comprovação de um Saber Sempre Presente.

Artigo I — Arquitetura do Intelecto: O Fio de Ouro da Unidade na Diversidade

Ao ingressar no segundo capítulo, não mais partimos de uma hipótese, mas de uma constatação: a unidade do saber, longe de ser uma construção imaginária ou um ideal abstrato, manifesta-se concretamente ao longo da história como estrutura viva. A tradição não é mera repetição do antigo, mas a expressão contínua de um mesmo núcleo de verdade, que se adapta sem trair-se, que se expande sem romper-se. Este núcleo, invariável em sua essência, mostra que todo verdadeiro conhecimento participa de uma única arquitetura do intelecto, uma só linha de sentido que atravessa e unifica o múltiplo.

É essa arquitetura que permite que diferentes sistemas, povos e épocas, mesmo sem contato direto, formulem intuições próximas ou até idênticas acerca da realidade. A ideia do Ser como fundamento, o reconhecimento de uma ordem invisível, a percepção de que o saber autêntico implica retidão interior — esses elementos aparecem tanto na Grécia de Parmênides quanto nos Vedas, na Lei mosaica quanto na filosofia cristã medieval. Essa recorrência não pode ser explicada apenas por paralelismos históricos ou coincidências culturais. O que se evidencia é que há algo de anterior à diversidade das formas: uma verdade comum, acessível ao espírito que se disciplina, que se abre, que busca.

Essa verdade, contudo, não se manifesta de modo bruto. Ela exige forma, linguagem, estrutura — e é aí que a tradição entra como mediadora. A tradição é o fio de ouro que costura os tempos e mantém os fragmentos ligados ao todo. Mesmo onde há aparente ruptura, uma análise mais atenta revela a permanência de traços essenciais. O arquétipo, o símbolo, o rito, o princípio — tudo isso compõe a gramática profunda que sustenta o edifício do saber. O intelecto humano, em sua forma mais alta, não cria essas estruturas: ele as reconhece. E ao reconhecê-las, revela que o saber não é uma construção da subjetividade, mas uma resposta a algo que o precede.

Desse modo, se no primeiro capítulo demonstramos historicamente a persistência de um conhecimento perene, aqui passamos a mostrar que tal persistência não é fruto do acaso, mas expressão de uma unidade objetiva, real, que age silenciosamente como eixo de toda construção intelectual verdadeira. Esse será o ponto de ancoragem dos artigos seguintes, nos quais examinaremos como essa unidade se articula com a revelação, com a forma concreta da tradição e com sua resistência ao tempo.

Artigo II — Sabedoria e Revelação: O Elo entre Filosofia e Fé como Fundamento da Tradição

Se no artigo anterior foi demonstrado que o intelecto humano, ao longo dos séculos, reconhece uma estrutura comum que sustenta todo saber autêntico, cabe agora abordar o modo como essa estrutura não apenas se manifesta, mas se oferece. E é nesse ponto que a revelação entra como elemento decisivo. O conhecimento perene não é apenas fruto de dedução filosófica, mas também dom — algo que se dá, que se entrega ao homem desde fora, mas que nele encontra eco. É essa interseção entre o que se busca e o que se recebe que constitui o núcleo vivo da tradição: a convergência entre a sabedoria natural e a revelação sobrenatural.

A filosofia, em seu esforço racional, chega a tocar os contornos do real — identifica princípios, categorias, formas — mas não pode, por si, gerar o fundamento. Já a revelação, ao se dar, ilumina esses contornos e os eleva, não por destruição, mas por cumprimento. É o caso, por exemplo, da relação entre Aristóteles e Tomás de Aquino: a estrutura lógica e metafísica do primeiro é recebida e elevada pelo segundo à luz da fé. A razão não é descartada, mas assumida por algo maior. E é nessa elevação que se revela o caráter integrador da tradição: ela não é mera conservação do pensamento filosófico, mas seu cumprimento à luz do que se revela.

Esse ponto mostra a inseparabilidade entre verdade filosófica e verdade teológica na formação da tradição ocidental — e por extensão, na constituição do próprio saber perene. A tradição não surge da razão isolada, mas da harmonia entre a razão e a escuta. Ouvir e compreender, receber e ordenar — esses são os dois movimentos fundamentais da inteligência diante da verdade. Quando um é negado, o saber se deforma: ou se torna fideísmo cego, ou racionalismo árido. Mas quando ambos operam em conjunto, emerge uma forma de conhecimento que participa da totalidade: ao mesmo tempo humana e divina, racional e revelada, histórica e eterna.

Portanto, o elo com o artigo anterior se torna claro: a arquitetura do intelecto só se realiza plenamente quando aberta à revelação. E é esta abertura que funda a tradição como espaço onde a verdade não apenas é pensada, mas também acolhida. Isso nos conduz naturalmente ao próximo artigo, no qual será analisada a tradição não mais como conceito ou herança abstrata, mas como forma viva, que atua no tempo e modela o real.

Artigo III — A Tradição como Forma Viva do Conhecimento: Estrutura e Continuidade

Compreendida como a síntese entre o exercício da razão e a abertura à revelação, a tradição assume agora sua função mais decisiva: a de forma viva do conhecimento. Não se trata de um depósito de doutrinas ou de uma repetição mecânica do passado, mas de uma forma dinâmica, orgânica, em que a verdade se transmite sem perder sua identidade, adaptando-se às circunstâncias sem dissolver-se. A tradição, nesse sentido, não é um conteúdo, mas uma estrutura. Ela vive não apenas no que se ensina, mas na maneira como se ensina, não apenas no que se pensa, mas na maneira como se pensa. É uma forma viva porque conserva, transforma e regula — ao mesmo tempo.

Essa estrutura viva só é possível porque está enraizada numa origem inalterável. A tradição nasce do contato com uma verdade que se impõe — seja pela razão, seja pela revelação — e, uma vez reconhecida, exige transmissão fiel. Mas essa fidelidade não é passividade; ao contrário, exige discernimento, exige que cada geração a receba, a compreenda e a reapresente segundo as condições do tempo. Aqui se vê o seu caráter de continuidade: uma linha que não é linearidade cega, mas coerência profunda. A tradição é contínua porque está viva — e está viva porque é sempre o mesmo espírito que a move, ainda que as formas se alterem.

É nessa dinâmica que o saber perene se conserva. Não como uma peça de museu, mas como organismo. Assim como a árvore cresce sem negar sua raiz, a tradição cresce sem negar seu princípio. Ela é forma porque modela o pensar, e é viva porque responde. É por isso que, mesmo em tempos de crise ou de silêncio, ela não se extingue: recolhe-se, oculta-se, mas permanece. Sua força está exatamente nessa capacidade de sobreviver sem se corromper. Ao contrário das ideologias, que exigem afirmação constante, a tradição sustenta-se no silêncio da permanência.

Este ponto liga-se diretamente aos artigos anteriores: a arquitetura do intelecto (Artigo I) encontra sua morada na tradição, enquanto a revelação (Artigo II) dá-lhe fundamento e orientação. Agora, entendendo a tradição como forma viva, torna-se possível abordar, no próximo artigo, sua resistência no tempo — como, mesmo diante de rupturas e descontinuidades aparentes, ela preserva o que é essencial e segue atuando, discreta, mas firme, como guardiã do saber.

Artigo IV — A Tradição Contra o Tempo: Permanência e Resistência da Verdade no Mundo Fragmentado

A tradição, enquanto forma viva do conhecimento, não apenas estrutura e transmite, mas também resiste. É justamente essa resistência que a distingue de qualquer outra forma de produção intelectual humana. Se o artigo anterior mostrou que a tradição se adapta sem trair sua origem, este artigo revela que sua verdadeira força está na capacidade de permanecer íntegra mesmo quando o tempo se volta contra ela. Em um mundo cada vez mais marcado pela fragmentação, pela volatilidade e pela ruptura sistemática com o passado, a tradição age como um corpo estranho — mas não passivo: ela resiste. E sua resistência é silenciosa, paciente, sem necessidade de se impor por força, porque sua autoridade está no que ela é, não no que ela declara ser.

Essa resistência só é possível porque, como demonstrado nos artigos anteriores, a tradição não é invenção humana, mas resposta a algo que a ultrapassa. A arquitetura do intelecto (Artigo I), ao reconhecer um princípio uno, oferece um campo de inteligibilidade que a tradição preserva (Artigo III), sob a luz da revelação (Artigo II), e que atua de forma concreta no pensamento e na cultura. Mesmo quando ignorada, desacreditada ou atacada, a tradição permanece porque está fundada numa realidade que não depende da aceitação humana para existir. O homem pode esquecer, negar, deformar — mas não pode destruir o que é anterior a ele.

No mundo moderno e contemporâneo, assistimos a uma série de tentativas de suplantar a tradição em nome do novo, do progresso, da liberdade absoluta de pensamento. Mas o que emergiu desse corte com o princípio não foi um saber mais profundo, e sim uma multiplicidade de discursos que se anulam mutuamente. A fragmentação do saber, a perda do sentido, a crise de fundamentos, tudo isso são sintomas de um pensamento que se afastou da fonte e da forma que o mantinham íntegro. A tradição, neste cenário, não desapareceu: recolheu-se, mas não cedeu. Reaparece onde menos se espera, nos resgates simbólicos, nas buscas espirituais, nas intuições filosóficas mais radicais que reconhecem, ainda que de modo hesitante, que sem unidade, não há verdade — e sem verdade, não há saber.

Assim, a tradição mostra-se não apenas como herança, mas como contraponto vivo ao tempo que tenta dissolvê-la. E é justamente por resistir que ela permanece. O elo entre os artigos se reforça: a estrutura intelectual (Artigo I), enraizada na revelação (Artigo II), operando como forma viva (Artigo III), agora se revela como resistência silenciosa diante do tempo que a fragmenta. O passo seguinte é inevitável: concluir. E na conclusão, veremos que essa tradição — longe de ser apenas uma construção teórica ou uma saudade do passado — é a expressão mesma da unidade real e contínua do saber que, desde sempre, fundamenta o pensamento humano.

Artigo V — Conclusão: A Tradição como Expressão Suprema da Unidade do Saber

Chegamos agora ao ponto em que todos os caminhos percorridos convergem numa constatação inevitável: a tradição não é apenas um fio que atravessa o tempo, mas a própria expressão da unidade do saber em sua forma mais elevada. Ao longo dos artigos anteriores, vimos que essa unidade não é imaginária, tampouco imposta — ela é real, estruturante e presente, mesmo quando obscurecida pela multiplicidade e pelo ruído dos tempos. A arquitetura do intelecto (Artigo I) mostrou que o pensamento humano, ao buscar a verdade, tende sempre a reencontrar uma mesma estrutura de sentido. Essa estrutura, iluminada pela revelação (Artigo II), assume forma viva e concreta na tradição (Artigo III), que resiste silenciosamente às forças de desagregação do tempo (Artigo IV). Agora, resta reconhecer que essa tradição não é um mero meio ou instrumento, mas o próprio corpo visível de uma verdade una e eterna.

A tradição, por isso, não pode ser confundida com conservadorismo, repetição ou apego ao passado. Ela é mais do que uma memória; é uma presença. Uma presença que ordena, modela, transmite e, sobretudo, sustenta. Ao resistir ao tempo, ela demonstra sua origem fora dele. Ao adaptar-se sem se trair, demonstra que não é arbitrária, mas obediente a algo que a precede. Ao manter viva uma forma, ela confirma que há um conteúdo digno de ser mantido — e esse conteúdo é o saber como participação no real, não como construção humana, mas como descoberta do que é.

Verifica-se, então, que desde os primeiros movimentos do espírito humano — seja no símbolo arcaico, na lei mosaica, na filosofia grega, na síntese medieval, ou mesmo nos ecos modernos — a tradição esteve presente como eixo. Ela não é apenas a forma histórica pela qual o saber chegou até nós. Ela é a própria realidade do saber em sua forma contínua. Sem ela, o pensamento se dispersa. Com ela, se orienta. E é nesse reconhecimento que se encerra esta exposição: a tradição é a garantia de que, apesar das quedas e desvios, o saber nunca se perdeu completamente. Porque onde há verdade, ainda que em vestígio, ali a tradição está — como forma, como luz, como unidade. A tradição, enfim, não é uma parte do saber: é o saber que permanece.

 

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