Há uma chama que resiste ao tempo, uma fogueira que não se apaga mesmo diante do concreto e das luzes artificiais da cidade: é a chama de São João. A festa, celebrada sob o céu de junho, carrega em si não apenas o riso, a dança e a comida, mas um substrato mais denso — um tecido simbólico que liga o homem aos ciclos cósmicos, à terra e ao invisível. Não é apenas um arraial: é um rito de travessia onde o sagrado e o profano dançam em roda. Em cada fogueira acesa, algo ancestral arde.
Antes de ser cristã, a festa foi solar. Nos campos do velho mundo, antes que houvesse púlpitos e batinas, os homens acendiam fogueiras no solstício para celebrar o sol no auge de sua força — e, paradoxalmente, o início de seu declínio. Era um gesto ambíguo: agradecimento pela luz e temor pela sombra que viria. A fogueira não era enfeite, era mediação entre céu e terra. Ali, no crepitar da madeira, morava o espírito do tempo, a passagem invisível das estações. Era a renovação da fertilidade da terra, o exorcismo do mal, a súplica pelo alimento que ainda brotaria.
Com o tempo, a Igreja, ao cristianizar o calendário, enxertou ali o nascimento do maior entre os profetas: João Batista, o que anunciava o fim e o começo. O que preparava o caminho, o que batizava com água, o que era voz no deserto. Se Jesus é o solstício do espírito, João é o solstício da carne: seu nascimento, seis meses antes, marca o início do declínio da luz natural para dar lugar à luz da graça. A fogueira, então, ganha novo sentido: Isabel, segundo a tradição, teria acendido uma fogueira para anunciar o nascimento de João a Maria. O sinal de fogo passa da natureza ao Evangelho. A chama se converte em profecia.
Mas a alma do povo nunca esqueceu seus ritmos. No Brasil, sob o céu nordestino, a festa se reinventa. Trazida pelos colonizadores portugueses, ela se entrelaça às raízes ameríndias e africanas. A fogueira volta ao centro, mas agora rodeada por balões, bandeirolas e quadrilhas. Não há teatro mais simbólico que a quadrilha, onde o casamento, a autoridade do padre, a vergonha dos noivos e o riso do povo encenam a ordem e o caos em perfeita harmonia. A sátira é forma de verdade: no riso, a comunidade reconhece sua força. O homem simples, vestido de chita e chapéu de palha, torna-se protagonista da festa — não como caricatura, mas como herói do tempo agrário, guardião da cultura.
Os balões, antes mensageiros pagãos ao céu, agora carregam pedidos a Deus. Sobem como orações incendiadas. As comidas, quase todas de milho, são oferenda da terra: pamonha, canjica, curau, milho assado — todos símbolos do ciclo fecundo, do alimento tirado do barro. Não se trata apenas de comer, mas de partilhar, de lembrar que a vida vem do chão e é mantida pela graça.
Três santos regem o mês: João, Pedro e Antônio. Três homens que, na tradição católica, são figuras de limiar. João anuncia, Pedro guarda, Antônio une. As festas os celebram, mas é João, o do deserto, o da voz, quem reina. Porque João não pertence a um templo, mas ao espaço aberto; sua palavra é fogo, sua missão é abrir caminho. Por isso sua festa é fora das igrejas, no campo, entre bandeiras e estrelas. Ali, no terreno da memória e da promessa, o povo dança para não esquecer quem é, e o que o sustenta.
A Festa de São João, portanto, não é apenas folclore — é a permanência do simbólico sob o véu do popular. É a tentativa do homem de se alinhar com os ciclos do tempo e da graça, com a terra e com o céu. É rito de passagem, renovação cósmica e exorcismo social. No meio da noite, enquanto a fogueira arde, não é apenas madeira que queima: é o tempo que se purifica. E talvez, se olharmos com olhos limpos, veremos que João ainda aponta para algo que vem, para alguém que se aproxima, para um fogo que ainda não se apagou.
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