ÍNDICE
Capítulo I – O Apelo da Amizade e a Tentaçăo da Fuga
Artigo I – A Voz Humana: Críton e a Persuasão dos Afetos
Artigo II – A Alma como Juíza de Si Mesma
Capítulo II – A Cidade como Princípio Moral
Artigo I – A Lei como Forma Invisível da Justiça
Artigo II – A Obediência como Ato de Liberdade Interior
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Capítulo I – O Apelo da Amizade e a Tentação da Fuga.
Artigo I – A Voz Humana: Críton e a Persuasão dos Afetos.
Na cela onde a morte já se anuncia, Sócrates recebe a visita de Críton, seu velho amigo. A cena é íntima, mas nela se revela o drama mais amplo da existência humana: a tensão entre a voz da razão e os apelos do afeto. Críton não fala como juiz, fala como amigo. Sua proposta não é vil: salvar o corpo do amigo, preservar a presença do mestre, evitar o escândalo da injustiça. Tudo em sua fala parece movido pela virtude do cuidado. E, no entanto, algo não convence Sócrates — não porque lhe falte gratidão, mas porque o critério não é a amizade, mas o bem.
Críton representa o mundo das razões humanas: os filhos que ficarão sem pai, os discípulos órfãos, a opinião pública que condenará os amigos por omissão, o clamor da injustiça evidente. Mas Sócrates não vive segundo essas medidas. Ele já havia recusado apelos maiores no tribunal — agora, na cela, a lógica é a mesma: quem vive segundo o Logos, não pode agir por conveniência. Mesmo que a morte esteja à porta, o que deve ser feito não depende das circunstâncias, mas daquilo que permanece verdadeiro apesar delas.
Sócrates ouve, com paciência, os argumentos do amigo, mas devolve à cena sua gravidade radical: importa, afinal, o que dirá a maioria? Ou importa apenas o juízo do sábio? E ainda mais — importa viver ou viver bem? Essa pergunta desmonta a retórica emocional de Críton. Sócrates lembra que não basta escapar da injustiça dos outros se, ao fazê-lo, tornar-se injusto consigo mesmo. O mal, diz ele, não reside no que fazem conosco, mas no que consentimos em fazer contra o justo. Fugir, ainda que com boas intenções, seria corromper a própria alma.
O apelo da amizade torna-se, assim, o pano de fundo para uma escolha mais alta: entre agradar os homens e permanecer fiel ao bem. Sócrates não despreza o afeto, mas o subordina ao dever. Sua recusa não é frieza, é fidelidade a um princípio que transcende a vida e a morte. Ele não ignora a dor do outro, mas prefere ser inteiro diante da justiça a ser dividido entre o amor e a verdade. A cela, então, não é prisão: é templo. É ali que o homem escolhe ser justo, mesmo quando todos gritam para que viva.
Artigo II – A Alma como Juíza de Si Mesma.
Sócrates rejeita a proposta de fuga porque sabe que há um tribunal mais alto do que o da cidade e mais íntimo do que o dos amigos: a própria alma. Não é a legalidade externa que está em jogo, mas a fidelidade interior. A decisão que Críton oferece – escapar e viver – seria, aos olhos do homem comum, um ato de prudência, talvez até de justiça. Mas para Sócrates, viver sem harmonia com a verdade é um modo de morte. O corpo pode andar, mas a alma já estaria condenada.
Ao recusar a fuga, Sócrates reafirma que não se pode cometer injustiça em resposta à injustiça. Nenhuma dor, nenhum ultraje, nenhuma pena pode autorizar o mal. O erro permanece erro, mesmo quando vestido de piedade. A alma, para não se degradar, deve manter-se obediente à razão. Sócrates recusa agir segundo os homens; age segundo o Bem em si. Sua medida não é o sofrimento, mas a ordem da alma — e esta se desorganiza quando se submete à paixão ou à conveniência.
Para que a alma permaneça justa, ela precisa julgar a si mesma com a régua da eternidade. Sócrates sabe que uma vida construída sobre a mentira — ainda que seja a mentira da autopreservação — é uma traição àquilo que dá sentido à existência. Sua filosofia não é doutrina abstrata, é vivida até o fim. Fugir seria confessar que a virtude é relativa, que o Bem é uma ideia negociável. Mas o Bem, por definição, não negocia. Ele exige adesão total, mesmo sob a sombra da morte.
Assim, a recusa de Sócrates não é passividade, mas afirmação. Ele não se entrega; ele se consagra. O cárcere torna-se altar, e a morte, sacramento. Não por heroísmo, mas por coerência. Sócrates ensina que a justiça não depende do êxito, mas da integridade; não do resultado, mas da fidelidade. A alma, ao obedecer à razão, torna-se livre. E é nessa liberdade que o filósofo repousa, mesmo quando a cidade prepara seu fim.
Capítulo II – A Cidade como Princípio Moral.
Artigo I – A Lei como Forma Invisível da Justiça.
Ao dialogar com Críton sobre a fuga, Sócrates invoca uma instância ainda mais profunda do que a própria consciência individual: a voz das Leis. Não como convenções arbitrárias, mas como expressão objetiva de uma ordem superior, da qual a cidade é guardiã. Ele põe na boca das Leis um discurso que ele mesmo constrói — mas não se trata de ficção retórica: trata-se da encarnação filosófica de um princípio que transcende os homens e sustenta a comunidade. As Leis falam como falaria o fundamento invisível que permite à cidade não se dissolver em caos.
A argumentação não apela ao medo, mas à origem. Sócrates lembra que foi a cidade que o gerou, o criou, o educou, que lhe deu o modo de ser e de pensar. Fugir seria não apenas desobedecer a uma sentença — seria romper com o princípio que tornou possível sua existência enquanto homem racional e político. A fuga significaria colocar o arbítrio do indivíduo acima da estrutura que torna possível o bem comum. Ao rejeitar isso, Sócrates defende a prioridade da forma sobre o desejo, da ordem sobre o instinto.
A obediência à lei, portanto, não é submissão cega, mas reconhecimento da estrutura moral do mundo humano. Quando a cidade age injustamente, não é destruindo-a que se repara a injustiça, mas reafirmando sua vocação. Sócrates sabe que Atenas o condena por erro, mas não deseja destruir Atenas. Ao aceitar a pena, ele purifica a cidade de sua culpa — não por passividade, mas por fidelidade ao ideal de justiça que deve presidir toda vida associada. O filósofo torna-se mártir, não da cidade real, mas da cidade possível.
Nesse gesto, ele antecipa uma lição essencial: ou há uma instância que regula o poder e a vontade, ou tudo se reduz à força. Sócrates morre para preservar essa instância. Ele morre para que se saiba que existe algo mais forte que a morte: a ordem invisível da justiça. Fugir seria dissolver essa ordem no capricho do momento. Permanecer, ainda que injustamente condenado, é consagrar com o corpo o primado da lei sobre a carne, da verdade sobre o instinto, da cidade sobre o indivíduo.
Artigo II – A Obediência como Ato de Liberdade Interior.
A permanência de Sócrates na prisão, sua recusa em fugir, não se funda na resignação, mas na liberdade. Liberdade não como negação da autoridade, mas como adesão voluntária ao que é justo. Obedecer às Leis, mesmo quando elas erram, é para Sócrates um ato que preserva a alma em sua inteireza. Ele sabe que o erro da cidade é contingente, mas o princípio que sustenta a cidade é eterno. Ao morrer obedecendo, não se submete ao erro, mas salva o que pode ainda ser salvo: a possibilidade de uma vida política fundada no justo.
A obediência aqui não é submissão servil, mas afirmação de soberania interior. O filósofo escolhe sofrer a injustiça sem manchar a justiça com seu gesto. Em vez de romper com a cidade ferida, ele a suporta. Não porque a cidade mereça, mas porque sem fidelidade à sua estrutura, nenhuma outra cidade será possível. Sócrates não busca um novo lar, uma nova polis mais justa: ele encarna a justiça em meio à imperfeição da cidade real. Sua morte torna-se o limite onde o homem mostra que é maior do que o instinto de sobrevivência, pois sabe que há algo em si que não morre.
Assim, a liberdade de Sócrates não consiste em escapar da pena, mas em aceitá-la sem corromper o próprio espírito. Ele é livre porque nada pode obrigá-lo a agir contra a razão. Ele é livre porque escolhe obedecer, não por medo, mas por dever. Sua alma permanece inviolada. A prisão não o prende. A sentença não o cala. A morte não o derrota. Tudo ao seu redor conspira para a fuga: os amigos, a oportunidade, a impunidade provável. Mas ele permanece, como pedra imóvel diante do vento. Porque sabe que a única verdadeira prisão é a traição à consciência.
No fim, Sócrates ensina que a cidade só é digna quando seus cidadãos são capazes de obedecer não por temor, mas por escolha moral. Sua obediência, nesse sentido, não é passividade: é acusação. Ele morre dizendo que a lei deve ser obedecida, mesmo quando erra — para que amanhã ela possa ser justa. E morrendo assim, marca na carne da cidade a exigência eterna da justiça. A cidade o matou. Mas não o venceu. Pois ele fez de sua morte uma afirmação última: que a alma justa é indestrutível, e que só nela a verdadeira liberdade pode habitar.
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