Inicio este pensar com uma citação de Eric Voegelin, em As Religiões Políticas:
> “A Igreja é a representante do Estado de Deus na Terra, encontrando-se entre os seus membros, ligados pelo sacramento, cidadãos da civitas terrena; e, fora da Igreja, existem cidadãos da civitas Dei.”
A escolha deste trecho visa evidenciar como Voegelin capta o entrelaçamento entre o religioso e o político. O sacramento, aqui, não é apenas um rito litúrgico, mas um elo simbólico que ancora a pertença a uma ordem transcendente e, ao mesmo tempo, configura uma estrutura de coesão na ordem terrena. A Igreja se situa nesse entrelugar — ao mesmo tempo parte da civitas terrena e representação do Estado de Deus. Já os cidadãos da civitas Dei, segundo a distinção agostiniana, não se deixam capturar por nenhuma ordem histórica. Há, portanto, uma tensão entre o visível e o invisível, entre o sagrado e o político.
Eric Voegelin compreende que, com o declínio das ordens espirituais tradicionais na modernidade, o impulso religioso não desaparece. Ele é apenas deslocado, transfigurado. As ideologias políticas modernas — o comunismo, o fascismo, o nacionalismo radical — assumem formas sacramentais ao estabelecerem seus próprios ritos de iniciação, dogmas de fé, figuras redentoras e visões escatológicas. Não se trata de mera analogia, mas de uma equivalência estrutural: essas ideologias são religiões políticas.
O que está em jogo, então, é o reaparecimento do religioso sob formas políticas totalizantes. O sacramento, compreendido como um ato que vincula o sujeito a uma ordem superior e o insere em um corpo coletivo, reaparece — porém desfigurado. O gesto simbólico permanece; o conteúdo transcendente é que se perde. Surge assim a immanentização do eschaton, expressão voegeliniana que denuncia a tentativa de realizar o paraíso na Terra, substituindo a esperança escatológica pela utopia histórica.
Essa leitura nos convida a analisar cada sacramento cristão não apenas em seu sentido teológico, mas como arquétipo simbólico que, ao ser apropriado pela política moderna, produz versões profanas e muitas vezes destrutivas de si mesmo.
1. Batismo – Iniciação e Renascimento
No cristianismo, o batismo marca a entrada na comunidade dos fiéis. É um renascimento espiritual, uma ruptura com o “homem velho” e o início de uma nova vida.
Na política moderna, esse rito reaparece na forma da filiação partidária, do ingresso em movimentos revolucionários ou da adesão a uma causa absoluta. O militante renasce como “novo homem”, desligado do passado burguês, tradicional ou decadente. Há um batismo secular, selado por um compromisso total com a nova ordem.
2. Eucaristia – Comunhão e Corpo Coletivo
A Eucaristia une os fiéis ao corpo de Cristo e entre si. É o sacramento da unidade e da partilha.
Nas ideologias de massa, ela se traduz em rituais públicos de comunhão simbólica: comícios, desfiles, cultos cívicos, onde o indivíduo se dissolve na massa e participa do “corpo místico” do povo, da nação ou da classe. O pão é substituído por slogans, o vinho por palavras de ordem — mas o impulso é o mesmo: pertencer, comungar, unir-se.
3. Confirmação – Coragem Pública e Fidelidade
A Confirmação fortalece o fiel para o testemunho público da fé.
No plano político, ela se manifesta nos juramentos públicos, nas declarações de lealdade, nas manifestações de fervor revolucionário. O sujeito não apenas crê, mas proclama. Sua fé é testada no fogo da exposição e da obediência.
4. Penitência – Culpa, Purgação e Reintegração
O sacramento da Penitência é a reconciliação entre o pecador e a comunidade.
Nas ideologias totalitárias, essa função é exercida pelas autocríticas, pelos julgamentos públicos, pelas confissões forçadas. O sujeito deve reconhecer seus desvios, submeter-se à humilhação simbólica, purgar sua culpa perante o coletivo e ser, eventualmente, reintegrado. A culpa religiosa é substituída pela culpa ideológica.
5. Unção dos Enfermos – Sentido para a Dor e a Morte
Este sacramento prepara o fiel para enfrentar o sofrimento com dignidade.
Na política de massa, vemos o culto ao mártir, ao herói caído, à morte com sentido. O sofrimento do militante é convertido em símbolo de pureza, sua morte em fundação do futuro. A dor é celebrada como combustível da causa.
6. Ordem – Autoridade e Intermediação
A Ordem consagra o sacerdote como mediador entre Deus e os homens.
No campo político, os líderes revolucionários, os intelectuais orgânicos, os dirigentes partidários assumem essa função. São os “sacerdotes” da nova fé, intérpretes da verdade histórica, administradores da doutrina. Detêm o monopólio da palavra sagrada — seja ela o Manifesto Comunista, o Mein Kampf ou qualquer catecismo ideológico.
7. Matrimônio – Aliança e Fundação do Comum
O casamento é a união fecunda entre duas pessoas sob a bênção do divino.
Politicamente, isso se manifesta na união simbólica do indivíduo com a pátria, da juventude com o futuro, do povo com seu destino. O discurso do compromisso absoluto, do amor à terra, do vínculo com a nação se estrutura como um pacto conjugal. A fidelidade ao ideal substitui a fidelidade ao outro.
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Em todas essas transfigurações, o que se percebe é uma tentativa de reorganizar a ordem simbólica do mundo com categorias que outrora pertenciam ao sagrado. A política moderna, ao se absolutizar, deixa de ser um campo de negociação e passa a operar como um espaço de salvação ou condenação. A lógica do sacramento — que une, purifica, consagra — é apropriada por sistemas que pretendem não apenas governar, mas redimir.
A consequência é o colapso da distinção entre o temporal e o eterno. Quando o Estado pretende ser Igreja, e a história, redenção, a liberdade humana é sacrificada no altar de uma utopia fabricada. Voegelin nos oferece aqui não apenas uma crítica das ideologias, mas uma defesa da ordem espiritual como limite à desmesura do poder.
Pois se o sagrado não pode ser extinto, mas apenas malversado, resta à filosofia a tarefa de restaurar o discernimento: entre o que é político e o que é divino, entre a ordem da história e a ordem da alma. Reconhecer os sacramentos no interior das ideologias é também reconhecê-los como memória de um mundo que já intuiu a diferença entre o eterno e o efêmero — e que ainda pode, apesar de tudo, reencontrar essa intuição.
Complemento acerca da obra.
Resumo de As Religiões Políticas, de Eric Voegelin:
Eric Voegelin, em As Religiões Políticas, argumenta que certos movimentos políticos modernos — especialmente o nazismo, o comunismo e o positivismo — funcionam como religiões seculares, assumindo um papel que antes era reservado às religiões tradicionais. Esses movimentos prometem a salvação histórica por meio da ação política e da transformação radical da sociedade, substituindo a transcendência por um projeto imanente de redenção.
Ideias centrais:
1. Substituição da transcendência:
Voegelin mostra como ideologias modernas romperam com a visão cristã da ordem, tentando realizar o paraíso na Terra — um "céu secular". Essa ruptura ocorre quando se perde o senso de que a ordem humana está enraizada em uma ordem transcendente.
2. Gnose moderna:
Ele identifica um elemento gnóstico nessas ideologias: a crença de que o mundo está corrompido, que existe um conhecimento especial (gnosis) capaz de salvar a humanidade, e que esse conhecimento é acessível a uma elite esclarecida.
3. Racionalismo e cientificismo como fé:
O positivismo, especialmente, transforma a ciência em um dogma. O progresso técnico e racional se torna uma promessa de redenção, funcionando como uma nova fé.
4. Totalitarismo como consequência espiritual:
Ao absolutizar a política e negar o mistério da existência humana, as religiões políticas levam inevitavelmente ao totalitarismo, pois impõem uma visão única do mundo e tentam moldar os indivíduos à força para se adequarem a ela.
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1. Substituição da Transcendência pela Imanência
Voegelin argumenta que a essência das religiões políticas modernas está na imantização da escatologia — ou seja, trazer para o plano histórico aquilo que nas religiões tradicionais pertence ao domínio transcendente. Em vez de uma salvação em um reino espiritual, propõe-se uma redenção dentro da história, por meio da revolução, da ciência ou da vontade política.
Essa operação tem origem teológica: ela deriva de heresias escatológicas cristãs, especialmente do pensamento milenarista, que esperava o Reino de Deus como um evento terreno. Voegelin considera que movimentos como o comunismo (com sua utopia da sociedade sem classes), o nazismo (com a "raça purificada") e o positivismo (com a sociedade racional perfeita) são todos projetos que visam realizar o paraíso na Terra, sem mediação transcendente.
Ao substituir Deus por um fim histórico absoluto, o homem passa a ocupar o centro da ordem, como criador da salvação — o que gera o colapso do fundamento da ordem legítima.
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2. Gnose Moderna
Voegelin utiliza o termo gnosticismo de maneira filosófica, não estritamente religiosa. Para ele, o gnosticismo moderno é caracterizado por três elementos:
A descrença radical no mundo como ele é (sentido de crise permanente);
A convicção de que há um conhecimento especial (gnosis) que liberta o indivíduo dessa realidade corrompida;
A crença de que esse conhecimento pode ser aplicado para transformar a sociedade inteira.
Dessa forma, o gnóstico moderno — seja o revolucionário marxista, o tecnocrata positivista ou o líder nazista — vê-se como portador de uma verdade salvadora que a maioria ignora. Ele transforma a ordem espiritual interior (metanoia) numa reengenharia política do mundo exterior. Voegelin aponta que essa gnose não é apenas uma crença teórica: ela exige ação política, militância, conversão dos outros — e a eliminação dos que resistem.
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3. Racionalismo e Cientificismo como Fé Substituta
No caso específico do positivismo (sobretudo em sua vertente comteana), Voegelin mostra como o culto à razão e à ciência se transforma numa nova liturgia secular. Auguste Comte chegou a propor um "catecismo positivista" e um "Calendário da Humanidade", substituindo santos cristãos por cientistas e heróis seculares.
Essa operação retira da ciência seu caráter instrumental e a transfigura numa doutrina total, capaz de explicar tudo e guiar todos os aspectos da vida social. O cientificismo, nessa chave, não é mais o exercício da razão crítica, mas a fé dogmática na razão como redentora.
Voegelin identifica aqui uma perversão da racionalidade clássica: em vez de reconhecer os limites da razão diante do mistério do ser, o cientificismo moderno absolutiza o conhecimento técnico e nega qualquer dimensão simbólica ou metafísica da existência humana.
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4. Totalitarismo como Consequência Espiritual
Para Voegelin, o totalitarismo moderno não é apenas um fenômeno político, mas a expressão última de uma crise espiritual. Quando a sociedade perde sua conexão com o transcendente — ou seja, com a fonte que dá sentido e medida à existência —, ela busca substitutos absolutos no plano terreno.
A tentativa de instaurar uma ordem perfeita através da política leva inevitavelmente à supressão da liberdade, da pluralidade e da dignidade humana. A história recente ilustra isso com os campos de concentração nazistas, os gulags soviéticos e os expurgos em nome do progresso ou da pureza ideológica.
Voegelin considera que a ruptura da tensão entre o homem e o divino (que define a experiência filosófico-religiosa autêntica) gera uma falsa consciência da realidade. O resultado é um mundo ideologicamente fechado, onde a dúvida, a transcendência e o mistério são abolidos. Daí seu famoso alerta: "Não se deve imantizar o escaton."
A obra de Voegelin encerra-se com um diagnóstico de crise espiritual da modernidade, cuja característica central é a recusa da ordem transcendente que, desde as origens da filosofia e da religião, serviu como fundamento para a vida humana ordenada. Ao analisar o fenômeno das religiões políticas, Voegelin não se limita a uma crítica política ou ideológica — ele realiza uma crítica ontológica e espiritual, mostrando que o totalitarismo moderno é o sintoma de uma ruptura mais profunda no modo de ser do homem.
1. O colapso da ordem simbólica
A principal consequência dessa ruptura é o colapso dos símbolos que, ao longo dos séculos, permitiam ao homem situar-se entre o mundo e o divino. Termos como "alma", "virtude", "justiça", "salvação", "transcendência" são esvaziados ou ridicularizados, substituídos por conceitos técnico-instrumentais: "eficiência", "progresso", "história", "produção", "engenharia social". Com isso, a linguagem política e existencial se torna incapaz de expressar a verdade do ser humano, e abre-se espaço para sistemas ideológicos que pretendem preencher o vazio com certezas absolutas.
2. A destruição do centro espiritual
Voegelin retoma aqui a tradição platônico-cristã, na qual o homem é definido pela sua "tensão participativa" com o fundamento do ser — algo que ele chama de metaxy (o "entre", o espaço de abertura entre o finito e o infinito). Ao abolir essa tensão, as religiões políticas constroem sistemas fechados, sem abertura ao mistério, onde tudo deve ser planejado, controlado e explicado. O resultado é uma tirania do imanente: uma sociedade onde não há mais espaço para a contemplação, a dúvida filosófica, ou a experiência do sagrado.
3. A idolatria da história
Outro ponto central é a crítica à divinização da história. Movimentos como o comunismo ou o nazismo veem a história como portadora de um sentido necessário, como se houvesse uma "lei" evolutiva que conduzisse inevitavelmente à utopia ou à purificação. Essa visão teleológica transforma a política em instrumento de salvação coletiva, e legitima qualquer violência em nome de um futuro prometido. Voegelin vê nisso uma herança deturpada da escatologia cristã, deslocada para o plano do mundo e pervertida em ideologia.
4. A recuperação da ordem como tarefa filosófica
A saída, para Voegelin, não está no retorno a um dogma perdido, mas na reconstituição da experiência filosófico-espiritual autêntica. Isso significa recuperar a consciência da participação do homem em uma ordem que o transcende, e reconhecer os limites da razão e da ação humanas diante do mistério do ser. A filosofia, nesse sentido, não é apenas uma disciplina intelectual, mas um ato de resistência contra o fechamento ideológico da realidade.
Voegelin conclui que a sanidade espiritual de uma sociedade depende da sua capacidade de manter vivo o senso de transcendência — e isso só é possível quando o homem se reconcilia com sua própria finitude, sua abertura ao mistério, e sua vocação para o bem.
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