Toda história tem um começo — e essa não poderia ser diferente. É claro que ela poderia começar com o bom e velho “Era uma vez”. Seria apropriado. Nos daria a ideia de um início e, de quebra, economizaria um tempo valioso. Vamos tentar.
Era uma vez um homem que, em sua lida diária, tirava um tempo para apreciar as coisas belas da vida. Não ficou forçado, e ainda deu um tom formal à coisa — vamos continuar. As coisas belas da vida que tal homem apreciava não se resumiam a coisas, mas antes às nuances de ligação — deixe-me explicar: tomo por “nuances de ligação” as conexões que certas passagens da vida têm com outras que a própria vida oferece. Como quando você faz algo e percebe que esse algo se parece com outro algo feito em outro tempo e lugar. Isso mesmo: uma espécie de déjà vu.
Essa apreciação, de tempos em tempos, ia e vinha — às vezes caminhando junto, às vezes abandonando-o — num enlace que tornava tudo mais intenso quando, por ora, anunciava sua chegada. Podemos dizer que havia uma certa mística na coisa toda, o que é natural, já que no homem existe essa mística infusa desde sua concepção — não a do indivíduo, mas a da espécie.
E com isso, quando ia, ele se perdia — e nada fazia sentido. Mas quando vinha, ele apreciava, e tudo tinha ligação — como uma corrente que, não estando rompida, permite vermos, além de sua força, uma continuidade na forma e na funcionalidade. Sua rotina era, em suma, corriqueira. Não possuía variações maiores do que certos momentos díspares — todo o restante era sempre do mesmo jeito.
Aos domingos havia aquele compromisso, o mesmo que se repetia como se repete o movimento dos astros sobre nossas consciências: a boa e velha ida à missa. Todo mundo sabe o que é uma missa — é aquele momento no qual vamos tentar um contato com o divino. Um momento que ganha a roupagem condizente com o frio que sentimos. Um trapo de pano no frio intenso serve tanto quanto um cobertor diante do calor escaldante. E a coisa prosseguia.
A vida desse homem que ia à missa não era tão diferente da de qualquer outro: suas aspirações, seus feitos, suas desilusões — tudo podia ser encontrado em qualquer um, até mesmo seus sonhos. Sonhos esses tão comuns nos dias de hoje, e ainda mais por essas bandas, onde o único sonho parece ser o deleite sobre o veio de ouro do tempo — sem tempo para gastar.
Tivera encontros marcantes: primeiro com o Criador; depois, com o porto seguro que o Criador lhe proporcionou — pessoas que, com afeto e carinho, o guiaram nos primeiros passos. Depois vieram os amigos, companheiros de caminhada que compartilhavam dos mesmos sonhos. E teve também aquele primeiro amor, aquele sonho de que somente ele seria único.
E assim a coisa se dava — com arrependimentos, frustrações diárias e esperanças futuras. Quem não tem? Todos temos. Como também possuímos, na interioridade, essa nuance de ligação — essa coisa que, a partir de agora, chamarei de “verdade infusa”, ou tão somente “toque do destino”.
Dizia um santo, Alberto Magno, que o destino é a coisa em movimento — uma espécie de: depois que a coisa é lançada, ela permanece jogada até que se pare. Um sujeito chamado Newton criou toda uma ciência com essa percepção.
Posso crer que o pobre homem tivera o toque do destino sobre si. Talvez tenha sido aquele momento de abertura — se abriu para ver o que, por trás do véu, se escondia. E com nosso personagem não foi diferente. Em suas peregrinações por este mundo, muitos foram os momentos em que algo existia que lhe dava algo em que pensar.
Nesses, num determinado instante, conheceu Joaquim — seminarista e estudante de filosofia, já tivera cursado Direito. Homem sensível e culto, cuja única busca era por uma resposta que satisfizesse a pergunta: “Por que busco?”
Conheceu-o num ponto de ônibus. Estudante de ciências exatas, nosso personagem não dava importância ao toque do destino, pois acreditava que destino não fosse mais real do que a fé que ansiava em lhe mostrar o incompreensível. De tempos em tempos, se encontravam. Ambos, buscando sonhos separados, uniam-se na crença de que, encontrando alguma resposta, ela serviria para qualquer pergunta já feita.
Certo dia, o toque do destino bateu à sua porta — não com a intenção de mostrar algo naquele momento, pois nada pode ser mostrado sem que antes não esteja escondido. Era Joaquim: maltrapilho, sujo, desolado, triste, vencido.
— O que houve? — pergunta nosso personagem.
Em lágrimas, responde Joaquim:
— Fui assaltado...
As intenções, mesmo sob a roupa da discórdia, são sempre melhores do que intenção nenhuma. E pasmo diante da cena, nosso personagem o convida a entrar.
— Entre, acomode-se.
Joaquim, ainda em prantos, entra. Os dois trocam algumas palavras, e nosso personagem o convida a ficar e cear
com ele. Entre umas e outras, o diálogo ganha ares de busca.
— O que está havendo, Joaquim? — pergunta nosso personagem.
— Nada... fui assaltado e me espancaram. Por sorte, saí vivo — responde Joaquim.
— Sim, só que essa não é a resposta que espero. O que estava fazendo para isso acontecer?
Em prantos, Joaquim decide abrir seu coração. Seu desânimo com a vida, sua frustração com as respostas que não vinham quando as perguntas eram feitas, o levaram a buscar abrigo entre os maltrapilhos da alma — indivíduos que não ligam para o sofrimento, apenas para o prazer.
Nesse salão — o dos maltrapilhos da alma — a dor não é real. Assim como tudo ali, ela é antes um cartão de visita, o ingresso exigido para adentrar essa casa de mil janelas, mas sem porta alguma. A vida, nesse ambiente, não vale mais do que o ticket requerido para nela ingressar — um lugar de buscas sem resposta que satisfaça.
Noutro tempo, em suas idas e vindas, nosso personagem conhecera outro sujeito. Este chamarei, tão somente, de F — mente volátil, impetuosa, que, na idade do bronze, não via nada além do amarelo do sucesso. Esse ansiava pelo que todos anseiam: fama e reconhecimento — prêmios dados aos afortunados do tempo.
São muitas as estradas do fracasso, e poucas as encruzilhadas do sucesso. Em nenhuma delas há o leito do descanso sem que antes haja a derrota, o cansaço — e o tempo. Esse amigo tão fiel, em algum momento, traz a resposta àqueles que buscam sua companhia.
Tudo é — e tudo retorna — quando o intuito é a felicidade em troca de tudo o que se tem.
E nosso personagem vagou. Perambulou. Teve dúvidas. Obteve respostas. Amou, reprovou, contentou-se. E agora, em voltas com o toque do destino, foi de encontro a mais um domingo, a mais uma missa.
E como já disse: todos sabem o que é uma missa.
Capítulo Segundo.
O Vazio entre as Coisas: Quando o Real se Retrai
Como disse, todos sabem o que é uma missa: é aquele momento em que o dedo tenta alcançar o toque do Divino.
E como nesse toque divino se escondem as descobertas do que realmente importa, naquele domingo em específico, ele subiu as escadas, abriu a porta que dá acesso à catedral, rezou diante da imagem de Nosso Senhor crucificado, depois, ajoelhado sobre o banco, orou, e, por fim, sentou-se.
Sua percepção era a de sempre: os olhos passeando pelas pinturas que decoravam as passagens laterais; os pais e mães tentando acalmar suas crianças, enquanto buscavam, eles próprios, um ponto de equilíbrio entre o assistir à ritualística e o recolhimento interior. Cenas inusitadas, uma calmaria aconchegante.
E não escapou à sua atenção a velha abelhinha que, todo domingo, pairava sobre as cabeças dos fiéis — como se fosse movida por uma busca silenciosa por consciências claras.
E que coisa é esse toque divino? Sublime nos pontos em que o belo atinge o ápice do momento.
A coisa continua a transcorrer de forma normal, sem grandes mudanças, como um rio que, em seu movimento, parece permanecer — como se o fluxo fosse pura responsabilidade nossa, e não dependesse dele.
Mas dizei uma só palavra, e serei salvo.
A fila para aquele momento verdadeiro se iniciava. Pessoas vinham de um lado, outras de outro, e duas fileiras se formavam no corredor central.
Tudo corria normalmente — dentro das normalidades que precedem a coisa.
Só que o toque do destino bate à porta novamente, anunciando algo que insiste em ter o seu momento.
E aquilo que já se dava como esquecido retorna aos seus instantes iniciais.
No canto direito do corredor, ajoelhado, prostrado diante do altar, estava Joaquim.
O que ele faz aqui? — pergunta o nosso personagem.
Como alguém encantado com aquilo que nunca compreendeu muito bem, enche-se de espanto.
Será ele mesmo?
Estava mais velho, os cabelos grisalhos, já surrados pelo tempo; calvo, o rosto abatido.
Era ele mesmo. Era Joaquim.
Pelo visto já comungou, pensava consigo o nosso personagem.
Sim, estava ajoelhado diante da vida — mas não em sinal de reverência a ela.
Seu semblante era o de quem via, nela, mais do que pedaços.
Era o de alguém que carregava consigo uma cruz.
Assim, nosso personagem tenta compreender esse toque do destino — essa, entre aspas, nuance de ligação.
O que não é tão simples, pois a vida não carrega apenas simplicidade.
Então, ele compreendeu.
Mas o espanto, como dizia Aristóteles, é o primeiro passo para a filosofia.
E um santo — do qual não recorda o nome — dizia que a filosofia é o pedagogo que conduz ao Cristo.
Do lado esquerdo, ministrando a entrega do Corpo e do Sangue, estava F.
Espanto redobrado.
No início da nossa história, tratei das nuances da ligação. Disse que ela era uma espécie de analogia — uma síntese de semelhanças e diferenças. Mas de um outro tipo: aquele em que não basta apenas olhar e ver, pois essa espécie reside, de forma mais aguda, no sentir o toque do destino. É uma analogia por presença.
Joaquim e F — fragmentos vivos de uma mesma história, partes de um todo em constante desdobramento. O primeiro, prostrado; o segundo, servindo. Quironia do destino. Que toque tocam os meus dedos... Sua atenção já não se voltava nem para um, nem tampouco para o outro. Agora, ela se voltava para dentro — para essa analogia, essa espécie de déjà vu que assistia e o fazia assistir. Ele via aqueles personagens de sua existência não mais como meras extensões, dois elementos, dois sujeitos ao acaso, mas como parte de seu espírito. Como o horizonte de sua alma. Não mais como dois que erraram ou acertaram, mas como uma unidade: extensão de seu ser.
Agora, Joaquim era a vontade — débil, fraca — que, a perambular pela casa dos maltrapilhos da alma, sempre buscava forças para de lá sair. Uma vontade que permutava com a dúvida e, nos salões, cortejava a preguiça. Agora, Joaquim era a redenção dessa vontade. F, por sua vez, já não era mais aquele sujeito que via ouro onde havia apenas bronze. Não — era, agora, a liberdade de que essa vontade carecia para poder querer. F era essa força: uma força que, movendo a vontade, a permitia ser em comunhão com o ser. F era isso, agora. Ambos ali, os dois — cada qual com sua parcela na missa — mostravam ao nosso personagem o que, de fato, é um toque do destino.
Capítulo Terceiro — Desfecho Final.
O que é o Real?
Nosso personagem podia não saber responder,
com uma definição que preenchesse todas as lacunas da questão.
Mas, depois daquele domingo na missa,
ele passou a saber o que não era o Real.
Vou relatar aqui como ele me falou:
— Senhor narrador, posso não saber o que é o Real,
mas, após um toque do destino,
passei a distinguir o que não é o Real.
Todo esse mundo desconectado do espírito,
envolto em desejos frívolos,
ansiando apenas pelo número,
e desfazendo-se do essencial...
isso não pode ser o Real.
A ilusão dos tempos — o ouro, a fama, a segurança —
tudo isso que o espírito da época nos oferece,
isso não é o Real.
O medo, em sua forma mais habitual —
o remorso e a angústia —
devora homens e mulheres
que, por uma dívida simples com ele,
pagam com a alma.
Isso não é o Real.
A loucura, outrora tratada como sanidade dos tempos,
agora é perseguida.
São loucos os sábios de ontem,
e sábios os asnos de outrora.
Chamam tudo isso de normalidade.
Perseguiram a normalidade —
mas ela nunca foi normal.
E eu te digo, narrador:
isso não é o Real.
Líderes que apenas fingem liderar,
amigos que já não buscam as mesmas coisas,
aquele pai, aquela mãe —
agora vendem seus filhos.
E as crianças,
agora vendem seus pais.
Me fale, narrador...
Eu te digo:
isso não é o Real.
Como falei, posso não saber definir,
mas agora sei distingui-lo.
Não é real o fluido do tempo,
nem tampouco a figura do espaço.
Não é real o prazer que se foi,
nem a esperança que anseio em vir.
Não é real, não é real.
Depois de dito isso, perguntei ao nosso personagem:
— E a vida... ela é real?
Responde ele:
— Narrador, narrador...
Só há começo quando se chega a um fim.
E é o fim que precipita o início de algo.
Como uma certeza
que só pode nascer da dúvida,
que dança de um lado para o outro
buscando repouso.
Logo, sim — a vida.
Mas esta só existe verdadeiramente na morte.
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