terça-feira, 20 de maio de 2025

Nota de Segunda - Novamente acerca da Felicidade.

    
Uma das travessias mais íngremes da vida diz respeito à sua própria passagem: ir de um passado marcado por abismos para um vale plano, fértil — onde o sujeito possa centrar sua morada e ali cravar uma residência.
Nessa travessia — em sua conformação, em como se dá — nos deparamos com algo chamado forma, ideia. Forma, do latim forma, designava inicialmente o molde, o contorno visível das coisas, e está ligada à noção grega de eidos ou morphé: a aparência inteligível, o princípio que dá identidade ao ente. É pela forma que algo se mostra, se manifesta como aquilo que é.

Em suma, saímos do Nada rumo ao Tudo, tomando essa forma — esse molde — como ponto de partida da travessia.
Contudo, há nessa jornada elementos que nos impedem, que nos barram, que interrompem nossa caminhada. Dito isso, falaremos aqui de alguns desses elementos.

Primeiro elemento: os desejos, as paixões.
A palavra paixão vem do latim passio, derivado de patior, que significa “sofrer” ou “suportar”. Na tradição filosófica e teológica, a paixão é aquilo que nos acontece, que nos acomete de fora, movendo-nos muitas vezes contra a razão. Ela envolve um afeto intenso, uma força que não dominamos, que nos toma e nos arrasta. Na travessia do ser, as paixões surgem como forças de atração e dispersão: ora nos inflamam em direção ao Tudo, ora nos prendem ao Nada de onde viemos.

Segundo elemento: o ambiente, o mundo, a sociedade.
Sociedade deriva do latim societas, de socius, “companheiro, aliado”. Designava originalmente a aliança entre iguais, a partilha de um destino. Mas, ao longo do tempo, a sociedade se converteu em estrutura normativa, em campo de forças reguladoras que muitas vezes sufocam o desabrochar da singularidade. O mundo em que vivemos não é neutro: ele impõe formas, valores, direções. Em vez de moldura para a liberdade, torna-se prisão invisível — um molde que não forma, mas deforma.

Por último, o espírito dos tempos — como ele nos move, qual seu impulso, e para onde nos leva.
Neste ponto, evocamos a etimologia do termo diabo, que lança luz sobre o caráter dispersivo dessa força. Do grego diábolos, significa “acusador”, “caluniador”, composto por dia- (“através”) e bállō (“lançar”). Literalmente: “aquele que separa, que dispersa, que atira para longe”.
No judaísmo, ele é satan, o adversário, mais acusador do que entidade maligna.
No cristianismo, assume feição ontológica: é o tentador, o enganador, a força que se opõe ao bem divino.
No islamismo, é Iblis, o que se recusa a se curvar diante de Adão — símbolo da soberba e da desobediência original.
No hinduísmo, a ideia do mal é mais fluida: não há um “diabo” unificado, mas há asuras (seres que se opõem aos deuses) e o conceito de māyā, a ilusão que afasta o ser de sua essência.

O espírito dos tempos atua como esse diábolos difuso. Ele move, sim — mas sua movimentação é frequentemente descentrada, caótica. Ele não guia, apenas agita. Não conduz, apenas arrasta. E, ao fazer isso, impede que a travessia encontre seu eixo.

Visto isso, temos uma travessia que deve se dar pelo caminhar em direção a algo — um movimento que exige direção, persistência e abertura. E temos, por outro lado, os elementos que barram e impedem tal travessia, como já delineado: as paixões, a sociedade, o espírito dos tempos.

Tomemos, então, como êxito último dessa travessia aquilo que muitos chamam de Paz interior — estado raro, tênue, mas possível. Uma experiência de centramento, de alinhamento entre o ser e o seu fundamento. No fim das contas, essa paz não é senão o que diversas tradições místicas e filosóficas designam como realização espiritual, iluminação, libertação, salvação.

Mas essa felicidade — e aqui convém sermos honestos — não pode ser permanente nesta existência. Ela comparece como vislumbre, clarão, epifania. Seu solo, ainda que buscado, é instável, pois vivemos no entrechoque do que passa e do que permanece. E talvez por isso mesmo seu valor seja tão alto.

A chave, nesse contexto, está na distinção ancestral entre prazer e dor.
O prazer, no seu modo imediato, é sensorial, passageiro, muitas vezes distração. A dor, por sua vez, é reveladora — força que rasga, mas que também depura. Na intermitência entre ambos, pulsa a experiência humana. E é justamente nesse vai e vem — entre o gozo que não basta e a dor que transforma — que a travessia se realiza.

Nesse interin, vejamos como o ontem e o hoje interpretaram e interpretam cada um desses aspectos.

Prazer para os antigos
Na Antiguidade, o prazer era visto com ambivalência. Para os estoicos e platônicos, era instável, ilusório, e muitas vezes inimigo da razão. A liberdade consistia em não ser escravo das sensações. Já os epicuristas viam o prazer como critério do bem, mas compreendido como ausência de dor (aponia) e serenidade da alma (ataraxia). Psicologicamente, o prazer era regulado pela razão e pela moderação, como um campo de cultivo interior e não de consumo exterior.

Prazer para os modernos
A Modernidade transforma o prazer em ideal e em direito. O hedonismo iluminista e o utilitarismo elevam-no a critério ético: maximizar prazeres, minimizar dores. Com Freud, o prazer torna-se força regente do psiquismo inconsciente. A subjetividade moderna reivindica o prazer como expressão de sua autenticidade e liberdade. Psicologicamente, o prazer deixa de ser algo a ser contido — torna-se meta, linguagem, quase um dever.

Dor para os antigos
A dor era instrutora da alma. Para os estoicos, ela era indiferente: o que importava era a virtude diante dela. Para os cristãos, era via de redenção, de identificação com o sofrimento divino. No budismo, a dor é consequência do apego; no hinduísmo, um reflexo do karma. Psicologicamente, a dor era aceita como parte da jornada, um fogo que purifica — não uma anomalia, mas um estágio da ascensão.

Dor para os modernos
A dor moderna é escândalo. Ela deve ser evitada, negada, medicada. O sujeito moderno, moldado pela ciência, vê a dor como falha no corpo, na mente ou no mundo. Com Freud, a dor psíquica aparece como conflito pulsional. Hoje, muitas vezes, é ocultada, estetizada ou patologizada. Psicologicamente, tornou-se sinal de anormalidade, e não mais um portal de revelação.

O Ecos da Medida: Entre o Prazer Antigo e a Dor Moderna.

À primeira vista, o prazer dos antigos e a dor dos modernos pertencem a domínios opostos da experiência: um sereno, outro caótico; um buscado, outro evitado. Contudo, há um ponto de convergência onde ambos se revelam espelhos de uma mesma carência: a ausência de medida.

Para os antigos, sobretudo entre estoicos e epicuristas, o prazer que valia era aquele que não tomava o sujeito de assalto, mas que brotava da harmonia interna — um prazer quase silencioso, habitado pela razão, sustentado pelo autocontrole. O excesso era vício, a volúpia era ruína. O verdadeiro prazer era fruto de uma sabedoria que sabia recusar para poder gozar. Era o prazer sob regime de forma: medido, filtrado, orientado.

Já a dor moderna, ao contrário, emerge de um mundo que perdeu o sentido da medida. Na busca incessante pelo gozo, o sujeito se fragmenta — e a dor aparece não como um acontecimento exterior, mas como o colapso interno de uma estrutura esvaziada. Não há mais forma que contenha, nem eixo que sustente. A dor moderna é a consequência direta de um prazer sem fronteiras. Quando o prazer se absolutiza, a alma se desregula — e sofre.

Assim, prazer e dor se cruzam no mesmo território: o da desmesura. O prazer antigo adverte contra ela, como quem reconhece no excesso o germe da destruição. A dor moderna é o preço de tê-la ignorado — um grito que denuncia o que se perdeu ao dissolver os limites.

Ambos, à sua maneira, apontam para o mesmo imperativo: reencontrar o centro. Pois tanto o prazer verdadeiro quanto a dor redentora exigem uma forma, uma contenção, uma moldura que lhes dê sentido — e não apenas intensidade.

O Esvaziamento do Sentido: Entre a Dor dos Antigos e o Prazer dos Modernos.

Se a dor dos antigos era cheia de sentido, e o prazer dos modernos é vazio de direção, então o ponto onde se encontram é precisamente na relação com o significado — ou na perda gradual dele.

Para os antigos, a dor era parte do caminho. Um peso, sim, mas um peso que elevava. A alma, em sua travessia, deveria suportá-la como quem carrega um símbolo: cada sofrimento era uma prova, uma depuração, um rito. No estoicismo, era ocasião de virtude; no cristianismo, era comunhão com o sagrado; no budismo, era um sintoma do apego, e portanto uma chave. A dor, mesmo brutal, estava imersa em sentido. Ela falava — ensinava.

Já o prazer moderno, ao contrário, muitas vezes se desenrola num cenário mudo. É consumo, performance, repetição. A tecnologia o tornou acessível, imediato — mas ao custo da profundidade. O prazer moderno tende a não falar. Ele não aponta além de si. Não redime, não revela, não orienta. É experiência sem destino, sensação sem símbolo. E, paradoxalmente, quanto mais se acumula, mais vazio se torna.

Nesse ponto, dor e prazer trocam seus lugares: a dor dos antigos carregava um conteúdo espiritual; o prazer dos modernos frequentemente revela um vazio existencial. Ambos se tornam experiências-limite — mas em direções opostas.

A dor antiga erguia a alma para cima. O prazer moderno frequentemente a dispersa para fora.
Mas o que está ausente em ambos — no tempo presente — é a relação com o absoluto, com um eixo de transcendência que os ordene.
Assim, mesmo opostos em natureza, dor e prazer revelam-se irmãos naquilo que hoje lhes falta: sentido.

Formas em Ruína: O Prazer e a Dor como Espelhos do Sentido Perdido.

A história do espírito humano pode ser lida como uma oscilação entre prazer e dor — não apenas como experiências físicas, mas como figuras simbólicas da alma. Cruzando o tempo, vemos como esses afetos se metamorfoseiam, deslocando seus pesos, invertendo seus lugares, revelando o que falta ao sujeito em cada época. E ao cruzar suas linhas, percebemos que o que se alterou não foi apenas o que se sente, mas como se sente — e por que se sente.

Para os antigos, o prazer era um exercício de medida. Não era a explosão, mas o repouso. Epicuro, por exemplo, buscava não o excesso, mas a tranquilidade da alma. O prazer verdadeiro era aquele que não agitava, mas pacificava; que não expandia o ego, mas o harmonizava com o cosmos. Era um prazer sob o regime da forma: educado, ponderado, contido — um prazer com sentido.

No mundo moderno, esse regime se desfez. O prazer tornou-se autônomo, multiplicado, desordenado. A técnica nos entregou seu corpo, mas não sua alma. Consumido como fim em si, o prazer hoje muitas vezes já não fala. É um impulso sem direção, uma embriaguez contínua que encobre, mas não preenche. É nesse gozo sem gravidade que surge a dor moderna: uma dor que nasce não da perda, mas da saturação, não do vazio, mas do excesso. Uma dor que não orienta — apenas paralisa.

Mas se o prazer moderno parece mudo, a dor dos antigos falava alto. Ela era pedagogia, rito, revelação. Para os estoicos, suportar a dor era tornar-se forte. Para os cristãos, era purificação. Para os orientais, era a denúncia do apego. A dor tinha função, tinha lugar. Era sofrimento com estrutura — uma dor com sentido.

Aqui se dá o grande cruzamento: enquanto o prazer antigo era medida, o prazer moderno é excesso. Enquanto a dor antiga era símbolo, a dor moderna é sintoma. E, paradoxalmente, os afetos trocaram de alma. O prazer se tornou oco; a dor, surda.

Ambos — prazer e dor — encontram-se hoje em estado de esvaziamento. O que antes era forma, tornou-se fluxo. O que antes elevava, agora dispersa. O ponto comum entre o prazer dos antigos e a dor dos modernos é a lembrança da medida. Já o ponto comum entre a dor dos antigos e o prazer dos modernos é o desaparecimento do sentido.

É nesse duplo movimento que se revela a urgência da travessia: restaurar o eixo, redescobrir a forma, reconstituir um modo de sentir que aponte não apenas para a intensidade das sensações, mas para sua finalidade espiritual.

Epílogo: O Nome Velado da Felicidade.

Por detrás da dor dos antigos e do prazer dos modernos, por detrás do prazer dos antigos e da dor dos modernos, o que se move é sempre o mesmo impulso silencioso: o desejo de felicidade.
Não a felicidade como produto ou euforia, mas aquela antiga e constante, quase inefável, que não muda com os séculos, embora mude de roupa a cada geração.

As formas culturais, os sistemas morais, os discursos filosóficos — todos ensaiam passos diferentes, mas no fundo bailam ao redor da mesma ausência: uma paz que reconcilie o sujeito consigo, com o outro e com o tempo. A dor, quando aceita, é caminho. O prazer, quando compreendido, é sinal. Ambos são apenas expressões provisórias de uma sede fundamental: viver em conformidade com a própria essência.

O mundo antigo soube moldar essa busca na linguagem da ordem, da virtude e da forma. O mundo moderno a distorceu na direção da liberdade absoluta, da autonomia dissoluta e do consumo. Mas o centro permanece o mesmo:
quer-se ser pleno, quer-se durar em paz — quer-se, enfim, ser feliz.

Não se trata de negar os contrastes entre épocas, mas de reconhecê-los como variações de superfície sobre uma constante subterrânea. A felicidade — ou o que alguns chamam de salvação, iluminação, eudaimonia, bem-aventurança — é a estrela imóvel por trás da dança dos sentimentos.

E talvez o maior sinal de sabedoria seja este: não confundir a forma com o fim, não tomar o prazer como destino nem a dor como desgraça, mas atravessar ambos com a serenidade de quem sabe que tudo, absolutamente tudo, é apenas linguagem cifrada da alma a caminho de si mesma.

Rostos da Felicidade: As Oito Vias Filosóficas em Direção ao Bem.

1. Realismo

Essência: A felicidade está em viver de acordo com a natureza das coisas — ou seja, conforme a ordem objetiva do ser.
Visão da felicidade:

Para o realista clássico (como Aristóteles e Tomás de Aquino), a felicidade (eudaimonia ou beatitudo) consiste em realizar a essência da natureza humana, que é racional e social.

Não é uma sensação, mas um estado de plenitude objetiva, alcançado pela virtude e pelo uso reto da razão.

O bem e a verdade são reais e independem da vontade ou sensação subjetiva.

Chave: Felicidade é viver em conformidade com a ordem do ser — não com os desejos.

2. Empirismo

Essência: A felicidade é a maximização do prazer ou bem-estar, conforme a experiência individual.
Visão da felicidade:

Para empiristas como Locke, Hume e, mais tarde, os utilitaristas (Bentham, Mill), felicidade tende a ser entendida como prazer ou ausência de dor.

Locke fala em “busca do prazer e fuga da dor” como motores naturais do agir humano.

Os empiristas tendem a tratar a felicidade como algo subjetivo, mensurável pelos efeitos nas sensações ou preferências.

Chave: Felicidade é sensação positiva acumulada; deve ser mensurada com base na experiência concreta.

3. Idealismo

Essência: A felicidade é alcançada quando o espírito se reconhece como livre e racional — quando se une ao absoluto.
Visão da felicidade:

Em Kant, a felicidade é uma inclinação natural do homem, mas não é o fundamento da moral. A ética exige agir por dever, não por busca da felicidade. Contudo, a relação entre virtude e felicidade aparece na ideia do “sumo bem”.

Em Hegel, a felicidade não é individual, mas histórica e espiritual: o Espírito (Geist) realiza sua liberdade ao longo do tempo — o sujeito feliz é aquele reconciliado com sua função no todo racional da história.

Chave: Felicidade é reconciliação entre liberdade e razão — um estado do espírito que se reconhece no universal.

4. Positivismo

Essência: A felicidade é o produto da ordem social, do progresso científico e da moral objetiva baseada nos fatos.
Visão da felicidade:

Em Comte, o pai do positivismo, a felicidade é possível quando a sociedade substitui o caos metafísico pela ordem científica.

O indivíduo é feliz na medida em que serve ao coletivo e aceita a ciência como guia.

A emoção altruísta (como o amor universal) é a base afetiva da ordem social — um tipo de religiosidade secular.

Chave: Felicidade é ordem, progresso e serviço ao todo — moldada por um espírito científico e moral.

5. Racionalismo

Essência: A felicidade é viver de acordo com a razão pura — uma mente em harmonia com as verdades eternas.
Visão da felicidade:

Para Descartes, o sábio, por dominar suas paixões e seguir a razão, encontra tranquilidade interior — felicidade como autonomia racional.

Em Spinoza, a felicidade (beatitudo) é o conhecimento intuitivo de Deus ou da Natureza: quando a alma compreende a necessidade do real, alcança a alegria ativa — liberdade interior.

Para Leibniz, a felicidade está no desenvolvimento da perfeição racional, mesmo num mundo aparentemente imperfeito.

Chave: Felicidade é lucidez e conformidade com a razão universal — inteligência unida ao todo.

6. Existencialismo

Essência: A felicidade é uma conquista singular, nascida da autenticidade diante do absurdo ou da angústia de existir.
Visão da felicidade:

Para Kierkegaard, a verdadeira felicidade só é possível diante de Deus, por meio do salto da fé — antes disso, o sujeito vive em desespero disfarçado.

Para Sartre, o homem está condenado à liberdade: não há natureza humana pré-definida. Felicidade é assumir essa liberdade com responsabilidade, mesmo diante do vazio.

Camus propõe a “felicidade trágica”: reconhecer o absurdo e, mesmo assim, afirmar a vida — como Sísifo que sorri enquanto empurra a pedra.

Chave: Felicidade é autenticidade diante do nada — é ser fiel ao próprio existir, mesmo sem garantia de sentido.

7. Fenomenologia

Essência: A felicidade emerge da abertura intencional do sujeito ao mundo e da vivência plena dos fenômenos.
Visão da felicidade:

Husserl não trata diretamente da felicidade, mas sua fenomenologia da consciência permite pensar a felicidade como plenitude da vivência intencional.

Merleau-Ponty vê o corpo como condição do mundo vivido — felicidade seria enraizamento sensível e existencial no mundo, não fuga dele.

Para Edith Stein, a felicidade é uma unidade entre alma, verdade e comunidade, com forte influência da mística cristã.

Chave: Felicidade é presença lúcida ao mundo vivido, onde o sujeito se realiza pela percepção e sentido encarnado.

8. Niilismo

Essência: A felicidade é uma ilusão herdada de valores desfeitos — deve ser superada ou resignificada.
Visão da felicidade:

Em Nietzsche, o niilismo destrói os valores antigos (Deus, moral, verdade) e expõe a farsa da felicidade tradicional. A resposta é o além-do-homem, aquele que cria seus próprios valores e diz “sim” à vida em sua totalidade.

O niilismo passivo (Schopenhauer, em parte) vê o mundo como sofrimento sem redenção — a felicidade seria a supressão do desejo, ou a negação da vontade.

Para o niilismo contemporâneo (Cioran, Ligotti), a felicidade é uma mentira útil, um véu contra o horror do ser.

Chave: Felicidade é ficção ou superação trágica do vazio — só existe para quem ousa criar novos sentidos no caos.

Abaixo, elaboro um paralelo classificatório entre as oito correntes filosóficas que discutimos, com base em seu grau de afinidade e adaptação ao cristianismo, utilizando uma escala de magnitude por mim proposta:

> Escala:

Maior magnitude = maior compatibilidade com os fundamentos cristãos (ontológicos, éticos, escatológicos e soteriológicos).

Menor magnitude = maior divergência ou oposição essencial aos pilares do cristianismo.

CLASSIFICAÇÃO: da menor à maior magnitude de adaptação ao cristianismo

8. Niilismo → Menor magnitude

Por quê?
O niilismo rejeita a ideia de sentido absoluto, valor objetivo e finalidade transcendente — pilares centrais do cristianismo.
Nietzsche declara a “morte de Deus” como o fim da moral herdada.

Incompatibilidades:

Destruição de valores objetivos

Ceticismo quanto à redenção, graça ou sentido do sofrimento

Afirmação do caos como solo último do real

7. Positivismo

Por quê?
O positivismo substitui o transcendente pelo científico e o espiritual pelo social. Para Comte, a religião é útil apenas enquanto fenômeno moral, devendo ser substituída pela “religião da humanidade”.

Incompatibilidades:

Redução da fé a fenômeno histórico

Rejeição da metafísica e da revelação

Moralidade sem transcendência

6. Empirismo

Por quê?
O empirismo tende a ignorar o transcendente, privilegiando o que é observável e experienciável. Embora menos hostil que o positivismo, a fé cristã — com seus dogmas, milagres e metafísica — não encontra solo firme aqui.

Incompatibilidades:

Ceticismo em relação a realidades não empíricas

Tendência ao hedonismo ou utilitarismo moral

Redução do espírito à sensação

5. Existencialismo

Por quê?
Há duas faces aqui: a cristã (Kierkegaard) e a ateia (Sartre, Camus). Kierkegaard defende a fé como o salto necessário diante do desespero — profundamente cristão. Já Sartre e Camus fazem do homem o único legislador.

Ambiguidade:
Fortemente cristão em Kierkegaard
Fortemente ateu em Sartre
Média de magnitude: moderada, com alto potencial espiritual

4. Fenomenologia

Por quê?
A fenomenologia abre espaço para o espírito, a interioridade e a vivência do sagrado, especialmente em autores como Edith Stein e Michel Henry.

Compatibilidades:

Valorização da pessoa e da consciência intencional

Abertura para a transcendência

Forte influência cristã em alguns autores


Limite:

Suspende o juízo metafísico — não afirma diretamente a existência de Deus

3. Idealismo

Por quê?
O idealismo (sobretudo o alemão) incorpora elementos cristãos como o espírito, a liberdade e o absoluto. Kant dá base moral à religião; Hegel vê o cristianismo como forma racional da religião do espírito.

Compatibilidades:

Deus como espírito absoluto (Hegel)

Moral como base da fé (Kant)

Limite:

Tendência a reinterpretar Deus como conceito (não Pessoa)

2. Racionalismo

Por quê?
Em autores como Descartes, Leibniz e Spinoza, há uma clara busca pela ordem, perfeição e razão divina. Leibniz, por exemplo, busca conciliar razão com fé e defende a existência do melhor dos mundos possíveis.

Compatibilidades:

Ordem racional do universo criada por Deus

Alma imortal e liberdade moral

Limite:

Spinoza se distancia do Deus pessoal

1. Realismo → Maior magnitude

Por quê?
A metafísica realista (Aristóteles, Tomás de Aquino) é a espinha dorsal da teologia cristã, especialmente na escolástica. Realismo admite a existência objetiva do bem, da verdade e de Deus.

Compatibilidades:

Deus como ato puro e causa primeira

Essência humana e finalidade espiritual

Virtude como meio de salvação

Total afinidade: doutrina, moral, escatologia

Resumo da Escala de Magnitude:

Magnitude---Corrente Filosófica---Adaptação ao Cristianismo

8: Niilismo: Radicalmente incompatível.
7: Positivismo: Rejeita o transcendente.
6: Empirismo: Desinteresse pelo espiritual.
5: Existencialismo: Dividido: cristão em Kierkegaard, ateu em Sartre
4: Fenomenologia: Abertura ao espírito; neutra, mas frutífera.
3: Idealismo: Adaptação conceitual, mas não devocional.
2: Racionalismo: Compatível com estrutura teológica
1: Realismo: Totalmente integrado à doutrina cristã.

A Felicidade Inalterável: Da Angústia do Tempo ao Gozo em Deus.

Desde os tempos mais remotos, o homem busca a felicidade como quem busca por sua pátria perdida. Entre abismos interiores, paixões desencontradas e labirintos sociais, ele caminha tateando — ora pela dor que quer calar, ora pelo prazer que deseja eternizar. Mas nada, absolutamente nada no mundo, possui a substância que sacia o coração humano. O prazer se esgota, a dor retorna, os projetos desmoronam e o espírito se cansa. Tudo é instável. Tudo é insuficiente.

O desejo de felicidade não é, portanto, apenas um apetite: é uma sede ontológica, uma inclinação da própria essência humana. Não se trata de uma construção cultural, mas de algo que emerge do mais profundo da alma, como quem intui um Bem que não se encontra neste mundo. Os antigos já viam isso: Platão falava da nostalgia do mundo das ideias, Aristóteles buscava a eudaimonia como realização da essência, e os padres da Igreja apontavam: essa sede é sede de Deus.

Cristo, na plenitude dos tempos, revela o que todos buscavam às cegas: a verdadeira felicidade está em Deus, porque só Ele é o Bem que não muda, o Amor que não trai, o Ser que não se dissolve no tempo. E mais: é em Cristo, Deus feito homem, que essa felicidade se torna possível, pois Ele reconcilia a criatura com o Criador e oferece não um prazer passageiro, mas uma beatitude eterna, que começa aqui como semente e se consuma na eternidade.

Fundamentação pelo Realismo Filosófico.

O realismo, especialmente na tradição aristotélico-tomista, oferece as bases mais sólidas para compreender e justificar essa afirmação.

1. A felicidade é o fim último do ser humano

Todo agente age por um fim. No caso do homem, esse fim é a felicidade, definida como a plena realização de sua natureza racional.

Como a natureza do homem é espiritual, sua realização última não pode estar em bens materiais, mas em algo absoluto e eterno.

2. O bem supremo não está neste mundo

Os bens sensíveis são finitos e imperfeitos. Nenhum deles satisfaz de modo pleno e duradouro.

Assim, conclui-se que o bem supremo só pode ser o próprio Ser absoluto: Deus.

3. Deus é o ato puro, causa primeira, fim último

Deus é aquilo cujo ser é sua essência, o único que existe por si e plenamente. Por isso, Ele é o Bem por excelência.

Participar de Deus é participar do Ser e da Felicidade em sentido pleno.

4. Cristo como mediador entre o finito e o infinito

Se o homem não pode, por si só, alcançar a beatitude divina, Cristo, como Deus encarnado, se torna a ponte ontológica e existencial entre a miséria humana e a glória divina.

Nele, a felicidade não é ideia, é Pessoa. Não é conceito, é comunhão.

Conclusão: O realismo permite concluir que a felicidade não é uma construção subjetiva, mas uma realidade objetiva inscrita na ordem do ser. E só há um ser que possa preencher essa aspiração última: Deus. Em Cristo, esse Bem se oferece ao homem como graça, caminho e verdade. Eis por que, apesar das eras, filosofias e modas, a alma humana só repousa quando repousa nele.

A seguir, elaboro uma extensão do texto anterior, trazendo uma fundamentação mais robusta com citações diretas e análises de Tomás de Aquino, Santo Agostinho e um contraponto com Kierkegaard — mostrando como essas três vozes, embora vindas de contextos distintos, convergem no essencial: Deus como o único fundamento da felicidade verdadeira.

1. Tomás de Aquino – A Beatitude como Atuação da Intelectio no Bem Absoluto

Na Summa Theologiae, Tomás pergunta: "Utrum beatitudo hominis consistat in divitiis, vel aliis rebus temporalibus?" — “A felicidade do homem consiste nas riquezas ou em outras coisas temporais?”
A resposta é clara: não. Nenhum bem criado é suficiente para preencher a vontade humana, pois ela tem sede do infinito:

> "Ultimus finis hominis est beatitudo: quae consistit in visione essentiae divinae."
("O fim último do homem é a beatitude, que consiste na visão da essência divina.") — STh I-II, q. 3, a. 8

Para Tomás, a alma racional é feita para contemplar. E como só o infinito pode satisfazer o apetite da razão, Deus é a única resposta capaz de preencher essa demanda de modo perfeito e estável. O realismo aqui se manifesta: não se trata de um desejo ilusório, mas de uma estrutura da própria realidade humana.

A felicidade, então, não é um sentimento, mas uma atividade contemplativa da inteligência sobre o Ser por excelência — uma operação espiritual de acordo com a essência do homem.

2. Santo Agostinho – O Coração Inquieto que Deseja Retornar ao Seu Princípio

Agostinho, precursor do realismo cristão, expressa com força poética a mesma verdade:

> "Fecisti nos ad te, Domine, et inquietum est cor nostrum donec requiescat in te."
("Fizeste-nos para ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em ti.") — Confissões, I, 1

Para Agostinho, o homem experimenta a dispersão interior — uma luta entre desejos conflitantes, paixões e vaidades — porque se afastou de seu princípio, que é Deus. A felicidade, portanto, é um retorno ontológico à origem, que é Amor eterno.

Agostinho entende a felicidade como participação no Ser divino, que é ao mesmo tempo verdade e bem, luz e amor. A felicidade não é dada pelos sentidos, mas pela alma que se reconcilia com a sua fonte.

3. Kierkegaard – O Salto Existencial da Fé como Caminho para o Infinito

Kierkegaard, apesar de ser um autor moderno e existencialista, radicaliza o problema: para ele, o homem moderno está perdido na angústia do possível, dividido entre o finito (a estética) e o infinito (o ético-religioso). A única superação possível é o salto da fé.

> "A fé é este paradoxo: o indivíduo é superior ao universal." — Temor e Tremor

Em outras palavras, só por um movimento existencial da alma, que aceita o absurdo e confia plenamente em Deus, é que a felicidade pode ser alcançada. Para Kierkegaard, Cristo é a ponte entre o desespero humano e a plenitude eterna, porque Ele encarna o paradoxo do infinito que se faz finito.

Embora sua linguagem seja mais subjetiva, ele compartilha com Agostinho e Tomás a certeza de que a verdadeira felicidade não está no mundo, mas em Deus — e só é acessível pela fé.

Conclusão: O Fim do Homem é Deus – Ontologia e Existência Convergentes.

Com Tomás, vemos que a felicidade é ato perfeito do intelecto que contempla o Bem absoluto.
Com Agostinho, entendemos que a alma só repousa no Ser que a criou.
Com Kierkegaard, percebemos que só o salto da fé vence a angústia e abre a porta da beatitude.

Três caminhos, um mesmo fim: Cristo como plenitude do Ser, do Amor e da Verdade.
Não há felicidade fora d’Ele — e tudo o mais, no fundo, é apenas nostalgia de Deus.





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