O homem moderno vive um dilema — uma espécie de dúvida metódica —, não aos moldes daquela que serviu de alicerce para mudanças estruturais na modernidade. Esta é mais profunda, e sua resposta, ainda que encontrada, não sacia definitivamente a necessidade que a própria pergunta carrega.
Na dúvida metódica clássica, o sujeito mergulhava na própria alma em busca de si, daquele que, ali, pudesse ser o detentor do domínio do conjunto. Nesta, porém, o sujeito mergulha para fora da alma, na tentativa de encontrar, não o sujeito, mas antes um simulacro dele — uma espécie de “eu no outro”.
Essa pergunta, na verdade, não é nova. Ela já esteve no horizonte de muitos do mundo antigo, mas então formulada de modo substancialmente distinto. Tales, Heraclito, Parmênides, Sócrates — todos, de certo modo, agiam assim: buscavam no entorno esse eu, essa força geradora, esse princípio. Contudo, jamais o faziam abandonando sua unidade primordial, seu centro.
O homem contemporâneo, por sua vez, realiza essa busca ao custo de romper com essa unidade, com esse centro que é o eu. E, nesse gesto, exclui sem cerimônia justamente a única ferramenta capaz de ampará-lo em sua própria busca metódica.
Podemos, portanto, desenhar novamente esses dois caminhos: o primeiro, centrado na busca do eu por uma ordem; o segundo, na busca de uma ordem que organize o eu. São duas perguntas na tentativa de uma única resposta — que, deficiente, se traveste de duas.
Esse deslocamento, ancorado numa resposta precária, não satisfez algumas almas. Estas, esquecendo de como a pergunta deveria ser formulada, aceitaram de imediato qualquer resposta. E ela sequer precisa ser convincente — basta que exista. Afinal, qualquer resposta é válida quando a pergunta deixou de ser crucial. E essa, aparentemente, para o homem moderno, serve apenas para preencher a ilusão de que ele pode fazer a pergunta. Pois, em última instância, isso o satisfaz mais do que se, de fato, encontrasse esse santo graal.
Aristóteles dizia que o homem é um ser mimético; vive se movendo por imitação. Imita o que sente, como sente, e, imitando, se acomoda nesse mundo de reflexos e repetições. Essa necessidade de copiar o que existe no entorno é, antes, uma ferramenta do que uma dependência. Sua capacidade de adaptação encontra justamente aí uma de suas principais armas.
Copiamos trejeitos naturais — como o movimento das folhas que inspira a construção de abrigos, o voo dos pássaros que um dia culminou na criação das máquinas voadoras, ou ainda a observação dos ciclos da natureza para regular nossas próprias rotinas.
Copiamos trejeitos sociais — o modo de falar, os gestos, os padrões de comportamento, a maneira de se vestir, de pertencer, de ocupar os espaços, segundo o grupo, a cultura, o status ou a imagem que desejamos refletir.
Copiamos, inclusive, trejeitos corporais — o riso que se contagia, a postura que inconscientemente ajustamos diante de figuras de autoridade, o modo como modulamos expressões, tom de voz, olhares e até a cadência dos movimentos, buscando um alinhamento quase invisível com o outro.
Dito isso, é necessário, para a conclusão de uma ideia, que nos atentemos à causa final à qual ela se dirige. No caso em questão — a resposta a essa dúvida metódica do eu no outro —, é fundamental que não deixemos de levar em conta alguns aspectos.
Primeiro: a dúvida existe.
Segundo: ela não é a busca de uma ordem para o eu, mas do eu nessa ordem.
Terceiro: ela se ancora justamente nesse fator — o da imitação.
É na imitação daquilo que nos envolve, desse entorno que se apresenta a nós como algo único, que buscamos alguma semelhança. Precisamos ter nossa presença garantida pela certeza profunda de uma existência que faça sentido.
Portanto, a busca pela resposta começa por um ponto crucial: qual é o modelo que estamos utilizando para garantir que essa resposta seja válida?
O Modelo como Ferramenta na Busca do "Eu no Outro".
Um modelo é uma matriz — um conjunto de ações pré-definidas que nos auxilia na resolução de alguma coisa. Sem modelos que possamos seguir, não somos capazes de modelar nada em nosso caminho. E modelar, para o homem, é fator determinante nessa jornada.
Como aquele sujeito que, convencido de que era único, recusava qualquer ideia de modelo. Seguindo sua jornada, ia de barranco em barranco, acreditando que cada queda era um sinal dos deuses. Até que, certo dia, descobriu que até a própria descrença na existência de um modelo era, em si, um modelo — e que este, inclusive, podia ser copiado. Mas aí, já era tarde.
O ateísmo — esse esvaziamento da alma — tem raízes, como tudo. E o desenvolvimento dessa crença na não crença transborda, nos dias atuais, a taça que chamamos de alma. Ela, envolta nessa dúvida metódica, segue em busca de uma resposta que não a comprometa com modelo algum — e, nesse caminho, vai destroçando vidas.
Hoje, a depressão, a angústia e todas essas contingências negativas do espírito levam, à cova rasa, milhões de pessoas ao redor do mundo. Trata-se de uma estagnação ancorada na dúvida — uma dúvida que, representando apenas o movimento de mudança, e nunca a coisa mudada, converte-se em responsável por sofrimentos ontológicos que, na atual circunstância, só tendem a se intensificar.
Demais, se precisamos de um modelo para nos orientar, ele não pode estar em nós, como acreditam os céticos da modernidade. Ele está, antes, no mundo que nos envolve.
Portanto, é somente se agarrando a um modelo que podemos atravessar essa coisa à qual chamamos de vida.
Cristo — Único Modelo Válido.
Como falei anteriormente, e venho repetindo, necessitamos de um modelo, de uma matriz — um do qual possamos extrair nuances de interpretação dessa ordem que, no mundo, se apresenta a nós.
Na Antiguidade, essa matriz encontrava ecos na sua aplicação. Os jovens tinham modelos rígidos — de cultura, disciplina e virtude — que deveriam seguir, apoiando-se neles para não serem tragados pela descrença na alma quando esta, por fim, alcançasse alguma certeza profunda.
Já na modernidade, esse modelo não está solidamente ancorado naquilo que chamamos de cultura, nem desperta em nós qualquer senso de necessidade pela reprodução de uma disciplina. Ele é, antes, uma relativização do aparente e do passional.
Foi justamente visando essa deficiência que a Criação interveio. Na esteira da lógica, há uma regra fundamental para sua própria manutenção — e até para sua existência. Damos a isso o nome de Razão, que, na gênese de sua fundação, se manifesta diretamente em um termo: o Logos.
O Logos não é, apenas, um termo; é uma necessidade. Uma necessidade que o homem encontrou para oferecer a essa matriz a possibilidade de ser aplicada, compreendida e utilizada.
O Logos de algo é a sua razão última — o princípio fundante daquele ente. Podemos dizer, portanto, que é sua essência. A substância — do latim sub-stare, “aquilo que está por baixo, que sustenta” — é essa unidade. E sua essentia, “aquilo pelo qual algo é o que é”, se mostra, não apenas como o essencial, mas como a forma em sua manifestação no mundo das coisas.
Essa intervenção da Providência veio na forma de um compromisso — um gesto de amor único — que, como promessa eterna, ofereceu ao homem a inserção, neste mundo, de um modelo absoluto. Um modelo que conferiria ao homem a possibilidade de responder a qualquer dúvida metódica que se apresentasse, por mais profunda, por mais obscura ou angustiante que fosse.
Na esfera da consciência humana, desenrola-se um teatro único — uma peça que reúne, simultaneamente, passado e futuro. Podemos dizer que, nesse mundus mentis do presente, o homem, valendo-se das delimitações e infinitudes que esse espaço oferece, vai modelando aquilo que chamamos de “possibilidades”, sempre em função do outro.
Ajusto meus passos em função da estrada, adequo meu corpo em função da porta, e moldo minha alma em função do mundo que me cerca. E tudo isso sem perder os passos, sem perder a percepção e, sobretudo, sem perder a própria alma.
Cristo é esse modelo que permite ao homem modelar — é a matriz da modelagem. Mas é uma matriz que exige do sujeito que a contempla apenas uma coisa: ser esse modelo em totalidade.
Abraçar essa tratativa faz com que o homem não apenas responda à sua dúvida metódica, mas que também possa credenciá-la por meio de ferramentas únicas e sólidas — não permanecendo refém apenas da pergunta, que, como bem sabemos, quando desconectada de seu fundamento, só lhe oferece respostas na forma de um relativismo desenfreado.
Cristo — única alternativa: entre anjos e demônios.
A modelagem a partir de uma matriz perfeita se deu há algum tempo. Em termos de história do mundo, não conta mais que 2.500 anos. No entanto, ela convergiu em si todas as promessas feitas — quer pelos profetas, no dito direto e sagrado, quer pela descoberta de um novo modo de pensar, aquele que chamamos de filosofia.
Essa constatação carrega muito do que precisamos saber para atribuir à questão o grau de importância que ela verdadeiramente exige. Seja nos anjos do passado, envoltos em suas tentativas de oferecer ao homem um sentido de ordem — uma ordem que parte de fora para dentro, sem jamais perder o centro —, seja nos demônios do presente, que, revestidos das vestes do próprio sujeito, buscam nele, e somente nele, a resposta para essa ordem, o fato permanece inescapável: a ideia de modelo é inevitável.
Evidente, portanto, que a própria concepção de modelo — assim como a evolução da dúvida que o cerca — também sofreu um processo de aperfeiçoamento e refinamento ao longo da história.
Se olharmos para a tradição, encontraremos essa linha de pensamento já em Aristóteles, que concebia o homem como ser mimético, capaz de aprender e transformar o mundo pela imitação do real. Avançando, passamos por Agostinho, que reposiciona o modelo no eixo da transcendência, propondo que a verdadeira imitação só pode ser aquela do Criador. Chegamos então a Tomás de Aquino, que estabelece, no conceito de Lei Eterna, a moldura metafísica que permite ao homem modelar-se segundo a ordem do Ser.
Na modernidade, essa reflexão se desloca. Com Descartes, o modelo se interioriza, e o homem passa a ser, ele mesmo, o ponto de partida e de validação do real. Em Kant, essa interiorização se radicaliza, ao postular que é a própria razão humana que impõe forma ao mundo, tornando-se, por assim dizer, seu próprio arquétipo.
Por fim, esse fio atinge sua tensão máxima com René Girard, que, ao retomar a centralidade da imitação, revela o quanto o desejo humano é estruturado mimeticamente — não desejamos coisas, desejamos aquilo que o outro deseja. E é justamente aí que o modelo se converte em crise, pois, quando deslocado de um referencial transcendente, leva inevitavelmente ao conflito, à rivalidade e, no limite, ao sacrifício.
O Modelo delimita um novo mundo — Não existe fim senão em Cristo.
Dito sobre esses, e sobre a evolução da ideia de modelo como alternativa — única — de responder a essa tal dúvida metódica, voltemos à matriz que rege esse modelo: Cristo. Jesus de Nazaré, antes mesmo de ser, para muitos, o personagem fundador de uma religião, foi o modelo e a matriz por excelência. Aqui, não me detenho às suas palavras, mas ao resultado de sua intervenção no próprio tecido da realidade.
Quando falamos de Cristo como matriz, não falamos de uma doutrina, de um sistema ou de uma crença no sentido comum. Falamos de um fato ontológico, um ponto de inflexão na própria tessitura do ser. A aparição de Cristo no tempo não é um evento entre outros; é a irrupção do eterno no devir, a inserção de um modelo absoluto que redefine, desde suas bases mais profundas, o que significa ser humano.
Se o homem, até então, caminhava sob a égide de modelos fragmentários — fossem eles cosmológicos, éticos ou civilizacionais —, em Cristo se inaugura o modelo último, onde a ordem do cosmos e a ordem da alma se reconciliam sob a lógica do Logos encarnado. É a partir desse evento que o homo sapiens se torna, efetivamente, humano no sentido pleno.
Foi essa matriz que fundou a possibilidade mesma de dignidade ontológica do sujeito. A noção de pessoa — que hoje tomamos por evidente — é um fruto exclusivo do solo cristão. Antes de Cristo, não havia pessoa; havia indivíduos inseridos em ordens biológicas, políticas ou tribais, mas não havia o reconhecimento da interioridade sagrada, da unicidade irrepetível de cada ser.
Se hoje falamos em direitos humanos, em valor intrínseco da vida, em liberdade de consciência, em dignidade inviolável, é unicamente porque um dia, no seio do mundo, a cruz se ergueu como eixo de uma nova ontologia. Foi nela que se deu o colapso do mundo antigo, e com ele, das estruturas sacrificializantes que alimentaram todas as civilizações precedentes.
A própria ciência — essa que hoje tantos julgam autossuficiente — é filha bastarda do cristianismo. Não há ciência sem a pressuposição de que o mundo é ordenado, racional e inteligível; e não há tal pressuposição sem a convicção, oriunda do cristianismo, de que um Deus pessoal, racional e bom sustenta todas as coisas e as faz acessíveis à inteligência humana. A ideia de leis naturais é, ela mesma, um subproduto da teologia cristã.
O avanço moral, social, científico e tecnológico da humanidade é tributário, direta ou indiretamente, dessa matriz. Sem ela, o homem não teria passado da condição tribal; não haveria universidade, não haveria hospital, não haveria sequer a noção de caridade, de cuidado com o indigente, com o órfão, com o frágil. Sem ela, toda a arquitetura da modernidade ruiria como um castelo de areia, pois a removeção do fundamento não preserva a estrutura — apenas antecipa sua queda.
Não existe fim senão em Cristo. Porque todo fim que se pretenda absoluto fora dele será apenas a simulação de um fim — máscara precária de uma busca que jamais encontrará repouso. A história da humanidade, de fato, ou é a lenta conformação ao modelo de Cristo, ou é sua contínua agonia na recusa desse modelo.
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