segunda-feira, 5 de maio de 2025

O Ser entre Véus.

Capítulo I - Da manifestação à Subordinação.

O Ser é o tema central da Filosofia, seu carro-chefe, existindo nela como o eixo fundamental do pensar humano. Todo filósofo, seja ele quem for e independentemente de sua corrente filosófica, busca no Ser uma resposta às perguntas que se desdobram na alma humana.

Esse caráter, existente no espírito e vindo à tona através do anseio por tal predisposição, é tomado na dúvida da questão, conferindo ao Ser o rótulo de único agente da empreitada. Contudo, uma pergunta reformula essa dúvida de tempos em tempos, e ela é: o que é o Ser?

Em poucas palavras, o Ser é o que é. Parece uma resposta que, na sua constituição, é simplificada — uma espécie de reductio —, todavia, não o é. Nela, o Ser coaduna com as coisas da existência, dizendo-nos que, se algo é, ele é um ser e, portanto, o Ser é. Quando existimos numa modalidade — Homem, Animal, Objeto — estamos, em suma, exercendo uma manifestação. O termo 'manifestação' provém do latim manifestatio, derivado de manifestus, que significa 'claro', 'evidente', ou ainda 'tornado visível com a mão' (manus + festus). Assim, manifestar é tornar evidente aquilo que, até então, se mantinha velado — o Ser, portanto, manifesta-se como presença nas formas concretas da existência.

Dito isso, tracemos um comparativo com a disposição que certas almas possuem na tentativa de vivenciar esse manifestar (manus + festus). A primeira delas é o senso comum — a doxa grega — tal como se apresenta nos dias de hoje. Em segundo lugar, vejamos como a ciência moderna — a episteme grega, também atualizada à nossa época — aborda esse ente que está na base de toda e qualquer existência.

No senso comum, observamos que o Ser é tratado por meio de representações simbólicas deficientes. O homem, através dessas representações estereotipadas, joga com o Ser na busca por algo a que chamam de felicidade. Para o vulgo, Ser é ser feliz — uma ideia que não carrega nada além de um estado em troca da coisa: tudo é válido para se Ser feliz.

Já para a Ciência, a boa e velha representante da episteme, o Ser é unidade — não na forma de uma 'busca por unidade', mas na constatação de que ela só pode existir se confirmada pela própria ciência. Um exemplo disso é o chamado psicologismo moderno, no qual os efeitos só o são se puderem ser descritos segundo a comprovação de certas leis científicas. Temos aqui não um divergir em direção ao desconhecido, mas uma convergência rigorosa a uma lei estritamente racionalista.

Logo, tanto a doxa quanto a episteme modernas tratam o Ser em função de sua importância para si mesmas, conferindo-lhe uma forma de existência que depende exclusivamente do ponto de vista em questão. Contudo, há entre essas duas relações um ponto de equilíbrio, no qual uma passa a depender exclusivamente da outra. Vejamos: para a episteme, o Ser é a verdade observada pelos olhos da ciência; já para a doxa, é a verdade dependente daquilo que a autoridade em questão declara como verdade. Portanto, a doxa, na esteira da pergunta, depende hoje inteiramente da episteme, pois a autoridade vigente — aquela que dita o que é verdadeiro ou falso — é, inegavelmente, a Ciência.

Assim, podemos compreender com mais clareza por que certas atitudes sociais — por vezes verdadeiras bizarrices aos olhos do senso comum — são, ainda assim, acolhidas por todo o vulgo. Em outras palavras, por que toda uma sociedade se submete às decisões de alguns. Isso ocorre porque está inscrita na constituição do tecido social essa estrutura de dependência: a doxa subordinada à episteme, o homem subordinado a uma ideia, a vida subordinada a uma ação mecânica — em últimas palavras, o Espírito subordinado à carne.

Dito isso, abordarei mais adiante essa dependência. Por ora, cabe-nos refletir sobre ela e buscar entender como, dentro do veio da estrutura social, tal relação ganhou corpo com tamanha rapidez — afinal, o que estamos tratando aqui é da herança de milênios condensada em alguns séculos de insensatez.


Capítulo II — A Autoridade Invisível: Ciência, Técnica e o Eclipse do Ser.

Ao abordarmos essa dependência do vulgo comum por uma autoridade que o valide — ou, talvez, que o absolva da necessidade de pensar por si — emergem perspectivas de grande interesse. A autoridade, nesse contexto, não é apenas força impositiva, mas uma forma de sentido outorgado, que organiza e estabiliza a percepção do real. E isso ocorre por meio de três mecanismos fundamentais:

1. A autoridade se manifesta através de um mediador — nunca se apresenta em estado puro; necessita de intérpretes, especialistas, representantes.

2. A autoridade não encontra contraponto na doxa — cristaliza-se como verdade não discutida, legitimada por um contrato tácito: o social pactua, mesmo inconscientemente, sua submissão.

3. A autoridade é consenso institucionalizado — encarnada por corpos coletivos como academias, agências, agremiações; seu prestígio vem da permanência e da ritualização, não da veracidade.

Detenhamo-nos no primeiro ponto, o mediador. Aqui, a autoridade ganha carne e voz, e o faz por meio daquele que interpreta a norma, o dado, a lei — e que, ao interpretá-los, os recria. O mediador, portanto, não apenas transmite a autoridade, mas a constitui.

Recordemos, para ilustrar, a recente pandemia que assolou o globo. Nesse episódio, assistimos à ascensão fulgurante de órgãos de saúde e de seus representantes como instâncias quase absolutas de comando. Médicos, virologistas, especialistas em epidemiologia tornaram-se, de súbito, os novos sacerdotes do real. Seu discurso — técnico, muitas vezes hermético — traduziu-se em lei, e o Estado, tradicional detentor do monopólio da decisão, cedeu lugar, ou foi eclipsado, diante da autoridade médico-científica.

Foi um fenômeno notável: a autoridade técnica não apenas se sobrepôs à política, mas suprimiu momentaneamente o próprio caráter deliberativo do Estado. Não se tratava mais de persuadir, mas de obedecer. A ciência, transmutada em dogma, falava por intermédio de seus mediadores. E as massas, carentes de estabilidade ontológica em meio ao caos, submeteram-se. Não por coação, mas por desejo — o desejo de que alguém soubesse o que fazer.

Passemos ao segundo aspecto: a ausência de contraponto da doxa frente à autoridade instituída. No contexto contemporâneo, especialmente sob o império do poder técnico-científico, o senso comum — outrora tecido vivo da experiência coletiva — foi relegado à condição de superstição, quando não simplesmente lançado ao esquecimento.

A doxa, enquanto saber não sistematizado, oriundo da convivência, da tradição e da intuição dos corpos, perde legitimidade diante da episteme tecnocrática. Seu valor, já de antemão suspeito, é rebaixado a ruído — e sua voz, se ousa insurgir-se, é silenciada sob a acusação de ignorância. Nesse processo, opera-se uma verdadeira substituição do mundo vivido por um mundo calculado. O real torna-se aquilo que pode ser medido, previsto e controlado.

A autoridade moderna, enraizada na imagem de uma ciência infalível e desapaixonada, não necessita mais convencer — apenas demonstrar. E o que não pode ser demonstrado, simplesmente não é. Com isso, abre-se espaço para uma nova forma de dominação: não a que se impõe pela força bruta, mas a que se infiltra nas consciências pela via da legitimidade. Trata-se de uma colonização do pensamento.

A mente dos sujeitos, desacostumada ao exercício do questionamento profundo, cede lugar a um automatismo de obediência. Não mais se extermina para conquistar; agora, conquista-se persuadindo, e persuade-se pela aura de autoridade. As amarras já não são de ferro, mas de linguagem. O que se pensa está determinado de antemão por quem tem o direito de nomear. E esse direito não se discute — aceita-se, porque é sancionado pela "ciência".

Assim, a doxa, privada de lugar na esfera pública, torna-se espectro: paira como rumor ou desconfiança, mas nunca alcança o estatuto de fala legítima. A racionalidade dominante, ao invés de dialogar com o senso comum, o suprime. E ao fazer isso, recusa também o mistério, o simbólico, a pluralidade do real.

Por fim, detenhamo-nos na terceira dimensão: a autoridade enquanto consenso institucionalizado. Aqui, ela já não é apenas um enunciado técnico ou uma voz especializada — torna-se um corpo, uma presença coletiva, dotada de liturgia própria. Academias, conselhos, associações, centros de pesquisa e agências reguladoras: todos esses organismos compõem a nova catedral da verdade, onde o rito substitui a dúvida, e o pertencimento vale mais que a razão.

Mas o que legitima esse poder avassalador? Em seu âmago, há uma mutação silenciosa, uma inversão axial que redefiniu o horizonte simbólico da humanidade: a substituição do mistério transcendente pela máquina imanente. Não mais se busca o sentido nos céus, nos mitos ou nos abismos interiores — busca-se na ex machina, na produção de dados, nas simulações, nos modelos que pretendem abarcar o real como totalidade. É o triunfo do encarnado imediato, da resposta empacotada, da previsibilidade sem transcendência.

Essa autoridade coletiva opera, pois, como uma nova forma de sacerdócio. Mas ao invés de velar os segredos do Ser, ela os converte em narrativa de domínio. A ciência — outrora filha da dúvida — passa a funcionar por meio de roteiros interpretativos, convertendo-se em produtora de sentido tanto quanto de fatos. É nesse ponto que ela se aproxima da arte, mas sem a consciência de sua ficcionalidade. Ela narra, mas se diz objetiva. Constrói mundos, mas nega estar criando.

E sem crítica, não há mais o que temer. A crítica, domesticada ou marginalizada, deixa de ser o espírito da ciência e passa a ser seu antagonista externo — ou pior: um ruído incômodo, incompatível com a harmonia do consenso. Nesse contexto, a autoridade não precisa mais se justificar, apenas se repetir. Quanto mais repetida, mais sólida se torna. E assim, o ciclo se fecha: o domínio não mais depende da verdade, mas da gestão eficaz da narrativa.

Capítulo III — A Máquina da Verdade: Algoritmo, Vigilância e a Redução do Humano.

Dando continuidade às intuições anteriores, nos deparamos agora com uma constatação inquietante do presente: a verdade se maquinizou. O termo, embora forjado, traduz com exatidão o sintoma de nossa era — um tempo em que a verdade já não se revela, mas se impõe. Imposta por estruturas algorítmicas que escapam ao debate, ela assume o caráter de dogma automatizado. Assim, a narrativa dominante — ungida pela técnica, protegida pela vigilância, legitimada por estatísticas — não admite contraponto. E ao não admitir réplica, não exige mais compreensão, apenas conformidade.

Com isso, o homem vê sua autonomia no inteligir corroída. Pois inteligir, no sentido mais próprio, requer uma vontade livre — e só o livre pode reconhecer o verdadeiro. Sem liberdade interior, o que resta é a submissão àquilo que se apresenta como dado final, irrefutável. A verdade torna-se, então, um produto industrial: fabricada, distribuída, consumida, e sobretudo, vigiada.

Essa forma de verdade maquinizada encontra seu espelho mais visível na chamada sociedade de consumo. Nela, o desejo do homem já não brota do silêncio interior, nem da experiência do mundo como mistério, mas é modelado por estruturas externas, fabricadas com precisão cirúrgica. O que ele quer não é mais dele — é de um Outro impessoal, anônimo e onipresente, que lhe oferece um cardápio de vontades pré-fabricadas. Desejos em série, embalados para consumo imediato.

A felicidade, nesse cenário, deixa de ser uma conquista do espírito e torna-se um produto final. Um bem de prateleira. Tudo é projetado para garantir a repetibilidade do prazer, o conforto de uma identidade moldada pelo algoritmo, o gozo sem risco e sem transcendência. O sujeito se torna funcional — obediente às sugestões da máquina, às promessas da técnica, às métricas da satisfação.

E quanto mais consome, menos habita. Quanto mais deseja, menos é. Pois seu querer já não lhe pertence. A liberdade, condição da verdade, cede lugar à programação. A inteligência cede lugar à adesão. O humano, enfim, é reduzido.

Continua....

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