O som das folhas secas esmagadas sob os passos ecoava de modo estranho naquele espaço, como se as paredes de mármore absorvessem tudo, deixando apenas um rumor surdo, abafado, como se até o som, ali, hesitasse existir.
O homem empurrou lentamente a porta de ferro. O rangido áspero que se seguiu não foi diferente de um gemido—ou talvez de um aviso.
Lá dentro, a penumbra tinha densidade própria. Luz alguma parecia ser bem-vinda; o pouco que se infiltrava pelas frestas formava feixes oblíquos, cortando o pó suspenso, dourando-o, como se o próprio tempo ali se decomposesse em partículas.
Diante dele, dispostos lado a lado, alinhavam-se os nichos, as lápides, as placas de bronze e mármore gravadas com nomes, datas, e pequenas sentenças que jamais puderam abarcar a inteireza de quem ali jazia. Flores murchas, retratos desbotados, velas consumidas pela própria chama.
Ele caminhou até o centro do mausoléu, onde, numa mesa de pedra, repousava um crucifixo esquecido, ladeado por dois vasos que agora abrigavam apenas talos secos.
Ali, ele parou.
O peso não estava nas pedras, nem no ar, nem no cheiro de coisa encerrada, úmida e velha. O peso vinha de dentro, vinha consigo.
— Nada mais faz sentido… — disse em voz baixa, não como quem fala, mas como quem deixa escapar uma confissão indesejada.
E então olhou ao redor. Todos estavam ali. Todos. Seu pai, seu avô, o bisavô. Gerações empilhadas como vestígios de uma maquinaria ancestral que seguiu produzindo vida sem jamais perguntar se era disso que se tratava.
O que ele buscava, exatamente? Uma resposta? Uma voz? Um sinal? Ou apenas um espelho que, mesmo feito de pedra e silêncio, dissesse aquilo que o mundo dos vivos se recusa a admitir?
Ele respirou fundo. E a dúvida — não uma dúvida qualquer, mas a dúvida, aquela que nenhuma resposta dissolve — tomou forma dentro dele.
Ali, entre os mortos, buscava entender os vivos. Ou a si mesmo.
E então, algo — não um som, não um movimento —, mas uma presença, fez-se perceber.
Sua dúvida não era pequena, não era trivial — era uma rachadura na própria tessitura do mundo. A vida, sim, a vida... aquela que outrora parecia um dom, uma dádiva, uma corrente vibrante de sentidos, agora lhe parecia um enigma falho, uma arquitetura desabando sob o próprio peso.
Todas as alegrias do ontem — os risos, os gestos, as conquistas, os abraços — agora lhe pareciam fantasmas pálidos, ecos longínquos de um tempo que não mais lhe pertencia. O que antes brilhava, agora era opaco. O que antes erguia, agora pesava.
Era o peso do tempo. Não o tempo das horas, dos dias, das agendas, mas o outro tempo — aquele que corrói por dentro, que cava sulcos na alma, que transforma o presente num vasto campo de ruínas.
Ele se aproximou da lápide central. Seu próprio sobrenome estava ali, esculpido na pedra, rígido, definitivo, frio. Uma linhagem inteira encerrada em letras que resistem mais do que a carne, mais do que a memória.
Passou a mão sobre os nomes. Sentiu o relevo das letras como se tocasse cicatrizes do mundo. E pensou: "O que somos, afinal? Um intervalo entre dois silêncios? Uma centelha que arde só o suficiente para saber que vai se apagar?"
Fechou os olhos. Por um instante, desejou que as pedras falassem. Que os ossos contassem seus segredos. Que da morte brotasse, se não uma resposta, ao menos uma direção.
Mas não. O silêncio era absoluto. O silêncio era soberano.
E talvez, pensou ele, fosse exatamente isso que tentamos esconder a vida inteira: que por trás de todos os ruídos, de todos os feitos, de todas as palavras, não há nada... nada além deste silêncio.
E no entanto, ele estava ali. De pé. Respirando. Duvidando. Sentindo.
— Por quê? — sussurrou, sem saber se falava aos mortos, a Deus, ao acaso, ou apenas ao próprio vazio.
O eco não respondeu. Mas dentro dele, algo começava a se partir — ou talvez, a se abrir.
Mas os ossos falaram.
Não como se falam os homens, nem como falam os ventos ou as lembranças. Falaram na linguagem que só o abismo conhece, na vibração secreta que percorre a espinha do mundo, no murmúrio que atravessa a matéria e faz do silêncio um verbo oculto.
E as vozes, uma a uma, começaram a se erguer — não vindas de fora, mas de dentro. Como se sempre tivessem estado ali, esperando apenas que ele descesse fundo o bastante no vazio para que pudessem ser ouvidas.
E foi então que compreendeu: tudo é igual. Tudo é o mesmo. O ciclo, a repetição, o giro da roda — nascimento, luta, queda, morte. As dores, as conquistas, as esperanças, os fracassos — todos são variações de um mesmo acorde primordial.
É nessa ordem, nessa simetria oculta, nesse igual que se repete sem cessar, que se esconde o verdadeiro segredo. A ilusão, pensou, sempre esteve em querer que fosse diferente, em acreditar que algo poderia escapar ao traçado invisível que governa o real.
Então, uma voz destacou-se das demais. Mais grave, mais antiga, mais funda. Era como ouvir uma pedra falando, como se a própria terra ganhasse boca.
Seu ancestral mais longínquo. Aquele de quem só conhecia um nome perdido em pergaminhos gastos, quando muito — e, na verdade, nem isso. Um nome anterior aos nomes. Uma existência anterior à memória.
E no entanto, agora, ele o conhecia.
— Eu sou o que você é... — disse a voz, — ...e você é o que eu fui. Você se pergunta por quê... mas o porquê não existe. Existe o como. Existe o ciclo. Existe o retorno. Existe a Ordem.
O homem estremeceu. Não de medo. Mas de um reconhecimento profundo, brutal.
— A vida te enganou porque você quis ser exceção. Mas não há exceção. Tudo nasce, cresce, sofre, ama, luta... e retorna. E de novo. E de novo. E de novo.
As outras vozes, agora, formavam um coro. Um zumbido grave, hipnótico, como o som de engrenagens cósmicas girando atrás da cortina do mundo.
— O segredo... — prosseguiu o ancestral, — ...não está no que muda. Está no que permanece. No igual. Na forma que se repete sob todas as aparências.
E nesse instante, como quem desperta de um delírio secular, o homem percebeu: tudo o que sempre buscou — respostas, sentido, fuga — estava ali, o tempo todo, disfarçado na banalidade das repetições, na previsibilidade do nascer e morrer, no caminhar cego da vida que finge ser livre, mas que é Ordem.
Ordem não como prisão. Mas como aquilo que é.
E então ele viu. Não com os olhos, mas com algo mais fundo. Viu as linhas que atravessam os séculos, os fios que ligam um corpo ao outro, um nome ao outro, uma dor à outra. Viu que ele era apenas mais uma dobra no tecido de algo infinitamente maior, infinitamente anterior, infinitamente posterior.
E nesse instante — e só então — o peso começou a se dissolver.
Mas então, como um trovão cortando o céu imóvel, outra voz irrompeu no meio do coro. Mais aguda, mais próxima, mais humana. Não vinha do fundo dos séculos como a anterior, mas de um ponto mais próximo no tempo — semelhante à voz de seu pai, talvez seu avô, ou de alguém cuja marca ainda pulsava em seu sangue.
— Não! — gritou a voz. — Não te curves! Não aceite essa ordem como quem aceita o peso de uma pedra no peito! Ouvir o ciclo não é se render a ele. É compreendê-lo. É decifrá-lo. É fazer dele tua escada, não tua cova.
O homem, antes tomado pelo torpor da revelação, sentiu o choque dessas palavras como uma lâmina atravessando a névoa.
— Escuta bem... — prosseguiu a voz, firme, quase dura, — ...o erro dos homens está em achar que porque tudo se repete, nada importa. Que porque há uma ordem, deve-se ajoelhar a ela. Não! A ordem é tua bússola. É teu mapa. É o chão firme para que subas. E só sobe quem entende o jogo.
E enquanto falava, o espaço ao redor se transformava. As velas se apagaram, a luz rarefeita sumiu, e uma escuridão espessa tomou o recinto. Mas não era um vazio. Era uma escuridão grávida, prenhe de formas.
Das paredes, dos nichos, das lápides, surgiam silhuetas. Figuras desenhadas a partir de pedaços de sua memória — sombras que flutuavam, que se contorciam, que dançavam como se um vento invisível agitasse as dobras do próprio tecido do real.
Ali estavam rostos que conheceu. Ali estavam também rostos que tentou esquecer.
As memórias más — os erros, os fracassos, as dores, os medos — ganhavam corpo, projetadas como espectros, como máscaras vazias que se estendiam na penumbra. Mas também ali estavam as memórias boas — os abraços, os sorrisos, os gestos de amor, os dias em que acreditou que viver fazia sentido.
E todas essas formas, boas e más, dançavam juntas, misturadas, como se fossem partes inseparáveis da mesma coisa.
O homem caiu de joelhos, não de fraqueza, mas porque as pernas já não sustentavam o peso do que via.
— Olha! — bradou a voz — Olha bem! Isso és tu. Isso é o que tu carregas. Isso é o que te fez e o que te fará. Mas entenda: não és refém disso. És o que fazes disso. És o que constróis a partir desse caos.
O homem apertou os olhos, mas não adiantava. As formas estavam por toda parte, dançando dentro dele, fora dele, entrelaçando passado, presente e até futuros possíveis.
E a voz completou, agora num tom mais baixo, quase como um sussurro:
— A ordem não é prisão. É linguagem. E quem aprende a lê-la... liberta-se.
O vento soprou. Não havia vento. Mas soprou. E com ele, as silhuetas começaram a girar mais rápido, como se fossem ser sugadas para algum lugar além da própria escuridão.
Algo estava para acontecer. Algo que ele ainda não compreendia.
— Não! NÃO! — ele gritou, como quem rasga as próprias entranhas. — Há algo… há algo que me prende! Uma força contrária! Algo que me empurra para o fundo, que me quebra, que me faz errar, cair, sofrer… algo que me paralisa!
Seus gritos ricochetearam nas paredes como açoites lançados contra si mesmo. Ecoaram, voltaram multiplicados, como se o próprio recinto devolvesse, sem piedade, tudo o que nele havia sido lançado.
— Sempre esteve lá… sempre! Algo que me impede de ser, de seguir, de acertar, de viver! Algo que me quer no chão, esmagado, derrotado! — berrou, sem saber mais se falava aos mortos, aos deuses, ou a si mesmo.
E foi então que outra voz, fria, exata, atravessou as sombras como uma lâmina precisa:
— Tu sofres... porque não sabes ler a Ordem. — disse. Sem raiva. Sem piedade. Sem afeto. Apenas verdade.
Ele ficou imóvel. As formas ao redor se estreitaram, como se o espaço todo respirasse junto, puxando-o para dentro do próprio centro.
E então, no meio da dança disforme das silhuetas, uma voz se ergueu. Uma voz que não vinha do fundo dos séculos, nem da abstração dos ancestrais, mas de um ponto muito mais íntimo.
— Por quê... por quê? — soluçou a voz. — Por que, meu amor?
Ele congelou. Seu corpo inteiro se enrijeceu. Reconheceria aquela voz em qualquer tempo, em qualquer mundo, em qualquer existência.
— Por que fizeste isso? Por que nos deixaste morrer assim… vivos? Por que deixaste que tudo se perdesse?
Das sombras, ela surgiu. Sua esposa. Não como lembrança, não como delírio, mas como se as próprias memórias tivessem se materializado. Os olhos marejados, a boca tremendo, as mãos estendidas, como quem tenta alcançar o que já não se pode tocar.
— Poderíamos ter sido felizes… — sua voz quebrou-se em cacos, — ...nós poderíamos… tudo o que vivemos, tudo o que sonhamos, não era mentira! Mas... quando te foste, quando escolheu outros braços, outras bocas... matou a nós dois. Matou tudo. E me deixou... me deixou mentindo para mim mesma, acreditando que ainda havia chance, quando só restava ausência.
O homem caiu. As pernas finalmente cederam, não apenas ao peso do espaço, mas ao peso de si mesmo.
As imagens tomaram forma mais nítida. Vieram, uma após outra, como facas enfileiradas: os rostos, os corpos, os olhares, os gestos de traição. Não apenas carnais. Traições sutis, cotidianas — promessas não cumpridas, olhares desviados, silêncios que ferem mais do que palavras.
Viu-a sozinha. Viu-a chorando quando ele não voltou. Viu-a olhando para a cama vazia, fingindo dormir enquanto ele fingia viver. Viu os filhos, os olhares partidos, os gestos incompletos. Viu tudo aquilo que escolheu não ver enquanto caminhava em direção ao próprio abismo, rindo, embriagado, cego de si.
Ele tentou falar. A boca tremia, mas não saía som. A garganta era um nó de vidro quebrado.
— Me perdoa… — conseguiu sussurrar, mas nem sabia se era para ela, para si ou para aquele céu opaco que parecia agora esmagá-lo por inteiro.
Mas ela apenas o olhava. E suas lágrimas não eram mais de dor apenas. Eram também de um amor que não se desfaz, mesmo quando destruído. Um amor que, por isso mesmo, dói mais do que qualquer outra coisa que exista no mundo.
Ao redor, as sombras se apertavam. As memórias más dançavam de mãos dadas com as boas. Porque, no fundo, eram feitas da mesma matéria.
O chão parecia ruir. As paredes se fechavam. E ele sabia: ou entenderia agora... ou não haveria mais depois.
Ele cambaleou. Tentou fugir daquela imagem — dela, das lágrimas, das palavras que lhe rasgavam a carne mais do que qualquer lâmina jamais poderia. Correu. Correu sem saber para onde, como quem tenta escapar de dentro do próprio peito, de dentro da própria culpa.
Mas as sombras... as sombras não têm portas. O mausoléu inteiro era um labirinto sem saída, onde cada passo não levava adiante, mas mais fundo.
E então, ao virar-se, deparou-se com outro vulto. Uma nova silhueta que não precisou se formar por completo para ser reconhecida. O contorno bastava. O cheiro bastava. A vibração bastava.
Pedro.
Seu irmão de vida. Seu amigo. Seu confidente. Aquele com quem dividira sonhos, planos, dores e alegrias. Aquele com quem acreditou, um dia, que o mundo poderia ser mais leve, mais sincero, mais verdadeiro.
Mas a sombra não o olhava com ternura. Olhava-o com uma mistura de desprezo e pena.
E então, a voz — rouca, seca, amarga como fel — rompeu o silêncio:
— Você ainda não entendeu... não foi só ela. Não foi só você. Eu também estava lá. Eu também tomei parte.
O homem recuou, como quem leva um soco no centro da alma.
— Tu eras meu irmão... e eu te lancei... te empurrei... te joguei nas mãos dela. — A voz tremia, mas não de remorso. De confissão. De algo que ficou podre dentro e nunca foi dito. — Sabia da tua paixão. Sabia do quanto ela te queimava, do quanto te fazia vivo... e mesmo assim...
O silêncio apertou, como uma corda no pescoço.
— Mesmo assim, fiz dela minha. Fiz dela instrumento. Não por amor. Nem por desejo. Mas por fraqueza. Por fome. Por cobiça. Porque te ver arder... te ver destruído... de alguma forma... me fazia menos miserável. Menos pequeno.
O homem levou as mãos ao rosto, como se quisesse arrancar os próprios olhos.
Lembrou. Oh, Deus, como lembrou. Cada gesto. Cada conversa em que Pedro fingia aconselhar, fingia apoiar, fingia ser abrigo — quando, na verdade, cavava o próprio túmulo dele, empurrando-o, lenta e sutilmente, na direção daquela mulher que sabia ser perdição.
Lembrou do amor. A paixão que queimava como febre, como maldição, como bênção cruel. Lembrou do quanto sacrificou. De tudo que abandonou, de tudo que queimou por ela.
E lembrou, acima de tudo, do instante em que, ao descobrir a verdade — de que ela jamais fora sua, de que fora apenas joguete, de que fora usado, manipulado —, olhou para o abismo e, por um fio, quase se jogou.
— Eu teria... eu teria tirado minha própria vida... — murmurou, caindo de joelhos. — Eu teria... por algo que nunca foi meu... por algo que era só tua fome, tua traição, teu jogo sujo disfarçado de amizade.
As sombras apertaram mais. O chão parecia abrir rachaduras. As memórias ruins agora gritavam, berravam, roíam as paredes da razão.
E Pedro, a sombra de Pedro, deu o passo final. Aproximou-se, ajoelhou-se à sua frente e sussurrou:
— Eu te destruí... porque te amava. Mas era um amor podre. Um amor que não sabia ser amor sem destruir aquilo que invejava. Eu te destruí... porque não suportava te ver inteiro.
O homem ergueu os olhos. E ali, naquela sombra disforme, percebeu: não era Pedro apenas. Era ele também. Era o reflexo do que ele próprio carregava — a mesma fome, o mesmo erro, o mesmo abismo.
O mausoléu inteiro tremeu. As sombras giravam como um redemoinho. Tudo estava prestes a ruir. Ou a se revelar.
A pergunta, agora, não era mais por quê.
Era: O que fazer com isso?
E quando o peso do próprio corpo já parecia se dissolver no chão, quando o gosto do sal das lágrimas e do ferro do sangue mordido se misturavam na boca, aquela voz voltou.
Forte. Sólida. Sem tremor.
— Levanta-te. — ordenou. — Escuta bem, meu neto. Porque o erro não é ter caído. O erro é achar que o jogo não é cair e levantar. O erro... é o arrependimento.
O homem trincou os dentes. As sombras cessaram o giro por um instante, como se até elas se calassem diante daquela voz.
— Deves jogar. Jogar sem medo. Jogar sem remorso. Sem arrependimento. Porque quem manuseia a Ordem... quem lê a linguagem do que É... sabe que cada queda, cada dor, cada traição, cada erro... são movimentos do tabuleiro.
A voz se fez mais grave, mais próxima, como se falasse direto dentro de seu peito:
— Se sofres... é porque foste enganado. Enganado por essa ilusão maldita que chamam de vida. Porque acreditaste que viver é possuir. Que viver é reter, segurar, controlar. NÃO! Viver... é confiar.
O homem ergueu, com esforço, a cabeça.
— Confiar... que serás feliz. E que felicidade... não é possuir nada. Não é ter nada. Não é ganhar. Felicidade... é contemplar aquilo que se É.
As palavras batiam como martelos. Destruindo. Forjando.
— E ser... meu neto... ser... é simplesmente ser aquilo que se deve ser. Aquilo que já se É. Não há outro caminho. Não há outro segredo. O erro... é fugir disso. É querer ser outra coisa. É querer ser além ou aquém. Mas quem aprende a se olhar... a se aceitar na verdade do que é... esse domina o jogo.
As sombras começaram a se reconfigurar. As imagens antes caóticas, os rostos, as dores, os erros, começaram a formar linhas, padrões. Como se, sob o véu do caos, existisse um desenho. Uma escrita invisível. Uma Lei.
E agora ele compreendia: Pedro, sua esposa, suas próprias traições, suas quedas, tudo... absolutamente tudo... não eram aberrações, não eram erros fora do caminho. Eram o caminho. Eram peças. Eram movimentos.
Seu avô, cuja imagem nunca vira em vida, agora se fazia mais real do que qualquer outra coisa. Uma silhueta luminosa, sólida, que o olhava não com pena, nem com julgamento, mas com a clareza de quem sabe: a vida não é prêmio, nem castigo. É treino. É alquimia.
— Levanta-te, homem. E joga. Joga com força. Joga com verdade. E sem nunca mais te arrepender de ter sido quem foste. Porque foste... para aprender a ser quem és.
O vento soprou. Mas não havia vento.
O chão pareceu abrir. Mas não havia chão.
A Ordem... estava ali. Visível. Palpável. Pela primeira vez.
Ele sabia o que precisava fazer.
Nesse exato instante, um estrondo metálico quebrou o silêncio espesso. As portas do mausoléu, pesadas, ancestrais, rangendo como se mil anos se desprendessem das dobradiças, se abriram lentamente.
A luz de fora não entrou. Era como se o mundo lá fora não existisse mais. O que entrou... foi uma presença.
E então ele o viu. Seu pai.
Não mais como o homem frágil dos últimos dias, nem como a figura austera da infância, nem como o ausente, nem como o que falhou. Não. Ele vinha inteiro. Pleno. Sem máscara. Sem tempo.
Ao se aproximar, não disse palavra alguma. Apenas o tomou nos braços. Forte. Apertado. Como quem segura alguém que esteve perdido em um naufrágio, mas que agora voltou.
E então, com a boca próxima ao ouvido, murmurou, sereno, inevitável:
— Vê, meu filho... — disse, apertando-o mais — ...diante dos mortos... não há escapatória.
O homem fechou os olhos. As lágrimas não eram mais de dor. Nem de desespero. Eram de reconhecimento. De aceitação. De verdade.
Ele apenas balançou a cabeça. Um gesto pequeno. Mas ali estava todo o peso do entendimento. Da rendição. Não a uma derrota, mas à realidade maior: a Ordem não é evitável. A vida não é evitável. O ser... não é evitável.
E juntos... lado a lado, pai e filho começaram a caminhar.
Ao redor, as imagens giravam. Dançavam. Rostos, lembranças, fragmentos de histórias, erros, acertos, amores, dores, traições, esperanças, decepções — tudo. Uma coreografia viva de tudo aquilo que faz e desfaz um homem.
Mas agora... não dançavam por ele. Dançavam... à espera. À espera do próximo. Do próximo convidado que, um dia, cedo ou tarde, também atravessaria aquelas portas, e se veria — diante dos mortos, e diante de si — sem nenhuma escapatória.
E nesse dia... entenderia.
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