terça-feira, 27 de maio de 2025

Guia de Sobrevivência no Hospício Identitário.

 
A Tirania da Identidade sobre a Competência.

Vivemos uma época em que a sandice se traveste de virtude e a mediocridade se mascara de inclusão. Sob o pretexto de reparar as feridas históricas – que, de fato, existem e clamam por justiça – instituiu-se uma lógica perversa, onde o critério da identidade sobrepõe-se à régua da competência. Promove-se não quem é capaz, mas quem encarna um rótulo conveniente. O resultado é um teatro grotesco, onde a função se esvazia de seu fim, e o cargo torna-se vitrine para a exibição de bandeiras identitárias.

Quando a inépcia, inevitavelmente, se revela, não é o mérito que se busca, nem a autocrítica que se exercita, mas o escudo vitimista que se levanta. A crítica — ainda que técnica, legítima, objetiva — é convertida, como num passe de mágica, em ato de opressão, preconceito ou intolerância. Não se critica a má gestão, critica-se, supostamente, a cor da pele, o gênero, a orientação, ou qualquer outro marcador identitário. Assim, mata-se o debate, sufoca-se a busca pela excelência e sacrifica-se, no altar da ideologia, o próprio princípio de responsabilidade.

Essa perversão não emancipa. Pelo contrário, aprisiona. Faz da pessoa um refém eterno de seu rótulo, como se não pudesse jamais ser julgada por seus feitos, mas apenas por sua condição. O sujeito deixa de ser agente e torna-se vitrine; deixa de ser responsável e torna-se intocável. Ironia das ironias: em nome da luta contra o preconceito, institui-se uma nova forma de segregação — a do paternalismo institucionalizado.

Nenhuma sociedade se sustenta quando abdica da meritocracia em favor da engenharia simbólica. A promoção da diversidade deve ser meio, nunca fim. Quando se torna fim em si mesma, degenera em farsa. E toda farsa cobra seu preço: o colapso da confiança pública, o descrédito das instituições e, sobretudo, o aprofundamento do ressentimento social, que passa a enxergar na diversidade não uma riqueza, mas um simulacro de competência.

É preciso, pois, romper essa cadeia de delírios. Recolocar as coisas em seu devido lugar. Que se combata, sim, todo e qualquer preconceito. Mas que não se aceite, em nome disso, a ditadura da mediocridade travestida de inclusão. O verdadeiro respeito se dá quando qualquer pessoa, de qualquer grupo, tem o direito — e o dever — de ser julgada por aquilo que faz, e não por aquilo que representa.

O Custo Social da Subversão da Mérito pela Identidade

Quando a lógica identitária passa a sobrepor-se à lógica da competência, os danos não são apenas institucionais — eles são estruturais, profundos e, muitas vezes, irreversíveis no tecido social. A dinâmica é duplamente perversa: de um lado, aqueles que se posicionam como vítimas profissionais instrumentalizam sua condição como salvo-conduto contra qualquer forma de avaliação crítica; de outro, instituições, gestores e setores inteiros se acovardam, rendendo-se ao jogo do medo, do constrangimento moral e da chantagem simbólica.

O primeiro grande dano é o colapso da meritocracia. Quando os critérios objetivos de desempenho são relativizados, a excelência dá lugar ao simulacro. A mensagem que se transmite às novas gerações é clara e devastadora: não é necessário ser competente, esforçado ou eficiente — basta saber manejar a cartilha correta, brandir as palavras certas e ocupar os espaços por meio da vitimização estratégica. Isso mina não apenas a produtividade, mas também o senso de justiça coletiva, base fundamental de qualquer ordem social saudável.

O segundo dano é o enfraquecimento institucional. Empresas, universidades, governos e organizações passam a ser percebidos não mais como espaços de excelência, mas como arenas de teatro político e simbólico. A confiança pública se esvai quando se percebe que os critérios de ocupação de cargos não são mais técnicos, mas ideológicos ou identitários. O cidadão comum, que espera do Estado ou de uma empresa a entrega de serviços, competência e seriedade, encontra, em vez disso, estruturas comprometidas com a manutenção de narrativas e não de resultados.

Surge então o terceiro dano, ainda mais corrosivo: o ressentimento social. Ao perceber que críticas legítimas são sistematicamente silenciadas sob acusações de preconceito, a sociedade começa a nutrir um rancor subterrâneo. Cresce, de forma silenciosa, uma aversão não declarada contra pautas que, em sua origem, eram justas e necessárias. O efeito rebote é devastador: a verdadeira inclusão se torna refém da percepção de fraude, gerando polarização, radicalização e o fortalecimento de discursos reacionários, que agora encontram terreno fértil.

E há um quarto dano, mais sutil e trágico: o infantilização das minorias reais. Ao blindá-las contra qualquer crítica, nega-se a elas aquilo que é próprio da dignidade adulta: a responsabilidade. Trata-se, no fundo, de uma nova forma de racismo, de sexismo, de segregação — uma segregação moral que diz, nas entrelinhas: “Você não é capaz de disputar em igualdade de condições, então precisará da minha condescendência para estar aqui.” É a caridade disfarçada de justiça, que humilha enquanto finge exaltar.

Por fim, o dano mais profundo talvez seja o esvaziamento da própria verdade. Quando fatos objetivos são sistematicamente distorcidos para se ajustarem a narrativas ideológicas, rompe-se o pacto simbólico que sustenta a convivência civilizada: o pacto com a realidade. Uma sociedade que abdica da verdade, em favor da conveniência identitária, está fadada ao colapso — moral, intelectual e institucional.

Portanto, essa engrenagem de simulação e conivência não é apenas um problema ético ou administrativo. É uma ameaça direta à coesão social, à justiça, à liberdade e à própria possibilidade de construção de um futuro que não seja, simplesmente, a repetição cínica de farsas decadentes.

Genealogia do Primado da Identidade sobre a Competência

O fenômeno contemporâneo em que a identidade se sobrepõe à competência não surgiu do acaso. Ele é fruto de um processo histórico, filosófico e sociopolítico que se desenrola ao longo do século XX, com raízes que podem ser traçadas até movimentos intelectuais mais antigos.

1. Raízes no Pós-Iluminismo: o surgimento do sujeito coletivo

Após o Iluminismo, o Ocidente construiu sua ética sobre o indivíduo racional, autônomo e livre, onde o mérito estava vinculado ao desenvolvimento das faculdades racionais. Contudo, no século XIX, com o advento das teorias sociais — principalmente de Marx, Engels e, mais tarde, dos pensadores críticos — surge uma inflexão: o sujeito deixa de ser meramente individual para se tornar também um sujeito coletivo, definido por classe, estrutura e pertencimento.

Aqui está a semente: o deslocamento da responsabilidade do indivíduo para as forças estruturais. A ideia de que o sujeito é, antes de tudo, produto de sua classe, raça ou cultura.

2. A virada estruturalista (décadas de 1950-1970)

Na França, após a Segunda Guerra Mundial, o estruturalismo, com pensadores como Michel Foucault, Jacques Derrida, Pierre Bourdieu e Louis Althusser, consolida a ideia de que as estruturas — linguísticas, culturais, sociais — moldam completamente o indivíduo.

Foucault introduz a noção de que todo saber é poder e que as instituições moldam os corpos e as subjetividades.

Derrida desconstrói a própria lógica binária do Ocidente, relativizando qualquer hierarquia, inclusive as de mérito.

Bourdieu mostra que o capital simbólico, cultural e social determina, em larga medida, a mobilidade dos sujeitos.

Essa geração quebra o ideal iluminista de indivíduo autônomo e fortalece a percepção de que tudo é produto de relações de poder invisíveis.

3. A explosão dos Estudos Culturais e Pós-Coloniais (década de 1980)

Nos Estados Unidos e na Inglaterra, movimentos acadêmicos como os Estudos Culturais, os Estudos Pós-Coloniais e a Teoria Crítica da Raça radicalizam a crítica estruturalista. Aqui surge claramente o conceito de que o indivíduo não é só atravessado por estruturas, mas que sua identidade — seja étnica, sexual, de gênero ou cultural — é central na sua leitura do mundo e, portanto, na sua legitimidade social.

Gayatri Spivak, com a ideia de "subalternidade", afirma que há sujeitos cuja voz é sistematicamente silenciada pela hegemonia ocidental.

Edward Said, com "Orientalismo", mostra como o Ocidente construiu epistemologias para subjugar o outro.

A Teoria Crítica da Raça surge nas universidades americanas, especialmente na Faculdade de Direito de Harvard, dizendo que o racismo não é um desvio, mas parte estruturante das instituições.

Aqui se consolida o conceito de "lugar de fala", que estabelece que a validade de uma fala não reside no argumento, mas na identidade de quem fala.

4. A transição para o ativismo identitário (anos 1990-2020)

O pensamento sai da academia e infiltra-se nas práticas culturais, empresariais e políticas.

O discurso sobre diversidade, equidade e inclusão passa a pautar contratações, políticas públicas e até roteiros de cinema.

Movimentos como o Black Lives Matter, o feminismo interseccional e as lutas LGBTQIA+ abandonam parcialmente a agenda universalista dos direitos civis para adotar uma perspectiva identitária radical, onde a vivência subjetiva se sobrepõe à objetividade.

As universidades se tornam centros de reprodução desse paradigma, gerando gerações formadas sob a crença de que qualquer questionamento à identidade é um ato de opressão.


5. O colapso da narrativa universalista e o surgimento do ressentimento

Ao abdicar dos critérios universais de racionalidade, mérito, competência e responsabilidade, a sociedade pós-moderna mergulha numa guerra simbólica de narrativas, onde o embate não é mais entre ideias, mas entre identidades. A verdade passa a ser relativa, e o argumento é irrelevante diante da hierarquia de opressões percebidas.

Esse movimento, inicialmente pensado como uma reparação histórica, degenera na prática em um mecanismo de chantagem moral, onde a crítica legítima é interditada, e a mediocridade se esconde atrás do escudo identitário.

Conclusão Histórica

Portanto, o mundo atual não chegou a esse ponto por acidente. Ele é o produto de uma genealogia intelectual que desaguou na substituição da razão pelo ressentimento, da competência pelo pertencimento e da busca pela verdade pela busca de validação identitária.

A Tragédia do Ocidente: Quando a Destruição da Verdade se Traveste de Liberdade

O que se observa no Ocidente contemporâneo é mais do que um colapso civilizacional. É a decomposição de seus próprios fundamentos, um processo autofágico em que os alicerces que sustentaram a construção da modernidade — a busca pela verdade, a objetividade, a razão, a competência e o mérito — são sistematicamente atacados, não mais por forças externas, mas pelos próprios herdeiros dessa tradição.

O paradoxo é evidente e cruel: ao mesmo tempo em que se proclama a soberania absoluta do indivíduo — agora reduzido a uma colagem caótica de identidades, desejos e percepções subjetivas — destrói-se o próprio terreno sobre o qual o indivíduo poderia se afirmar como sujeito livre e autônomo. A liberdade sem referência se converte em delírio. A autonomia desconectada de qualquer princípio universal degenera em niilismo.

Esse fenômeno não é acidental, mas consequência direta da desconstrução moderna, que, ao atacar qualquer ideia de ordem transcendental, substitui o ser pela construção, a realidade pela narrativa, e a verdade pela validação afetiva. O sujeito pós-moderno não busca mais se relacionar com a realidade, mas apenas confirmar suas próprias impressões sobre ela — ainda que sejam alucinações.

O efeito é devastador: proliferam indivíduos que, sem qualquer formação rigorosa, sem disciplina intelectual, sem submissão ao trabalho de depuração da mente, acreditam que suas impressões momentâneas, seus afetos, seus impulsos, têm status de verdade. E, pior, exigem que o mundo dobre-se a essa “verdade subjetiva”. O critério do real deixa de ser o que é e passa a ser o que eu sinto. Esse é o verdadeiro totalitarismo da subjetividade.

Entretanto, qualquer proposta de restauração da ordem — seja da razão, da verdade, do mérito, da hierarquia do real sobre a narrativa — é imediatamente acusada de ser um ataque à “supremacia do indivíduo”. Eis a ironia suprema: em nome da liberdade, destrói-se a própria possibilidade de liberdade, pois liberdade sem verdade é apenas escravidão ao próprio delírio.

Esse colapso não gera emancipação, mas atomização. Indivíduos isolados, desligados de qualquer eixo referencial — seja metafísico, epistemológico, moral ou até comunitário — tornam-se presas fáceis das grandes forças que dizem combater. O mercado, o Estado tecnocrático, a indústria do entretenimento e o aparato midiático capturam esses sujeitos e os mantêm cativos, oferecendo-lhes, em troca, a ilusão de liberdade através de identidades pré-fabricadas, consumíveis e descartáveis.

A insanidade cresce porque o próprio critério de sanidade foi abolido. Já não há tribunal que julgue as ideias senão o tribunal do afeto e da percepção. Nesse ambiente, a loucura não é mais exceção; ela se torna regra, paradigma, norma. E a razão — outrora o farol do Ocidente — é rebaixada a uma opressão colonial, patriarcal, cisnormativa ou qualquer outro rótulo conveniente.

Se há salvação — e isso permanece uma pergunta aberta — ela não poderá vir senão por um resgate. Um resgate que, inevitavelmente, baterá de frente com os dogmas contemporâneos. Um resgate da ordem, do ser, da verdade, da hierarquia, da disciplina espiritual e intelectual. Mas aqui está a tragédia: o Ocidente, na sua atual configuração, desenvolveu não apenas aversão, mas verdadeiro pavor de tudo aquilo que remeta à ordem, ao limite e à transcendência.

Portanto, seguimos, como náufragos num mar de espelhos, onde cada um se vê refletido infinitamente sem jamais encontrar terra firme.

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