Ao percorrer as sendas da literatura dita realista, revela-se não apenas o retrato de uma época, mas o espelho de uma condição estrutural que atravessa os séculos: a servidão. Não a servidão como simples fato histórico — abolida aqui, transformada ali —, mas como modo ontológico de inscrição do sujeito no tecido social, como nó fundador das relações humanas dentro da maquinaria da ordem econômica e simbólica.
Em "Almas Mortas", de Gógol, encontramos o absurdo formal da servidão transformada em mercadoria, onde até os mortos possuem valor contábil. Aqui, a servidão não é mais apenas relação de dominação direta, mas simulacro, espectro que persiste mesmo quando já não há corpo que o sustente. O escravo morto permanece escravo no papel — e este detalhe não é mero artifício narrativo, mas alegoria de uma ordem onde a vida vale menos que seu registro.
Tolstói, em "Anna Kariênina" e "A Morte de Ivan Ilitch", desloca o eixo da servidão do campo material para o campo existencial. O burocrata, o nobre, o homem comum — todos reféns de uma engrenagem social que os submete a um viver sem autenticidade, pautado por códigos, aparências e deveres que já não interrogam sua própria legitimidade. A servidão aqui já não exige correntes; ela se opera no plano do sentido, na captura da existência pela lógica social.
Zola, em "Germinal", radicaliza essa operação ao desvelar a continuidade da servidão sob a forma do trabalho industrial. As minas, com sua fome insaciável por corpos e força, figuram como nova senzala da modernidade. Aqui, o capital não apenas compra o tempo, mas consome a própria substância vital dos trabalhadores, extraindo-lhes não só a energia, mas a própria dignidade de existir.
No Brasil, Aluísio Azevedo, em "O Cortiço", faz a transposição precisa desse mesmo fenômeno para os trópicos. O cortiço não é apenas espaço físico, mas dispositivo simbólico de reprodução da miséria, da subalternidade e da subjugação. A ordem colonial, mesmo formalmente abolida, transfigura-se em novas formas de exploração urbana, onde o indivíduo, sobretudo o mestiço, o pobre, o ex-escravo, permanece cativo de uma máquina social que o produz como descartável.
Victor Hugo, em "Os Miseráveis", oferece talvez uma das sínteses mais lúcidas da servidão enquanto destino social. Jean Valjean não é apenas um homem perseguido pelo aparato jurídico; ele é a encarnação da culpa que a ordem impõe àqueles que ousam sobreviver fora dos limites impostos pela lei da propriedade e da obediência. O cárcere não é apenas físico; é ontológico.
Dostoiévski, especialmente em "Os Irmãos Karamázov", vai além: desvela que a servidão não é apenas imposição externa, mas também desejo inconsciente de submissão. O homem não suporta o peso da liberdade e frequentemente se dobra, voluntariamente, ao jugo de uma autoridade, seja ela religiosa, moral ou econômica.
Na tradição norte-americana, "As Vinhas da Ira", de Steinbeck, revela o exílio interno daqueles que, embora livres formalmente, são expulsos da própria possibilidade de existência. O trabalhador migrante é o servo contemporâneo: livre para morrer, livre para vagar, livre para ser descartado.
Quando Harriet Beecher Stowe, em "A Cabana do Pai Tomás", expõe a brutalidade da escravidão, o que revela não é apenas um sistema racializado, mas uma lógica de mundo, uma engenharia da desumanização que encontra ecos diretos no capitalismo industrial europeu e americano.
No limite, Marx e Engels, em sua crítica estrutural, desnudam a operação final desta arquitetura: a servidão como forma generalizada da modernidade. A escravidão direta cede espaço à escravidão assalariada, onde o tempo do homem, seu corpo, sua energia, são mercantilizados, capturados e convertidos em valor de troca. A alienação não é acidente; ela é engrenagem constitutiva.
O percurso revela, portanto, que a servidão não se dissolve com a história; ela apenas muda de máscara. Da senzala à fábrica, do feudo ao escritório, do senhor de escravos ao CEO, o princípio permanece: a redução do outro à condição de meio, de ferramenta, de engrenagem funcional no grande teatro da produção, da riqueza e do poder.
A servidão não é ruína do passado, mas espectro do presente — e, talvez, promessa maldita do porvir.
Da Servidão Material à Servidão Informacional: O Novo Cativeiro da Consciência.
O itinerário da servidão, que percorre as sendas do feudalismo, da escravidão colonial, do assalariamento industrial e da alienação burocrática, não finda na modernidade tardia. Antes, reconfigura-se, metamorfoseada, na arquitetura invisível das tecnologias, dos fluxos de dados e dos dispositivos que capturam não mais apenas o corpo, mas a própria consciência.
O projeto de regulamentação das redes sociais no Brasil — apresentado sob o manto discursivo da proteção, do combate às fake news e da defesa da democracia — inscreve-se, na verdade, na longa linhagem das formas refinadas de servidão. Aquela servidão que, diferente das correntes de ferro, se estrutura em dispositivos jurídicos, narrativas moralizantes e tecnologias de vigilância, tudo orquestrado por uma burocracia invisível e, paradoxalmente, aceita pela própria massa que ela captura.
Assim como em "Almas Mortas", onde os nomes dos mortos circulam como mercadorias úteis ao poder, hoje circulam nossos perfis, dados, preferências, afetos e desvios — tudo registrado, contabilizado e monetizado. E, agora, sob o pretexto da regulação, os Estados disputam, não a nossa liberdade, mas a soberania sobre nossa servidão digital. O debate não é sobre liberdade de expressão; é sobre quem detém o monopólio da captura dos fluxos de informação, da produção da verdade e da administração dos afetos sociais.
Quando o discurso jurídico se ergue para dizer "protegemos vocês", repete, sob nova gramática, a mesma lógica que Victor Hugo denunciava em "Os Miseráveis: o poder que pune, que vigia, que decide quem fala e quem se cala, é o mesmo que produz os miseráveis. A miséria, aqui, não é mais econômica — embora também o seja —, mas epistêmica, cognitiva, simbólica. É a miséria de uma população treinada para obedecer, para consentir, para internalizar os comandos que vêm, não mais das baionetas, mas dos algoritmos e dos códigos jurídicos.
O Estado contemporâneo — tal como o descrito por Dostoiévski em "Os Irmãos Karamázov" — não precisa mais impor a servidão pela força. Ele conta com o desejo inconsciente de submissão. O povo, hipnotizado pela promessa de segurança, de ordem e de moralidade, entrega voluntariamente seu espaço de expressão, sua autonomia crítica, sua própria capacidade de produzir sentido sobre o mundo.
A regulamentação das redes não é, portanto, uma disputa entre liberdade e responsabilidade, como querem os legisladores. É a atualização da velha matriz de controle: da senzala à timeline, da chibata ao shadowban, da carta régia ao código de conduta das plataformas, da prisão física ao banimento simbólico, a operação permanece idêntica no que é essencial — a produção técnica da obediência.
Zola, ao retratar os mineiros em "Germinal", mostra como o sistema extrai do trabalhador não apenas seu suor, mas sua própria possibilidade de respirar. Da mesma forma, o projeto de regulamentação não busca apenas controlar discursos extremistas — busca administrar o próprio oxigênio cognitivo da sociedade, delimitando o que pode circular, quem pode falar e qual narrativa será autorizada como legítima.
O cortiço, de Aluísio Azevedo, reaparece hoje na arquitetura dos clusters digitais, nas bolhas algorítmicas, nas comunidades cercadas, onde a informação é pasteurizada, censurada e transformada em mercadoria ou em instrumento de controle. O que era miséria espacial e material torna-se miséria simbólica e epistêmica.
Na era da servidão informacional, a liberdade é negociada em contratos que ninguém lê, em legislações que poucos compreendem, e em discursos que iludem sob a promessa de proteger, quando na verdade instauram novos regimes de subjugação.
Engels e Marx já haviam alertado: a alienação não é acidente, é método. Hoje, esse método não mais se limita à relação direta entre capital e trabalho, mas se estende à relação entre sujeito e linguagem, entre indivíduo e informação, entre consciência e aparato técnico-jurídico. O servo contemporâneo não precisa mais ser algemado — ele se voluntaria, desde que lhe prometam segurança, pertencimento e a ilusão de voz.
Portanto, aceitar sem crítica o projeto de regulamentação das redes sociais no Brasil não é ato de cidadania — é ato de servidão. Uma servidão sofisticada, limpamente embalada nos discursos de civilidade, de segurança, de bem comum. A mesma servidão que atravessou os séculos agora encontra sua face mais perversa: aquela que transforma o próprio desejo de liberdade no motor da obediência.
A Servidão como Negação Ontológica: A Impossibilidade do Humano no Regime da Subjugação.
Se há algo que atravessa o testemunho das obras realistas — da pena trágica de Gógol ao naturalismo implacável de Zola, do olhar compassivo de Hugo à lucidez ácida de Dostoiévski —, é a constatação de que a servidão não é apenas uma contingência histórica, mas a mais devastadora mutilação da experiência humana. A servidão, em todas as suas modalidades — feudal, colonial, industrial, informacional —, não é apenas violência externa, mas dispositivo ontológico que sabota, desde sua raiz, a possibilidade do ser enquanto liberdade, enquanto projeto, enquanto transcendência.
Quando em "Almas Mortas" o comércio de almas desencarnadas se torna operação legítima, não assistimos a uma simples crítica à burocracia russa, mas ao retrato filosófico daquilo que ocorre sempre que o outro é reduzido à abstração funcional. A vida se dissocia de sua própria imanência e se converte em dado, em número, em valor de troca. A servidão aqui não é erro — é método. E esse método denuncia a falência de qualquer ética fundada sobre a instrumentalização do outro.
A existência sob servidão não é vida — é sobrevivência administrada. Hugo, em "Os Miseráveis", mostra que a lei que pune Jean Valjean não é apenas a lei dos homens, mas a lei de uma estrutura que se alimenta da exclusão, da miséria e da obediência. A própria ordem social depende, estruturalmente, da produção dos miseráveis. A servidão, portanto, não é exceção no tecido da ordem; ela é o próprio tecido.
Tolstói, ao narrar a agonia de Ivan Ilitch, mostra que a servidão não precisa de grilhões nem de senhores visíveis. O homem, domesticado pela ordem, submete-se a uma existência sem autenticidade, em que cada gesto, cada palavra e cada escolha são antecipações das expectativas alheias — um viver para o olhar do outro, para o dever, para a norma. A morte, quando chega, revela o vazio: nunca viveu. A servidão aqui é a alienação da própria existência. E o preço pago é o não ter sido.
Zola, em "Germinal", ergue a anatomia brutal da servidão econômica. Nas profundezas das minas, o homem não é sequer mais indivíduo — é força de trabalho. Corpo descartável, engrenagem de uma máquina que não reconhece rostos, nem nomes, nem histórias. A promessa iluminista de progresso esfarela-se no pó negro das minas, mostrando que o avanço técnico não redime — pode apenas sofisticar as formas de dominação.
No Brasil, "O Cortiço" explicita que a abolição jurídica da escravidão não eliminou a servidão — apenas a metamorfoseou. A pobreza urbana, racializada, sexualizada, regionalizada, produz novos cativos. O espaço social é arquitetado para que o outro — o mestiço, o pobre, o nordestino — jamais ultrapasse os muros invisíveis que delimitam o que lhe é permitido ser. A servidão aqui não se dá apenas na economia, mas no simbólico: ela fixa identidades, define destinos, petrifica subjetividades.
Dostoiévski leva a análise ao abismo. Em "Os Irmãos Karamázov", deixa claro que a servidão não é apenas imposição externa — é, frequentemente, desejo interno. O homem, temendo a vertigem da liberdade, abdica da responsabilidade sobre si mesmo e entrega-se ao jugo de uma autoridade que o proteja da angústia de decidir, de ser, de existir sem garantias. A servidão é, assim, a fuga covarde diante do peso da liberdade ontológica.
Se há algo que estas obras demonstram, em sua tessitura trágica, é que a servidão, longe de resolver os dilemas da existência, os amplifica. Ela mutila, aliena e destrói aquilo que é mais essencial no humano: sua condição de projeto, sua abertura para o porvir, sua capacidade de transcender toda determinação que lhe seja imposta.
A servidão não é paz, é anestesia. Não é harmonia, é paralisia. Não é segurança, é prisão. Ela promete estabilidade, mas entrega morte simbólica. Promete proteção, mas sequestra a própria possibilidade do sujeito se tornar autor de sua existência.
Aqui se impõe a questão ontológica radical: é possível ser humano sob servidão? — A resposta, que ressoa desde o subsolo das minas de Zola até o olhar vazio de Ivan Ilitch, é um não rotundo. O ser humano sob servidão não é pleno; é castrado de sua própria potência ontológica. Reduzido, apequenado, capturado.
Eis, portanto, o imperativo categórico que emerge desse itinerário trágico: resistir à servidão, sob qualquer de suas máscaras — econômica, social, informacional, simbólica —, não é apenas questão política, nem apenas questão moral. É exigência ontológica. É aquilo que separa o ser que vive do ser que vegeta; o homem que é, do homem que apenas funciona.
A servidão, em última instância, é a negação ativa do humano. E aceitar suas vestes modernas — sejam elas os grilhões do algoritmo, as censuras disfarçadas de proteção, ou as novas arquiteturas de vigilância — é reincidir no velho pacto faustiano: vender a alma em troca da ilusão de segurança. E tal pacto, invariavelmente, cobra seu preço: a própria possibilidade de ser.
Conclusão: O Espelho Trágico da Servidão Contemporânea.
O Brasil contemporâneo, ao caminhar de olhos vendados em direção à aceitação dócil da narrativa estatal — agora travestida de regulação, proteção e combate à desinformação —, não faz senão atualizar, com roupagem digital, os mesmos mecanismos de servidão denunciados nas grandes obras da literatura realista.
Quando aceitamos, sem resistência crítica, que um aparato centralizado defina o que é verdade, o que pode circular e o que deve ser silenciado, não somos diferentes das almas mortas de Gógol, cujo valor reside não na vida, mas na utilidade que o Estado lhes confere. Tornamo-nos linhas em cadastros invisíveis, sombras em bancos de dados, peças de uma contabilidade discursiva que decide, de cima, quais narrativas têm o direito de existir.
Nos tornamos os miseráveis de Hugo, mantidos não mais pela fome material, mas pela fome de sentido, pela carência de autonomia epistêmica. O Estado, em nome do bem, assume para si o poder de vigiar, punir, conduzir e, sobretudo, de pensar por nós. E, como Valjean, somos confrontados com o dilema: submeter-se às engrenagens ou reivindicar, com risco e sofrimento, o direito de ser.
Vivemos, como Ivan Ilitch, uma existência cuja autenticidade se dissolve na obediência às estruturas. A aceitação acrítica das regulações, dos filtros, dos selos de verdade, não é senão a reprodução da vida vazia de quem jamais ousou questionar o roteiro imposto. E, quando a morte simbólica chega — a morte da liberdade de expressão, da divergência, do pensamento não autorizado —, é tarde demais para descobrir que jamais fomos livres.
Na lógica de Zola, somos os mineiros de Germinal, descendo diariamente aos túneis digitais, produzindo conteúdos, opiniões, afetos, dados — tudo convertido em energia para sustentar as máquinas que, agora, também pertencem ao Estado e suas agências reguladoras. E quando a explosão vem — seja na forma de censura, de bloqueio, de invisibilização —, não é acidente. É consequência necessária de um sistema que só sobrevive domesticando.
Como no cortiço de Aluísio Azevedo, o espaço digital se torna favela simbólica, onde grupos são confinados em bolhas, vigiados, hierarquizados, categorizados. Uns podem falar; outros, não. Uns podem existir socialmente; outros são empurrados para os porões do esquecimento algorítmico. E tudo isso legitimado, não pela brutalidade explícita, mas pela narrativa moral que mascara a servidão como cuidado.
Dostoiévski, por fim, nos entrega a chave mais sombria desse processo. A massa que hoje aclama a regulação, que exige censura, que celebra a normatização da linguagem, não é vítima apenas da opressão externa — é cúmplice de sua própria servidão. Movida pelo medo da incerteza, pela angústia da liberdade, pela vertigem da responsabilidade, entrega-se de corpo e alma à autoridade que promete ordem. E, assim, realiza a profecia do Grande Inquisidor: o povo abdica da liberdade em nome do pão, da segurança e da tranquilidade.
A semelhança é trágica e precisa: assim como os personagens das grandes obras realistas são consumidos, esmagados e desfigurados pelos sistemas que os aprisionam, o brasileiro contemporâneo, ao aceitar a narrativa estatal que promete protegê-lo das fake news, da desinformação e dos discursos "nocivos", abdica não apenas do direito de falar — mas do direito de pensar. E, nesse ato, consuma-se a mais sofisticada das servidões: aquela em que o cativo não percebe mais que é cativo.
O Brasil, portanto, não avança. Apenas renova os grilhões. Substitui o aço pela linguagem, a senzala pelo algoritmo, a chibata pelo banimento digital, a carta régia pelo código de conduta e a tirania declarada pela tirania do consenso moral imposto. A história se repete, não como farsa — mas como simulação.
E, tal como na literatura, a pergunta permanece em suspenso, exigindo resposta: até quando?
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