A vida humana se desenrola como um campo de forças, em que distintas esferas se entrelaçam e se tensionam em busca de um equilíbrio sempre instável. Não vivemos em uma única dimensão, mas em múltiplas camadas de experiência que se impõem e se articulam como círculos concêntricos — alguns íntimos e silenciosos, outros vastos e ruidosos. Identificar essas esferas é lançar luz sobre o palco em que o drama da existência se encena, ainda que nunca completamente.
1. A esfera do corpo é a mais imediata, o ponto de partida de toda percepção. Corpo que sente, que sofre, que deseja, que envelhece. É o chão sobre o qual caminhamos e a prisão da qual não escapamos. Na saúde, a presença do corpo se esconde; na dor, ele grita sua soberania. Essa esfera é a nossa âncora no mundo físico e, ao mesmo tempo, a fonte constante de nossa vulnerabilidade.
2. A esfera psíquica, ou interior, nos leva ao território dos afetos, das emoções e da razão. Aqui habitam os sonhos, os medos, as crenças, a identidade que se forma e se desfaz. Essa esfera é muitas vezes invisível aos olhos alheios, mas constitui o núcleo do que chamamos de “eu”. É nela que os dramas mais íntimos se desenrolam, entre a busca de sentido e a inquietação existencial.
3. A esfera relacional emerge no espaço entre os indivíduos. Família, amizade, amor, comunidade — são formas de estar com o outro, espelhos em que nos reconhecemos e nos perdemos. Ninguém é inteiramente si mesmo sem o olhar do outro. E, no entanto, toda relação carrega o risco do conflito, da rejeição, da entrega. Essa esfera é o lugar do vínculo e da alteridade.
4. A esfera profissional e produtiva diz respeito à nossa inserção no mundo do trabalho, da criação, da realização exterior. É onde exercemos talentos, assumimos funções e buscamos, muitas vezes, reconhecimento. Mas também pode se tornar um campo de alienação, onde o fazer se separa do ser, e o valor de um indivíduo é reduzido à sua utilidade.
5. A esfera social e política abarca a nossa condição de cidadãos, membros de coletividades maiores que nos transcendem. Nela se manifestam ideologias, pertencimentos culturais, lutas por justiça. Essa esfera nos lembra que nossas escolhas têm consequências e que a liberdade individual só se sustenta em redes de responsabilidade coletiva.
6. A esfera espiritual ou transcendente aponta para o que ultrapassa o imediato — o sagrado, o mistério, o absoluto. É o espaço onde a pergunta pelo sentido último da vida ganha voz. Para alguns, essa esfera se traduz em fé religiosa; para outros, em filosofia, arte, ou em uma ética silenciosa diante do infinito. Ignorá-la é correr o risco de viver como se a vida fosse apenas um processo mecânico.
Essas esferas não são compartimentos estanques, mas campos em constante interpenetração. Quando uma se desequilibra, todas as outras sentem o impacto. O desafio da existência talvez consista em ouvir o ritmo próprio de cada uma e permitir que elas dialoguem entre si sem se anularem. Ser humano é dançar nesse entrelaçamento — entre corpo e espírito, entre si mesmo e o outro, entre o presente e o eterno.
7. A esfera do inútil: o avesso necessário
Há, porém, uma esfera esquecida. Ela não se impõe por necessidade biológica, não se justifica por função social, nem oferece sentido imediato. É a esfera do inútil — e é precisamente por isso que ela escapa ao olhar apressado das estruturas da vida. Trata-se de tudo aquilo que não serve, mas que é: o gesto gratuito, o devaneio sem propósito, o riso sem razão, a contemplação de uma pedra, o ato de escrever sem intenção de publicar.
Nesta esfera, não se busca produtividade, cura, salvação, reconhecimento, nem mesmo compreensão. O inútil não se opõe ao útil como um erro, mas como um excesso, uma margem — como o canto do mundo que ainda não foi colonizado pelo imperativo da utilidade. É nesse espaço que florescem a poesia, o ócio verdadeiro, o brincar, o silêncio cheio. É o domínio do gratuito, do lúdico, do que não pode ser contabilizado, nem sequer defendido com bons argumentos.
Se todas as demais esferas organizam a vida em torno de finalidades, a esfera do inútil a reconcilia com o sem-fim.
Síntese: o contraponto entre o necessário e o gratuito
Tomemos como exemplo a arte. No mundo moderno, ela é constantemente submetida a exigências: comunicar, denunciar, curar, vender. Mas a arte mais vital talvez seja aquela que escapa de todos os usos — uma pintura feita à margem do mercado, uma música que ninguém ouve, um poema enterrado no caderno. Seu valor não reside no impacto, mas no ato.
Na esfera relacional, pensemos no silêncio entre dois amigos que não precisam conversar. Ou num passeio sem destino, numa tarde sem função. Esses instantes revelam a esfera do inútil como forma superior de presença.
E na profissional, quantas vezes a obsessão por resultados elimina o gesto gratuito que abriria um novo caminho? O tempo perdido — e não recuperado — pode ser o útero de uma invenção.
A esfera do inútil, ao contrário do que se pensa, não é um luxo. É uma necessidade esquecida. Sem ela, todas as outras se tornam apenas engrenagens girando no vazio. A vida, então, perde o brilho do supérfluo, que é o outro nome do essencial.
O Inútil como Esfera Predominante: o Fundo Invisível de Todas as Coisas
Apesar de marginalizada, a esfera do inútil não é periférica — é central e predominante. Ela é a única que não exige justificativa, e por isso é a mais autêntica. Todas as demais esferas — corpo, psique, relação, trabalho, política, espiritualidade — estão, em última instância, estruturadas sobre uma base que não se explica por si mesma: o desejo de simplesmente estar, de viver. E esse desejo é inútil no sentido mais radical da palavra — ele não visa outra coisa senão o próprio pulsar da vida.
Veja: o corpo não se move apenas para sobreviver, mas para dançar. A psique não quer apenas organizar o real, mas fantasiar, divagar, sonhar. As relações não se sustentam apenas por funções sociais ou afetivas, mas por gestos gratuitos: olhares, silêncios, presenças sem finalidade. O trabalho, quando não é automatizado, inclui sempre algo de superfluidade: o detalhe feito por amor, o capricho, o desvio criativo. Mesmo a esfera espiritual, muitas vezes tomada por ascetismo e sacrifício, nasce do assombro — não da meta.
A esfera do inútil é o chão ontológico das demais. É o intervalo entre cada esforço, o vazio fértil entre os compromissos, o não-dito que sustenta o dito. É como o espaço entre as notas que faz existir a música.
Ao ocultá-la, erguemos uma vida mecânica, instrumental, pobre. Ao reconhecê-la como predominante, reabrimos o mundo à gratuidade do ser. Em uma sociedade que adoece pela hiperfinalidade — tudo deve servir a algo, tudo deve ter sentido, tudo deve produzir —, é o inútil que nos devolve o fôlego da liberdade.
Exemplos e contraponto final
Um trabalhador que, após anos de esforço, descobre que o instante mais vivo de seu dia era o momento em que, sem pensar, observava os pássaros antes de entrar na fábrica.
Uma criança que constrói um castelo de areia só para vê-lo ser levado pela maré. Ela não sofre: ela ri. Ela sabe, sem saber, que ali há algo maior do que qualquer resultado.
Um idoso que, tendo perdido quase tudo, encontra no simples ato de regar uma planta o gesto mais pleno de sentido — e completamente inútil aos olhos do mundo.
A esfera do inútil é o reino daquilo que é fim em si mesmo, e por isso ela não é apenas necessária: ela é soberana. As outras esferas nos sustentam, nos moldam, nos exigem. Mas é nesta — na mais desprezada — que finalmente respiramos.
A Predominância do Inútil: Sintoma da Perda do Necessário
A esfera do inútil, até aqui defendida como espaço de gratuidade e liberdade, pode — e deve — ser vista também sob outra luz: como sintoma de um colapso do discernimento moderno. Não é apenas que o inútil ganhou espaço, mas que o homem perdeu a bússola que lhe permitiria distinguir o necessário do supérfluo, o essencial do acessório, o fim do meio.
Vivemos sob o império do fragmento, onde todas as esferas da vida se embaralham em um fluxo indiferenciado de demandas, impulsos e distrações. Nesse cenário, o inútil se torna não mais o espaço sagrado do não-fazer, mas a forma dominante de estar no mundo — um mundo em que tudo é feito sem saber por quê, tudo é desejado sem saber para quê.
O paradoxo: o inútil deixou de ser exceção para se tornar regra disfarçada. Mas não o inútil sublime da contemplação e do jogo, e sim um inútil degradado — o do excesso, do ruído, da distração contínua. O tempo que antes era ócio criativo é agora o tempo da rolagem infinita, do consumo passivo, da fuga. O homem moderno perdeu a noção do necessário porque perdeu o eixo que ordenava o mundo: o sentido.
A tragédia não está em viver momentos de inutilidade, mas em não saber mais o que seria necessário.
Como discernir o necessário?
Já não se sabe se trabalhar é um meio de vida ou uma identidade que consome a vida.
Já não se sabe se a educação forma o ser ou apenas o adapta ao sistema.
Já não se sabe se os afetos são vínculos ou contratos emocionais de consumo.
Já não se sabe se a liberdade é exercício da vontade ou simples ausência de limites.
Dessa perda nasce a predominância do inútil: não como o descanso de uma alma sábia, mas como a doença de uma civilização que não sabe mais o que quer, nem por que quer.
Exemplos do colapso da distinção
O profissional que trabalha 12 horas por dia e, ao ter folga, consome conteúdos que não o alimentam, mas o mantêm entorpecido — chamando isso de “descanso”.
A espiritualidade convertida em técnica de autoajuda, esvaziada de transcendência, a serviço de uma ansiedade produtiva.
O amor transformado em performance ou algoritmo de compatibilidade, em que a gratuidade foi substituída por um cálculo afetivo.
Conclusão: Entre o Êxtase e a Ruína
A esfera do inútil é duplamente ambígua: ela pode ser espaço de reconciliação com o ser — quando livremente escolhida como exceção luminosa —, ou sinal de decadência — quando se impõe como norma por falta de critério superior.
O que foi concebido como intervalo entre os atos necessários tornou-se o tecido contínuo da existência. O inútil reina, não como celebração da liberdade, mas como reflexo da incapacidade contemporânea de reconhecer a necessidade verdadeira — aquela que liga o homem ao sentido, ao outro, ao mundo, e a si mesmo.
A Saída: O Retorno ao Necessário como Reconciliação com a Verdade
Se a predominância da esfera do inútil é o sintoma de uma consciência perdida em sua própria dispersão, então o caminho de saída não pode ser outro senão um retorno. Não ao passado, mas à verdade esquecida do necessário. E esse retorno não se dá por força, nem por doutrina, mas por um movimento interior de lucidez — o homem precisa reconhecer, ao menos uma vez, o que é essencial para viver como homem.
Não se trata de multiplicar metas, reinventar sentidos ou impor modelos externos. A condição primeira é mais simples e mais radical: dizer a verdade a si mesmo. Dizer, por exemplo:
“Não sei mais o que é necessário.”
“Vivo como se tudo fosse urgente, mas nada essencial.”
“Confundi liberdade com consumo, silêncio com tédio, prazer com distração.”
“Desaprendi a esperar, a renunciar, a contemplar.”
“Perdi o fio, e quero reencontrá-lo.”
Esse reconhecimento já é ruptura. Porque a verdade, mesmo quando dolorosa, tem a força de recolocar o homem em seu eixo. É quando ele percebe que o necessário não precisa ser inventado — ele já está aí, à sua frente, como presença silenciosa: o alimento, o sono, a palavra verdadeira, o cuidado, o vínculo, a atenção, o limite. O necessário não grita — e por isso foi esquecido.
A verdade do necessário é o critério que purifica o inútil e lhe devolve sua nobreza. Quando o inútil se submete ao necessário, ele deixa de ser ruína e se torna festa. O descanso volta a ser repouso, a arte volta a ser criação, o amor volta a ser dom.
A consciência que reconhece o necessário reconstrói as esferas da vida em uma nova ordem. O corpo volta a ser templo, a psique volta a ter interioridade, a relação volta a ser presença, o trabalho volta a ser expressão, a política volta a ser serviço, e o espírito volta a se inclinar diante do Mistério.
Essa reordenação não exige um milagre — apenas uma verdade assumida com seriedade, mesmo que em silêncio, mesmo que sem saber o caminho completo. Porque a alma que reencontra o necessário encontra também, como que por acréscimo, o sentido. E é esse sentido que torna o inútil novamente possível — não como vício, mas como dádiva.
Nenhum comentário:
Postar um comentário