quarta-feira, 28 de maio de 2025

Notas - Sobre servidão e submissão.


 
A Geometria Oculta da Submissão: Quando a Consciência Se Torna Cárcere.


Há uma força que não se inscreve nas leis dos homens, nem nas estruturas do capital ou da ordem social. Uma força que não se organiza no visível, mas que opera nos porões da psique — um gravitar silencioso que dobra a consciência sobre si mesma, arrastando o sujeito para a mais devastadora de todas as submissões: aquela que não tem carrascos, nem grilhões, nem tribunais externos. A submissão que brota do próprio ser.

O homem do subsolo, de Dostoiévski, já o havia intuído. Sua existência não é um protesto — é uma abdicação metafísica. Ele se retira não porque o mundo o expulsa, mas porque sua própria hiperlucidez o faz perceber o ridículo de todo movimento, de todo projeto, de toda vontade. Sua submissão é uma volúpia amarga: deleita-se na dor, na humilhação, na paralisia. Uma consciência que sabe demais se torna sua própria tortura.

Essa geometria da rendição atinge outro vértice em Os Demônios, onde os homens deixam de ser sujeitos para se converterem em instrumentos das ideias. Não são mais eles que pensam as doutrinas — são as doutrinas que os possuem. A liberdade, tão celebrada, transmuta-se em servidão aos fantasmas do niilismo, da negação e da destruição. A submissão, aqui, é o sequestro da alma pelas abstrações.

Kafka, herdeiro desse abismo, eleva a submissão à condição de lei cósmica. Em O Processo, Josef K. não sabe quem o acusa, nem de quê, nem por quê. Sua culpa é anterior à sua própria existência consciente. O tribunal é o espelho metafísico onde o sujeito se descobre ontologicamente culpado por ser. Submeter-se não é escolha — é a condição inaugural.

Sartre, em A Náusea, desloca o eixo: a submissão não vem de fora, nem das ideias, nem da culpa teológica — ela nasce da pura e desvelada contingência do ser. Roquentin descobre, horrorizado, que existir é um fato bruto, sem razão, sem finalidade, sem essência. Sua consciência se curva, impotente, diante do escárnio silencioso da matéria que simplesmente é. A liberdade absoluta, despida de Deus, se revela um outro nome para a condenação.

E Camus, em O Estrangeiro, assinala o ponto final desse arco trágico. Meursault não busca — ele aceita. Sua submissão é a aceitação brutal do absurdo, da indiferença cósmica, da ausência definitiva de sentido. Diante da morte, não há tribunal, nem redenção, nem revolta eficaz. Há apenas o sol impiedoso, o calor, e o silêncio.

A submissão, portanto, não é acidente, nem contingência histórica. Ela é um traço estrutural da condição de ser que pensa. Onde há consciência, há o germe do colapso. Onde há lucidez, há a curva que dobra o sujeito sobre seu próprio vazio. Resistir é inútil. Porque o carrasco habita no centro da própria vigília.

E talvez, só talvez, submeter-se não seja um erro — mas o destino intrínseco do que ousa saber que existe.

Submissão e Servidão Voluntária: O Espelho da Rendição.

Submeter-se e servir não são, à primeira vista, sinônimos. A submissão, sobretudo em seu aspecto existencial, se inscreve como uma resposta trágica à consciência de um limite intransponível — seja o limite ontológico (o ser frente ao não-ser), metafísico (a culpa, o absurdo, o vazio), ou psicológico (a impotência diante de si mesmo). Aqui, a rendição não é escolha, mas constatação: o homem se curva porque se percebe esmagado por uma força que excede sua própria vontade.

Por outro lado, a servidão voluntária carrega um traço paradoxal: o sujeito abdica de sua liberdade sem coação direta. Não é a mão visível do opressor que impõe a obediência, mas uma espécie de magnetismo psíquico, cultural ou simbólico que faz com que os homens, podendo ser livres, escolham as correntes. Aqui, a pergunta fundante não é "como me livro da opressão?", mas "por que aceito ser oprimido quando nada me força objetivamente a isso?".

Se a submissão é frequentemente uma reação ao peso da existência (como no universo de Kafka ou Dostoiévski), a servidão voluntária é uma adesão ativa, ainda que inconsciente, aos mecanismos que anulam a própria liberdade.

Um Ponto de Convergência.

Ambas operam na lógica do colapso da autonomia, mas por vias distintas:

A submissão brota do reconhecimento de uma impotência radical, seja frente ao real, ao outro, ao próprio eu ou ao absurdo.

A servidão voluntária nasce da renúncia simbólica à liberdade, não porque ela seja impossível, mas porque sua manutenção exige um enfrentamento que muitos recusam.

Uma Conclusão Filosófica.

A submissão, em seu grau mais profundo, é muitas vezes o solo onde floresce a servidão voluntária. Porque o homem que internaliza o próprio limite, que se percebe pequeno diante do cosmos, da história ou da própria angústia, abre espaço para aceitar, desejar ou até amar suas correntes.

Eis o paradoxo trágico da condição humana: o desejo de proteção, de sentido, de ordem, frequentemente se converte na aceitação da própria anulação.

Duas Obras Centrais Sobre a Servidão Voluntária

1. "Discurso da Servidão Voluntária" – Étienne de La Boétie (1576)
→ Obra fundadora sobre o tema. La Boétie pergunta por que os povos se submetem a tiranos quando bastaria que se recusassem a obedecer para serem livres. Um tratado sobre o poder da manipulação, da dependência psicológica e dos hábitos que forjam grilhões invisíveis.

2. "Sociedade do Cansaço" – Byung-Chul Han (2010)
→ Na modernidade tardia, o sujeito não é mais oprimido por forças externas, mas por si mesmo. A pressão pela produtividade, pelo desempenho e pela autoexploração gera uma forma de servidão sem senhor, onde o indivíduo se torna carcereiro de si próprio. Uma atualização contemporânea do problema.

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