Se quisermos compreender o idealismo, não como um mero sistema filosófico entre outros, mas como uma disposição ontológica fundamental, somos forçados a reconhecer que sua tessitura não se constitui na contingência de um nome ou escola, mas na própria fratura inaugural entre o ser e sua manifestação. O idealismo, portanto, não é uma doutrina, mas uma tensão ontológica — a intuição de que o real não se esgota no dado sensível, e que sua essência se aloja no invisível, no inteligível, no que precede ou excede a facticidade do mundo.
Na alvorada do pensamento ocidental, essa tensão já emerge como inquietação irresoluta. Quando Parmênides proclama que "o ser é e o não-ser não é", ele não formula apenas uma sentença lógica, mas um interdito ontológico que já opera um deslocamento radical da percepção sensível. Pois se o ser não pode não ser, ele se retira de toda experiência da alteridade, do devir, da multiplicidade sensível — instaurando, assim, um regime de inteligibilidade no qual o ser se sustenta por si, separado da vacilação fenomênica. Aqui, o idealismo germina como recusa do sensível enquanto fundamento e como afirmação do ser enquanto estrutura necessária, eterna, imóvel.
Heraclito, embora aparentemente antagônico, não escapa a esse mesmo gesto inaugural. Seu logos, que tece a ordem no fluxo, é igualmente um princípio que não se deixa apreender nos fenômenos, mas que estrutura sua inteligibilidade. O conflito, o devir e a transitoriedade são aparências reguladas por uma ordem inteligível que transcende a própria mudança. É, portanto, a inteligibilidade do ser — não sua aparência — que se configura como o horizonte último da verdade.
É em Platão, todavia, que o idealismo se inscreve com sua plena consciência. Sua filosofia não consiste meramente em propor a existência de um mundo das Ideias, mas em denunciar o mundo sensível como espaço da sombra, da cópia, da degradação ontológica. O real — o verdadeiramente real — não se encontra na facticidade dos entes, mas na essência, na eidética que escapa à percepção e só se acessa pela razão dialética. A célebre alegoria da caverna não é um simples recurso didático: ela encena a condição ontológica do homem, prisioneiro dos simulacros, e aponta para a libertação possível apenas pela conversão do olhar — não o olhar físico, mas o olhar da alma, capaz de ascender ao inteligível.
Nesse sentido, o idealismo platônico funda-se sobre um corte ontológico: entre ser e parecer, essência e fenômeno, inteligível e sensível. Esse corte não é um simples dualismo; ele funda uma hierarquia do ser, na qual o sensível não é senão o vestígio imperfeito do inteligível. A própria matemática, em Platão, não é um mero instrumento, mas a mediação paradigmática entre o sensível e o puro inteligível — sinal de que a realidade é, no fundo, de natureza formal, eidética, ordenada segundo princípios que não se deixam reduzir à experiência empírica.
O eco desse corte repercute de modo silencioso, mas persistente, em toda a tradição filosófica subsequente. Mesmo no aparente triunfo do empirismo, do materialismo e das filosofias da imanência, o idealismo se insinua como fantasma irredutível.
Quando Kant, já no advento da modernidade, propõe sua revolução copernicana, ele não nega a realidade do mundo sensível, mas submete-o às condições a priori do entendimento. Aqui, o idealismo se desloca: não mais como afirmação de um mundo transcendente das Ideias, mas como estrutura transcendental que condiciona a própria possibilidade da experiência. O mundo, tal como o conhecemos, é fenômeno — não coisa em si. A realidade, enquanto aparece, é sempre estruturada pelas formas da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento. Assim, o idealismo kantiano é um idealismo crítico: não afirma a irrealidade do sensível, mas sua dependência estrutural em relação às condições do sujeito transcendental.
Esse gesto kantiano prepara, inevitavelmente, o advento do idealismo absoluto. Em Fichte, Schelling e Hegel, o idealismo deixa de ser apenas epistemológico e retorna ao plano ontológico, porém agora ampliado: não há ser que não se constitua como ato do espírito, como positividade do eu (Fichte) ou como auto-manifestação da razão (Hegel). O real, no limite, é pensamento que se pensa, espírito que se exterioriza e retorna a si, superando a cisão entre sujeito e objeto, entre fenômeno e essência.
Mas o idealismo não se esgota na tradição alemã. Sua dialética, tensionada e muitas vezes renegada pela filosofia contemporânea, reaparece transfigurada nos mais diversos territórios. Quando Husserl retoma a questão da intencionalidade da consciência, ele reinscreve o idealismo sob a forma fenomenológica: toda consciência é consciência de algo — isto é, o ser do mundo está, de algum modo, constituído na correlação entre sujeito e objeto. A epoché, a suspensão do juízo sobre o mundo natural, não destrói o mundo, mas revela que seu sentido se constitui no horizonte da consciência intencional.
Heidegger, embora proponha uma destruição da metafísica e uma superação do idealismo, ainda opera dentro do mesmo campo de tensões. Pois ao perguntar pelo sentido do ser, ele não retorna simplesmente ao ser enquanto ente, mas procura abrir o campo do ser enquanto tal — aquilo que nunca se reduz à mera presença dos entes. O ser, nesse sentido, continua sendo um horizonte que excede o dado, o empírico, o factual — e nisso, ainda que de forma profundamente crítica, ressoa uma determinação idealista, no sentido de que o ser nunca se dá simplesmente, mas sempre como manifestação, como desocultamento.
No contemporâneo, mesmo os projetos filosóficos que se pretendem anti-idealistas — o materialismo especulativo, o realismo ontológico — muitas vezes acabam reafirmando, pela via negativa, a persistência do problema idealista: o de que o ser, em sua alteridade radical, permanece de algum modo refratário à simples exposição fenomênica, exigindo uma mediação conceitual que o aponte, o delineie, o torne de algum modo pensável.
O idealismo, assim, longe de ser um capítulo encerrado da história da filosofia, constitui-se como uma inquietação estrutural da razão — a recusa de aceitar que o real se esgote no dado, no imediato, no visível. Ele é, no fundo, o sintoma mais profundo da própria condição do pensamento, que, ao buscar o ser, encontra-se sempre diante do invisível, do inapreensível, do que não se deixa reduzir à mera presença.
Por isso, mais que uma doutrina, o idealismo é o próprio espelho da condição filosófica: a constatação de que pensar é, sempre, atravessar o abismo entre o que aparece e o que é.
Realismo: O Peso do Ser e a Resistência do Mundo.
Pensar o realismo não é simplesmente afirmar a existência de um mundo exterior ou sustentar a primazia dos objetos sobre os conceitos. Pensar o realismo é confrontar-se com o problema mais árduo que a filosofia jamais ousou enfrentar: a alteridade do ser — sua resistência, sua opacidade, sua recusa em se deixar reduzir à ordem da consciência, da linguagem ou do conceito. O realismo não é, portanto, uma tese singela sobre a existência das coisas, mas um gesto ontológico de enfrentamento: o reconhecimento de que o ser não depende, em última instância, do pensamento que dele se ocupa.
Desde os primórdios, o realismo se apresenta não como uma construção sistemática, mas como uma pulsação subterrânea, como o clamor silencioso do mundo que se impõe à consciência. É no gesto de Tales, que vê na água o princípio de todas as coisas, que o realismo se deixa entrever não como uma tese, mas como uma confiança no ser enquanto tal — como exterioridade que não se dobra à vontade ou à mente, mas que funda e sustenta tudo o que é.
Anaximandro, ao pensar o apeiron, não formula uma abstração no sentido idealista, mas antes aponta para uma realidade que não se oferece à percepção direta, mas que ainda assim é — como fundo indiferenciado e originário do qual tudo emerge e para o qual tudo retorna. Aqui, o realismo não se confunde com empirismo ingênuo; ele reconhece, antes, que a realidade ultrapassa tanto o sensível quanto o pensado — que o ser é, independentemente da captura que dele tenta fazer a consciência.
Mesmo Parmênides, tomado frequentemente como proto-idealista, não escapa inteiramente à pulsação realista de seu próprio discurso. Seu ser, absoluto, necessário, imóvel, não é produto do pensamento; ao contrário, o pensamento só é legítimo na medida em que se adequa a esse ser, que se impõe como anterior e exterior à própria atividade do logos. O realismo parmenídeo não se confunde com o realismo do múltiplo, mas funda-se na supremacia ontológica do ser sobre qualquer possibilidade de erro, ilusão ou aparência.
Se Platão erige a mais célebre arquitetura idealista da história, não o faz sem carregar em seu interior uma tensão realista irresoluta. Pois, embora rebaixe o mundo sensível à condição de cópia, ainda assim reconhece que essa cópia tem ser, que a participação (méthexis) garante ao fenômeno uma derivação ontológica, uma dependência que, se por um lado subordina, por outro ancora o sensível no ser das formas. A sombra, embora sombra, é sempre sombra de algo.
É Aristóteles, todavia, quem pela primeira vez ergue com plena consciência o edifício do realismo filosófico. Contra a cisão platônica, ele afirma que a substância não habita um além do mundo, mas se realiza no ente singular, composto de matéria e forma. A ousia, enquanto princípio primeiro, não é uma ideia transcendente, mas o próprio ente enquanto ente — aquilo que é na sua concreta efetividade. O realismo aristotélico não consiste em negar o inteligível, mas em recusar sua separação do mundo: o inteligível está no ente, enquanto sua forma, seu princípio de organização, sua teleologia interna. O ser, aqui, não é uma abstração, mas a tessitura própria do mundo, que se dá no entrelaçamento de potência e ato, matéria e forma, movimento e finalidade.
Essa ontologia do concreto, da imanência, da substância, atravessa a história da filosofia, muitas vezes obscurecida pela ascendência das estruturas idealistas, mas sempre persistente como fio subterrâneo. Na escolástica, particularmente em Tomás de Aquino, o realismo ganha nova inflexão: Deus, enquanto ato puro, é ser por excelência, fonte e fundamento do ser dos entes. Mas os entes, em sua finitude, possuem realidade própria, derivada, sim, mas não ilusória. O ser não é aparência; é participação, presença efetiva, resistência.
O advento da modernidade traz uma cisão profunda nessa tradição. O cogito cartesiano, ao colocar o pensamento como certeza primeira, parece enveredar pelo idealismo. No entanto, mesmo em Descartes, o realismo resiste. Pois se o cogito é indubitável, ele logo se depara com a necessidade de afirmar a existência de Deus como garantia da realidade do mundo exterior. O real, nesse contexto, não é uma construção do sujeito, mas uma dádiva garantida por Deus, que não é enganador.
Mas é sobretudo no empirismo — com Locke, Berkeley (paradoxalmente) e Hume — que o realismo volta a tensionar-se de modo ambíguo. Pois se de um lado o empirismo afirma que todo conhecimento deriva da experiência sensível, de outro, reconhece que esse mundo sensível se oferece de forma instável, contingente, sujeito às limitações da percepção. Assim, o realismo empirista não é ontológico, mas epistêmico: afirma-se na confiança prática de que há um mundo, mesmo que seus fundamentos metafísicos permaneçam problemáticos.
O golpe mais severo ao realismo metafísico advém do projeto kantiano. Pois se o mundo, enquanto fenômeno, depende das condições transcendentes do sujeito, então a coisa em si — o real enquanto tal — retira-se para além do horizonte possível da experiência. O realismo, aqui, torna-se uma hipótese limite: o mundo em si existe, mas permanece para sempre inacessível.
Contudo, esse interdito kantiano não sela o destino do realismo. Ao contrário, ele gera sua própria contra-revolução. No século XIX, movimentos como o positivismo e o naturalismo buscam restaurar um realismo epistemológico, ainda que despojado de metafísica, enquanto a filosofia da ciência moderna, com nomes como Popper e Quine, redefine o realismo como compromisso com a existência objetiva dos objetos teóricos, mesmo que eles nunca se tornem plenamente acessíveis.
Na contemporaneidade, o realismo retorna como fantasma incômodo — ou talvez como espectro triunfante. A partir dos anos 2000, movimentos como o realismo especulativo e o novo materialismo insurgem contra o "correlacionismo", essa tese moderna segundo a qual nunca temos acesso ao ser em si, mas apenas à relação entre sujeito e mundo. Os realistas contemporâneos — Quentin Meillassoux, Graham Harman, Ray Brassier — denunciam essa clausura da filosofia no círculo humano e reivindicam a possibilidade de um real que existe absolutamente, fora e apesar da consciência. O mundo não depende do pensamento. O ser não precisa do humano para ser.
O realismo, assim entendido, não é apenas uma posição filosófica. Ele é o reconhecimento radical da exterioridade do ser — da sua anterioridade, da sua indiferença, da sua resistência. É o gesto de renunciar à ilusão solipsista da centralidade da mente e de assumir, com todas as suas consequências, que o mundo é, que o ser se impõe, que há uma dureza ontológica que nenhuma hermenêutica, nenhum conceito e nenhuma linguagem pode dissolver.
Por isso, o realismo não é o oposto simples do idealismo, mas seu duplo sombrio. Se o idealismo nasce da constatação de que o ser só é na medida em que se deixa pensar, o realismo é a afirmação brutal de que o ser é, mesmo quando nenhum pensamento o acompanha, mesmo quando nenhuma consciência o ilumina. Ele é o testemunho filosófico daquilo que persiste, que escapa, que resiste. Ele é, em última instância, o peso do mundo.
Empirismo: A Soberania dos Dados e o Cativeiro da Imediaticidade.
Pensar o empirismo é ingressar no domínio em que o sensível se ergue como instância primeira e última da legitimidade do conhecimento. É um gesto epistemológico, mas de implicações ontológicas e metafísicas profundas. O empirismo, mais do que um método, é uma atitude radical diante do ser e do saber: é a recusa sistemática de toda pretensão do intelecto de fundar, por si, o real. Nele, o mundo não se deixa alcançar senão por aquilo que se dá — pela impressão, pela experiência, pela inscrição do exterior sobre a superfície da sensibilidade.
O gesto empirista, embora só encontre plena autoconsciência na modernidade, repousa sobre uma inquietação milenar: a de saber se há algum caminho seguro entre a opacidade do mundo e a transparência do conhecimento. Se o racionalismo busca na estrutura da razão o arquiteto do saber, o empirismo, por sua vez, abdica desse conforto e se submete à alteridade radical do dado, do que aparece, do que se impõe sem mediações conceituais a uma consciência aberta.
O empirismo não é, contudo, uma ingenuidade epistemológica. Ao contrário, nele há uma suspeita profunda contra o intelecto, uma desconfiança meticulosa em relação às abstrações e às construções mentais que, divorciadas da experiência, não passam de castelos de areia. É a intuição de que o pensamento, sem ancoragem no sensível, gera miragens — fetiches conceituais que nada dizem sobre o real.
No entanto, essa confiança no dado sensível não é menos problemática que a aposta racionalista. Pois o empirismo carrega em seu cerne uma aporia: como fundar o saber no dado, se o dado é, por definição, fragmentário, fugidio, contingente? A empiria é uma proliferação de casos, de ocorrências, de aparências — um fluxo incessante, sem garantias internas de permanência ou universalidade. A partir de que ponto esse oceano de particularidades se transmuta em conhecimento? A partir de que gesto, de que operação, emerge o conceito, a generalização, a ciência?
Quando Locke afirma que não há nada no intelecto que não tenha passado antes pelos sentidos, ele não enuncia apenas uma tese psicológica sobre a origem das ideias. Ele efetua um deslocamento ontológico: rompe com a tradição que fazia do intelecto uma instância quase divina, capaz de produzir verdades a priori, e recoloca o homem no interior do mundo, como ser passivo diante do espetáculo do dado. A mente é uma tábula rasa — não um espelho transcendental, mas uma superfície receptiva, na qual o mundo inscreve suas marcas.
Berkeley leva esse gesto às últimas consequências, revelando o paradoxo latente no próprio empirismo: se todo ser é percebido (esse est percipi), então o mundo nada mais é que o conjunto das percepções atuais ou possíveis. Mas aqui o empirismo implode em idealismo: o dado sensível, privado de um suporte ontológico externo, dissolve-se em fluxo fenomenal, sustentado, no limite, pela percepção divina. Berkeley não abandona o empirismo; ele o radicaliza até fazê-lo transbordar seus próprios limites, expondo sua fragilidade ontológica.
Hume, por sua vez, é o cirurgião implacável da pretensão empirista. Seu ceticismo não é um defeito colateral, mas o desdobramento rigoroso da própria lógica do empirismo. Pois se toda ideia deriva da impressão, e se as impressões são contingentes, então a própria noção de causalidade — essa pedra angular da ciência — se revela uma ficção psicológica, produto da associação habitual entre eventos, mas destituída de qualquer fundamento racional ou necessário. A causalidade não se vê, não se toca, não se experimenta diretamente; ela é um hábito, não uma necessidade. O empirismo, aqui, revela seu preço: a abdicação da metafísica, a renúncia ao fundamento, a aceitação de que o saber humano flutua sobre um abismo de incerteza, sustentado apenas pela regularidade costumeira da experiência.
O projeto kantiano emerge como uma reação dramática a essa crise. Kant reconhece a validade da crítica humeana, mas recusa seu ceticismo. Ele mantém a procedência empírica do conteúdo do conhecimento, mas afirma que a forma — espaço, tempo, causalidade, substância — não deriva da experiência, mas da própria estrutura transcendental do sujeito. A experiência continua sendo fonte necessária, mas não suficiente. Assim, o empirismo, na crítica kantiana, é reabilitado, mas também subordinado: o sensível fornece a matéria, mas o entendimento fornece as formas.
O empirismo pós-kantiano se vê, então, fragmentado entre várias tendências. O positivismo lógico, no século XX, busca depurar o empirismo de suas ambiguidades filosóficas, convertendo-o em um programa científico, onde as proposições têm sentido apenas se puderem ser verificadas empiricamente. Mas esse empirismo lógico logo se depara com suas próprias limitações — sobretudo após as críticas de Quine, que demonstram que nenhuma observação é pura, e que todo dado sensível já está impregnado por teorias, conceitos, linguagens. A observação não é um dado bruto; é uma construção mediada.
O empirismo contemporâneo, longe de ser uma doutrina homogênea, vive sob o signo da crise e da reinvenção. A filosofia da ciência debate incessantemente os limites da observação, a relação entre teoria e dado, a impossibilidade de qualquer neutralidade epistemológica. A neurociência e a psicologia cognitiva mostram que a percepção não é uma janela transparente, mas uma construção ativa, moldada por inferências, expectativas, processos inconscientes.
Mesmo nas ciências físicas, o empirismo enfrenta sua própria dissolução: a mecânica quântica, com seus observáveis dependentes do aparato de medição, parece sugerir que o próprio conceito de "dado" não é tão ingênuo quanto supunha o empirismo clássico. O dado não é o mundo tal como é, mas o mundo tal como aparece dentro de um enquadre experimental, sob condições controladas, mediadas, interpretadas.
Por fim, no horizonte da contemporaneidade, o empirismo ressurge muitas vezes mais como uma atitude crítica do que como uma doutrina: uma vigilância constante contra os excessos da especulação, uma recusa a aceitar entidades, processos ou relações que não possam, de algum modo, ser ancorados no âmbito da experiência — mesmo que essa experiência, agora, seja compreendida como profundamente teorizada, construída e mediada.
O empirismo, assim, não é uma solução, mas um problema constante. Ele é o lembrete incômodo de que todo saber começa no contato com o mundo — mas também o testemunho inquietante de que esse contato jamais é direto, jamais é puro, jamais é suficiente. Ele é, ao mesmo tempo, a soberania do dado e o cativeiro da imediaticidade — um convite permanente a pensar os limites do próprio pensar.
Idealismo: Conquistas, Fraturas e o Custo Ontológico da Submissão do Real à Consciência.
A história do idealismo não é apenas a história de uma doutrina filosófica. É, na verdade, uma torção ontológica de proporções civilizatórias — uma inflexão na própria tessitura do real tal como o ocidente aprendeu a concebê-lo, interpretá-lo e, sobretudo, dominá-lo. Quando a filosofia ergue a primazia da ideia sobre a matéria, da subjetividade sobre a facticidade, da forma sobre a substância, ela não apenas redefine o lugar do humano no cosmos, mas também estabelece os fundamentos invisíveis de práticas, instituições e projetos técnicos, científicos e políticos que desenharam o mundo moderno.
O idealismo platônico, ao estabelecer a supremacia do inteligível sobre o sensível, não foi um mero exercício metafísico. Ele forjou a própria arquitetura mental que tornaria possível a emergência das ciências formais, da matemática pura, da geometria, e mais tarde da lógica formal — territórios do saber que não se alimentam do mutável, do contingente, do sensível, mas da estabilidade do conceito, da eternidade da forma, da perfeição do modelo. A possibilidade de construir uma ciência dedutiva, como a matemática euclidiana ou a lógica aristotélica — embora Aristóteles logo reaja ao platonismo com seu realismo moderado —, é uma consequência direta dessa intuição idealista de que há um plano de ser independente do fluxo das aparências.
Mas a conquista idealista não se limita ao domínio do saber abstrato. A própria ideia de verdade como correspondência a um modelo, a um arquétipo, a uma essência, é herdeira dessa matriz. Sem esse gesto, seria impensável a construção das grandes arquiteturas teóricas da modernidade — da física newtoniana, que pressupõe leis universais que regem a multiplicidade dos fenômenos, à teoria do contrato social, que idealiza uma ordem racional possível como fundamento da legitimidade política. A utopia, seja ela política, científica ou religiosa, é um produto do idealismo: é o deslocamento da perfeição para fora do presente, para um além — seja transcendental, histórico ou escatológico — que regula e julga o aqui e agora.
O Cristianismo, ao se fundir com o platonismo tardio, opera uma transmutação do idealismo em teologia: o mundo sensível é sombra, criação, manifestação imperfeita da ideia absoluta, que agora recebe o nome de Deus. O paraíso, a vida eterna, o juízo final — todas essas estruturas escatológicas são expressões ontoteológicas do gesto idealista. A história se torna, então, o palco de uma tensão entre o ser e o dever-ser, entre a queda e a redenção, entre o mundo corruptível e a promessa da plenitude.
Essa mesma lógica se transfere, secularizada, para a modernidade. O idealismo transcendental kantiano é, sob outro nome, uma tentativa de salvar as condições da objetividade após o colapso do empirismo humeano. Aqui, o mundo não é o que é, mas o que deve ser segundo as condições a priori da consciência. A razão não descobre o real; ela o constitui, impondo-lhe suas formas, suas categorias, seus esquemas. É uma vitória epistêmica extraordinária, que funda não apenas a crítica da razão, mas também todo o edifício da ciência moderna, que se move sobre um duplo eixo: o dado sensível e a construção formal.
Porém, cada conquista idealista carrega em si seu próprio veneno. A submissão do ser ao pensar — ou, na variante kantiana, a redução do ser ao fenômeno, ao que é dado nas condições da experiência possível — introduz uma fratura ontológica que não pode ser ignorada. Pois o real, ao ser reduzido àquilo que pode ser pensado, deixa de ser um outro radical e se torna um correlato da consciência. Surge, então, uma metafísica do controle, onde a inteligibilidade é o critério do ser, e onde o que escapa ao conceito é descartado como ilusão, ruído ou insignificância.
Esse modelo idealista é também a matriz oculta de grande parte dos projetos totalizantes da modernidade. O hegelianismo, por exemplo, ao conceber a história como manifestação dialética do espírito absoluto, gera uma lógica onde a diferença, o contingente e o outro são sempre provisórios, sempre destinados a serem superados (aufgehoben) na síntese superior. Daí não é difícil ver como certas derivações desse idealismo histórico podem escorregar para projetos políticos totalizantes, que enxergam a história como um caminho necessário rumo a uma realização final — seja na forma do Estado ético hegeliano, seja nas versões secularizadas do marxismo histórico-dialético.
As consequências práticas desse imaginário idealista são ambíguas. De um lado, ele é a condição de possibilidade das grandes construções institucionais, científicas e culturais que organizam o mundo contemporâneo: a ideia de direitos universais, de razão pública, de ordenamento jurídico que se ancora em princípios racionais e não apenas em costumes. Toda ideia de progresso, de emancipação, de libertação — seja no plano individual, científico ou social — é tributária da noção idealista de que há um horizonte normativo que transcende a facticidade do presente.
Mas, de outro lado, o idealismo carrega consigo o germe da alienação metafísica: ao projetar o sentido para além do sensível, ele frequentemente desvaloriza o corpo, a natureza, a imanência. O mundo deixa de ser um fim em si e se torna um meio — uma etapa provisória rumo ao reino das essências, da razão, do absoluto. Isso legitima, muitas vezes, uma exploração insaciável da natureza, vista não como alteridade viva, mas como matéria informe à disposição da forma imposta pelo espírito humano. A modernidade técnica, na sua ânsia de modelar o mundo segundo esquemas racionais, carrega essa herança idealista, que dissolve a alteridade do real na plasticidade do conceito.
Não é por acaso que, no século XX, assistimos à insurreição fenomenológica e existencial contra o excesso de idealização: Husserl denuncia a "crise das ciências europeias" precisamente porque, ao esquecerem o mundo-da-vida (Lebenswelt), tornaram-se abstratas, alienadas. Heidegger, mais radical, vê no idealismo ocidental — que ele traça desde Platão — a origem do esquecimento do ser e da redução do ente a mero objeto de cálculo e manipulação. A técnica moderna, no seu desdobramento, seria o ápice dessa metafísica da presença, onde tudo é reduzido à disponibilidade, à presença para o sujeito.
Portanto, se o idealismo é o motor de algumas das maiores conquistas da humanidade — da ciência matemática à concepção de direitos universais, da possibilidade de uma razão intersubjetiva ao desenvolvimento das tecnologias que moldam o mundo —, ele é também responsável por derrotas profundas: o esvaziamento do mundo sensível, a cisão entre sujeito e natureza, o esquecimento da finitude e da alteridade. Cada catedral conceitual erguida pela razão idealista lança, à sua sombra, um deserto ontológico onde o ser que não se deixa pensar é condenado ao silêncio.
O idealismo, enfim, não é apenas uma doutrina. É uma ferida aberta na própria relação entre o homem e o ser — uma tensão que não cessa de produzir tanto luz quanto sombra, tanto liberdade quanto dominação, tanto sentido quanto vazio.
Realismo: A Insurreição do Ser, as Conquistas do Limite e o Drama da Resistência Ontológica.
O realismo não é uma simples tese sobre a existência de um mundo exterior; é, antes de tudo, um gesto metafísico de resistência. Resistência contra a tentação narcísica da consciência, contra a hybris do espírito que deseja submeter o ser ao conceito, a coisa ao pensamento, o mundo à ideia. O realismo se ergue como a afirmação brutal, quase violenta, de que o ser não depende do pensar, de que há uma exterioridade irreversível, uma alteridade que não se deixa dissolver no espelho da subjetividade.
Por trás de cada formulação realista — dos fragmentos dos pré-socráticos ao empirismo científico, passando pelo aristotelismo e por certos materialismos contemporâneos — vibra uma mesma intuição ontológica: o mundo subsiste. Ele está aí, independente, irreverente, anterior e posterior ao nosso olhar. A pedra, para falar como Merleau-Ponty, não precisa que a vejamos para ser dura.
O realismo, no entanto, não é um gesto ingênuo. Ele não afirma a existência do mundo sensível como quem simplesmente aponta para o que está diante dos olhos. Ao contrário, é uma declaração de princípio ontológico, de que o ser não é redutível nem às formas da consciência (contra o idealismo), nem às abstrações matemáticas, nem às construções simbólicas. A coisa precede o nome, o ente precede o conceito.
É neste gesto que reside sua primeira conquista: o resgate da facticidade como dado ontológico irredutível. Aristóteles, ao se insurgir contra Platão, opera uma torção definitiva: a forma, sim, é princípio de inteligibilidade, mas não paira num além-mundo. Ela está nas coisas, imanente aos entes, misturada à matéria, encarnada na substância. A ontologia aristotélica, nesse sentido, é uma declaração de guerra contra a abstração metafísica que exila o real num além. Com isso, Aristóteles salva a physis da condenação platônica — reintegra o mundo sensível como campo legítimo do ser.
Essa reintegração gera frutos imensos. A física, tal como entendida no mundo helênico, e posteriormente, na escolástica medieval, não é uma física matemática (como será em Galileu e Newton), mas uma física ontológica, preocupada com a estrutura do ser, com as causas, com os modos de ser dos entes. Essa tradição realista permite à humanidade a construção de uma visão de mundo onde o concreto, o individual, o aqui e agora, não são simples sombras, mas expressão plena do ser.
Porém, o realismo não se limita à filosofia antiga. Ele atravessa a Idade Média na forma do debate sobre os universais — o realismo moderado de Tomás de Aquino, por exemplo, que afirma que os universais existem, sim, mas in re, isto é, nas próprias coisas, não como entes separados. E mais: sua metafísica é um realismo radical onde o ato de ser (esse) é anterior até à essência. Deus, aqui, é não apenas o ser supremo, mas o próprio ato de ser, conferindo existência aos entes finitos.
No plano prático, essa ontologia realista permite a construção de uma ciência da natureza, uma teologia da criação e, paradoxalmente, uma ética que reconhece a limitação e a finitude como traços constitutivos do ser humano. O mundo não é mero palco de provas para a alma, mas um mundo dotado de consistência, de inteligibilidade, de valor intrínseco.
Contudo, esse mesmo realismo carrega seu próprio paradoxo: ao afirmar que o ser subsiste independentemente da consciência, ele corre o risco de absolutizar o dado, de fetichizar a exterioridade, de converter a alteridade do mundo numa máquina muda, numa ordem inerte. Essa é, em parte, a crítica que Heidegger fará à metafísica ocidental como um todo — inclusive ao realismo aristotélico e tomista — por reduzir o ser ao ente, por esquecer a diferença ontológica e assim perder o próprio mistério do ser.
A modernidade, na sua vertigem técnica, é herdeira também do realismo. A ciência experimental, ao se estruturar na observação, na medição, no controle dos fenômenos, assume como princípio tácito a existência de um mundo objetivo, regido por leis que independem de nossas crenças ou desejos. O método experimental é, em certo sentido, a cristalização metodológica do realismo ontológico. E aqui se revelam as ambivalências da conquista: se por um lado esse gesto possibilita a explosão tecnológica, médica, científica que redefine as condições materiais da existência humana, por outro lado, contribui para uma crescente reificação do mundo — a transformação da natureza, dos corpos, dos próprios seres humanos em objetos manipuláveis, calculáveis, disponíveis.
Assim, o realismo, ao afirmar a autonomia do ser, paradoxalmente prepara o terreno para a sua redução ao domínio técnico. Quando o mundo é pensado como totalmente exterior, como aquilo que está "aí" à disposição do olhar, da mão, da ferramenta, ele corre o risco de se converter num puro estoque, na linguagem heideggeriana, num fundo de reserva (Bestand) pronto para ser explorado.
O drama do realismo é, portanto, duplo. Por um lado, ele é a defesa última da resistência do ser — a recusa de que o mundo se deixe dissolver na fantasia, na ideologia, no delírio solipsista. Sem ele, não há ciência, não há justiça, não há sequer diálogo, pois tudo se afunda no relativismo do puro perspectivismo. Por outro lado, sua vitória demasiado plena gera o risco de um mundo esvaziado de mistério, onde o ente sufoca o ser, onde o visível anula o invisível, onde tudo se torna transparente, dominável, previsível.
Se o idealismo constrói catedrais no céu, o realismo ergue fortalezas na terra. Mas como toda fortaleza, ela protege e aprisiona. Ela guarda a integridade do ser contra a dissolução subjetiva, mas também ergue muros que podem isolar o pensamento do abismo ontológico que o ultrapassa.
O realismo é, assim, uma tensão permanente: entre o reconhecimento da alteridade do real e o risco de sua banalização; entre a celebração da facticidade e a tentação de reduzi-la a puro dado morto. Seu maior triunfo é também sua maior ferida: ao afirmar que o mundo subsiste, ele nos lembra, sem cessar, que o ser não precisa de nós — e que é precisamente essa indiferença ontológica que dá sentido, limite e peso à aventura humana.
Empirismo: A Epistemologia da Contingência, o Triunfo do Fato e a Derrota do Absoluto.
O empirismo não é, em essência, uma simples doutrina epistemológica, mas a cristalização de uma revolução ontológica silenciosa. Nele, o ser cede espaço ao fenômeno, a substância se curva ao evento, e a estrutura cede lugar ao dado sensível. O empirismo não interroga o que as coisas são, mas tão somente o que nelas se manifesta. O mundo, nessa chave, não é um teatro da essência, mas um fluxo descontínuo de percepções, de impressões, de ocorrências cuja única consistência repousa na própria experiência.
Contra a tradição racionalista que busca os fundamentos no a priori, o empirismo aposta tudo no a posteriori. Não há ideias inatas, nem arquétipos, nem formas transcendentes. A mente não nasce como portadora de estruturas do ser, mas como uma tábula rasa — um campo vazio que vai sendo preenchido pelas inscrições da experiência. O sujeito é, portanto, um efeito tardio do mundo, não sua condição de possibilidade.
Essa operação filosófica é de uma radicalidade extrema. Se, no realismo clássico, a coisa precede o conceito, no empirismo a percepção precede até a própria coisa. Porque a coisa, enquanto unidade estável, enquanto identidade durável, é uma construção, uma síntese pragmática operada a partir do hábito, da recorrência dos dados sensíveis. O mundo se organiza não porque possua uma ordem ontológica intrínseca, mas porque a mente, adaptativamente, consolida regularidades perceptivas.
David Hume leva essa intuição às últimas consequências, desmontando não apenas os alicerces do racionalismo, mas também corroendo por dentro o próprio edifício do realismo ontológico. Para Hume, a causalidade não é uma conexão necessária existente no mundo, mas uma expectativa psicológica fundada na repetição. O fogo não "causa" a queima; nós apenas estamos acostumados a ver um evento suceder o outro. A causalidade, portanto, não é uma propriedade do ser, mas um hábito da mente.
Aqui se inaugura um abismo ontológico: se não há conexão necessária entre os fenômenos, então o mundo é, no limite, um caos ordenado apenas pelo costume humano. A ciência, nesse horizonte, não é uma descoberta da estrutura do real, mas uma descrição estatística de recorrências observáveis. Ela se torna uma ferramenta pragmática, não uma via de acesso à essência das coisas.
Mas é exatamente nesse gesto que o empirismo realiza uma de suas maiores conquistas: ao destituir o mundo de sua aura metafísica, ele emancipa o conhecimento da prisão da essência. A verdade deixa de ser correspondência com uma realidade última e passa a ser adequação aos dados, às regularidades observáveis, aos fatos. Essa mutação epistemológica pavimenta o caminho para o surgimento da ciência moderna em sua vertente experimental, falsificacionista, autocorrigível.
O triunfo do empirismo é, portanto, também o triunfo da contingência. Se o conhecimento depende dos dados da experiência, ele é por definição limitado, provisório, sempre suscetível de revisão. O saber humano se torna uma tarefa infinita, aberta, inacabada — uma navegação permanente no oceano da fenomenalidade, sem jamais alcançar a terra firme do absoluto.
Essa revolução tem impactos colossais. Na política, alimenta os fundamentos do liberalismo, da tolerância, do contrato social, ao deslocar a legitimidade das instituições das tradições metafísicas para os consensos empíricos, para a experiência social efetiva dos indivíduos. Na economia, legitima a emergência do capitalismo moderno, onde o valor não decorre de essências aristotélicas nem de ordens divinas, mas da interação factual dos agentes, da circulação contingente das mercadorias, da pragmática do mercado. Na ciência, instaura o império do experimento, da hipótese testável, do dado como árbitro supremo entre crenças concorrentes.
Contudo, seu triunfo não vem sem custo. Ao destituir o mundo de sua espessura ontológica, o empirismo ameaça dissolver o próprio sentido do ser. Se tudo é fenômeno, se tudo se reduz à impressão sensível, o próprio sujeito que percebe torna-se uma ficção — uma coleção transitória de estados mentais, sem núcleo, sem substância, sem identidade profunda. Hume, mais uma vez, é implacável: ao buscar o eu, encontro apenas uma sucessão de percepções, de sensações, de memórias — nunca um eu substancial, nunca um centro metafísico que unifique essa
A Dialética do Sujeito-Objeto: O Homem Entre Ser e Ordem.
Na tessitura secreta da realidade, a relação sujeito-objeto nunca foi uma questão epistemológica isolada, mas uma tensão ontológica primária. O homem emerge no seio do mundo não como um sujeito soberano que contempla um objeto exterior, mas como uma dobra do próprio real, um fragmento que se interroga, um objeto que tenta se reconhecer enquanto sujeito, e vice-versa.
Se o idealismo quis submeter o mundo à forma da consciência, instaurando a supremacia do sujeito transcendental sobre o objeto, e se o realismo insurgiu-se contra essa prepotência, reintegrando o ser como anterior ao pensar, e se, por fim, o empirismo tentou dissolver ambos numa fenomenologia pragmática do dado sensível, todos esses movimentos ocultam uma verdade dialética mais profunda: o próprio jogo entre sujeito e objeto é um artefato da consciência que se descobre no interior de uma ordem que não criou — uma ordem que o precede, o excede e, no entanto, o atravessa.
O homem, nesse horizonte, não é apenas aquele que conhece, mas aquele que é conhecido. Não apenas aquele que observa, mas também aquele que é observado — não metaforicamente, mas ontologicamente. O mundo é, por um lado, o campo do dado, da exterioridade, da resistência, aquilo que o realismo defende como independência do ser. Mas esse mundo não se limita à exterioridade física — ele é também a trama das determinações históricas, culturais, simbólicas, naturais, que moldam o próprio homem como objeto dentro de uma ordem que ele experimenta como anterior.
Por outro lado, na medida em que o homem emerge como consciência, ele tenta inverter essa relação: faz do mundo um objeto de conhecimento, de manipulação, de representação. Aqui ressurge o idealismo, não como tese filosófica isolada, mas como movimento estrutural da consciência que, ao se constituir, busca transcender a exterioridade, reintegrando-a como objeto de sua atividade categorial. O mundo deixa de ser simples alteridade para tornar-se representação, conceito, projeção da razão.
O empirismo intervém como o mediador dialético desse conflito. Ele não concede ao homem a soberania idealista, nem aceita a submissão passiva ao ser realista. O empirismo dissolve ambos na prática da experiência, onde sujeito e objeto não são substâncias opostas, mas polos de um processo contínuo de interação. A percepção não é espelho fiel nem construção pura — ela é acontecimento, é produção contingente de sentido na zona de contato entre homem e mundo.
Mas é aqui que a dialética se intensifica e revela seu nó trágico: na medida em que o homem busca-se como objeto numa ordem que é o mundo, ele descobre que não é senhor dessa ordem, mas seu produto, seu efeito, sua expressão contingente. A biologia o submete às suas leis, a sociedade às suas normas, a linguagem às suas estruturas, a economia às suas forças impessoais. O homem é, portanto, um objeto na ordem da natureza, um objeto na ordem da cultura, um objeto na ordem da técnica — uma função da totalidade que o excede.
E no entanto, é justamente nessa condição de objeto que ele se ergue como sujeito. A consciência nasce como ruptura, como negação dialética da pura facticidade. O homem se sabe determinado, mas exatamente por isso ele se interroga, se reflete, se recusa a ser apenas aquilo que o mundo fez dele. O sujeito não é uma substância metafísica; é uma posição na ordem dialética, um efeito reflexivo da própria condição de objeto.
A síntese, portanto, não está nem na dissolução do sujeito no objeto (realismo absoluto), nem na redução do objeto ao sujeito (idealismo absoluto), nem na suspensão pragmática da questão (empirismo instrumental). A síntese se dá na compreensão de que o sujeito é o objeto que se interroga; que o mundo, enquanto ordem, é o sujeito que impõe suas determinações, mas que é, ao mesmo tempo, objeto do trabalho, da técnica, do pensamento humano.
O mundo age sobre o homem antes que o homem aja sobre ele. A fome, o frio, a morte, a necessidade, a gravidade — todas essas forças fazem do homem, primeiro, um objeto submisso. A técnica, a cultura, o pensamento, a linguagem — são, por sua vez, as formas com que o homem reverte parcialmente essa condição, tornando o mundo objeto da práxis. Mas em cada avanço, em cada superação, o mundo retorna — agora como limite técnico, como crise ecológica, como colapso civilizacional, como resistência última do ser contra a pretensão de totalidade da consciência.
Essa dialética é, portanto, um movimento interminável, onde sujeito e objeto não são entidades fixas, mas funções dinâmicas, posições móveis no campo das relações entre homem e mundo. O homem é sujeito na medida em que faz do mundo objeto de sua ação. Mas é objeto na medida em que a ordem do mundo o molda, o limita, o constitui. E vice-versa: o mundo é sujeito enquanto impõe suas leis, suas contingências, sua facticidade, e é objeto enquanto se deixa transformar, reinterpretar, reconfigurar pela atividade humana.
Na convergência de idealismo, realismo e empirismo, o homem aparece não como soberano do ser, nem como escravo do real, nem como mero coletor de dados sensíveis — mas como aquilo que se faz e se desfaz no entrelaçamento dialético entre ser e aparecer, entre determinação e liberdade, entre necessidade e projeto. O homem é o local onde o ser se reflete, onde o mundo se sabe mundo, e onde a própria dialética entre sujeito e objeto encontra seu palco, sua arena, seu drama incessante.
O que emerge desse quadro não é a síntese reconciliatória, mas a consciência trágica da condição humana: ser, ao mesmo tempo, sujeito e objeto; criador e criatura; legislador da ordem e filho da ordem.
A verdadeira filosofia, aqui, não é a que busca resolver essa tensão, mas a que habita esse abismo — a que pensa desde ele, com ele, nele.
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