sexta-feira, 2 de maio de 2025

Realidade e Substância: Arquitetura Ontológica do Ser.

A Etimologia e a Concepção Filosófica de “Realidade” nas Tradições Antigas e na Escolástica.

A ideia de "realidade", embora aparentemente universal, assume formas distintas nas grandes tradições linguísticas e filosóficas da antiguidade. A etimologia do termo em diferentes línguas revela não apenas variações linguísticas, mas modos de pensar o ser, o verdadeiro e o que se impõe como existente.

No sânscrito, encontramos os termos Satya e Tattva. Ambos remetem à raiz sat (ser, existir), indicando que o real é aquilo que é verdadeiro por ser, isto é, cuja existência mesma garante sua veracidade. Satya é a verdade ontológica, e Tattva, a natureza essencial daquilo que é. Aqui, realidade é identidade entre ser e verdade — o real é o que possui tattva, essência firme.

No aramaico, idioma de tradição semítica, a aproximação mais fiel ao conceito é šrārā, termo que denota verdade, firmeza e constância. A realidade, nesse campo, é aquilo que permanece, o que resiste à mudança e à ilusão, revelando-se no que é estável, confiável.

Na tradição árabe, especialmente nas correntes filosóficas islâmicas, destaca-se o termo ḥaqīqah, derivado da raiz ḥ-q-q, que implica verdade, direito, certeza. Ḥaqīqah é a realidade essencial de uma coisa, oposta à aparência. Para os místicos do sufismo, a realidade é alcançada por desvelamento interior, mais espiritual que material — é o "núcleo oculto" das coisas.

O grego antigo oferece o termo alētheia, de a- (negação) + lēthē (esquecimento). Assim, realidade é aquilo que não está esquecido, o que se manifesta plenamente, livre do véu do ocultamento. A verdade grega é revelação: o real é aquilo que se mostra, que resiste ao desaparecimento e se inscreve no horizonte da consciência.

O latim, ao formar realitas a partir de res (coisa), propõe uma virada importante: realidade passa a ser o estado de uma coisa enquanto coisa, ou seja, a coisalidade. Isso prepara o caminho para os pensadores medievais da escolástica, que herdaram o vocabulário latino e o integraram à ontologia cristã.

Na filosofia escolástica, especialmente em Tomás de Aquino, a realidade é compreendida como aquilo que existe verdadeiramente por participar do ato de ser (actus essendi). O real é o ente em sua efetivação: não basta que algo tenha uma essência, é necessário que ela seja atualizada pelo ser. Assim, distingue-se entre o ens reale (ente real) e o ens rationis (ente da razão, como uma ficção ou abstração). A realidade, portanto, é entendida como aquilo que existe fora da mente, ainda que sempre referida a um fundamento supremo: Deus, o Ser necessário. Nesse sentido, a realidade é também ordem, coerência, participação — não há realidade autônoma, mas derivada do absoluto.

Por fim, em algumas línguas africanas antigas, especialmente no egípcio antigo, o termo Maat desempenha um papel semelhante. Ele designa o princípio de ordem cósmica, verdade e justiça, sendo a estrutura mesma da realidade — não apenas o que é, mas o que deve ser para que o mundo seja sustentado. No Ge’ez (Etiópia antiga), encontramos raízes compartilhadas com o árabe, como ḥaq, expressando também verdade e essência, muitas vezes associada ao que está fixado ou revelado por escrita ou tradição sagrada.

A comparação revela que, nas tradições mais antigas, a realidade é menos um “objeto externo” e mais uma qualidade ontológica ou espiritual: ela é aquilo que permanece, que se mostra, que tem essência. Já na escolástica, a realidade se inscreve num sistema lógico e teológico, onde o real é o que existe em conformidade com a razão divina, numa hierarquia de seres marcada por sua participação no Ser por excelência.

Dessa forma, a etimologia e os sentidos filosóficos do termo "realidade" traçam uma linha contínua entre o ser, a verdade e a manifestação. O real é aquilo que resiste ao desaparecimento, que se impõe ao pensamento e que, nos sistemas mais teológicos, participa de uma ordem superior que o fundamenta.

A Etimologia e a Concepção Filosófica de “Substância” nas Tradições Antigas e na Escolástica.

A noção de substância é uma das mais fundamentais da metafísica. Mais do que uma simples palavra, ela é o nome do que sustenta o ser, do que permanece por baixo das aparências. Como conceito filosófico, surge de raízes antigas, cruzando culturas e sistemas de pensamento, até se consolidar na escolástica como pilar da ontologia cristã.

No sânscrito, uma aproximação ao conceito de substância se encontra em Dravya (द्रव्य), termo que designa “aquilo que possui qualidades”, a entidade portadora de atributos. Em tradições como o vaiśeṣika, dravya é um dos sete princípios fundamentais da realidade, considerado o substrato no qual as qualidades (guṇa) e ações (karma) existem. Já svabhāva (natureza própria) aparece como a essência ou natureza interior, remetendo a uma ideia de substância como princípio intrínseco e autossuficiente.

No aramaico, devido à sua gramática nominalista e religiosa, não há um termo técnico direto para substância, mas pode-se usar ‘īqar (ܥܝܩܪ), que significa "essência", "núcleo", ou até "valor". Em contextos filosóficos influenciados pelo grego ou pelo siríaco cristão, o termo kyānā (ܟܝܢܐ) também é usado, significando literalmente "natureza", sendo uma tradução de ousia grega. A substância, aqui, é aquilo que constitui o ser essencial das coisas, distinguindo-se dos acidentes.

No árabe, a palavra para substância é jawhar (جوهر), usada largamente na filosofia islâmica. O termo tem origem persa (gohar) e foi arabizado como jawhar, significando “essência”, “joia”, “núcleo”. Na lógica e metafísica aristotélico-islâmica, jawhar é aquilo que subsiste em si mesmo, em oposição aos a‘rāḍ (acidentes), que dependem de outro para existir. A substância é, portanto, o suporte do real.

No grego, a palavra central é ousia (οὐσία), derivada do verbo einai (ser). Etimologicamente, ousia é o “ser em si”, o que possui existência própria. Aristóteles a define como “aquilo que existe primariamente”, isto é, o que subsiste por si e em si, enquanto os acidentes apenas existem em algo. É o núcleo da ontologia clássica, a base sobre a qual toda a filosofia ocidental ergue sua estrutura de categorias.

No latim, o termo que traduz ousia é substantia, vindo de sub- (sob) + stare (estar, permanecer). Assim, substantia é aquilo que está debaixo, o que permanece sob os acidentes. Em outras traduções latinas, também aparece essentia, derivado de esse (ser), como o que constitui o “ser da coisa”. A tradução para o pensamento escolástico será guiada por essas duas palavras: substantia como suporte ontológico, e essentia como natureza inteligível.

Nas línguas africanas antigas, embora os sistemas filosóficos sejam menos sistematizados nos moldes aristotélicos, há conceitos próximos. No egípcio antigo, o termo khat referia-se ao “corpo físico” (como substrato visível do ser), enquanto ka e ba referem-se a princípios anímicos e espirituais — sugerindo uma visão composta da substância, como união de suporte e princípio vital. Já em línguas como o Ge’ez, termos como ḥāla (estado) e ʿayn (essência) aparecem na literatura teológica e filosófica traduzida do grego ou do árabe, aproximando-se das ideias de substância como natureza permanente.

Na filosofia escolástica, sobretudo em Tomás de Aquino, a substância é o ente que subsiste em si mesmo e serve de sujeito para os acidentes. Ela é definida pela sua essência (o que a coisa é) e pelo seu ato de ser (esse). As substâncias criadas participam do ser por derivação, enquanto Deus é a substantia subsistens — o Ser por essência, cuja substância é idêntica ao seu ser. A substância é, pois, a realidade primeira e mais profunda, sobre a qual se aplicam as categorias secundárias. A escolástica ainda distingue:

Substância primeira: um ente concreto (como “este homem”).

Substância segunda: o conceito universal (como “humanidade”).

Esse esquema servirá de base para a metafísica clássica, a teologia dogmática e até para a ontologia moderna.

Assim, ao observar as tradições antigas, vemos que a substância é concebida ora como suporte metafísico, ora como essência interior, ora como núcleo espiritual ou existencial. Na tradição indiana, ela é o portador de qualidades; no mundo semítico, é o núcleo firme do ser; para gregos e latinos, é o que subsiste por si e sustenta os acidentes. Já na escolástica, ela se torna o ponto de interseção entre o ser e a essência, entre Deus e a criatura, entre o inteligível e o sensível.

Realidade e Substância: Duas Faces do Ser.

A interrogação sobre o que é real sempre conduziu ao exame do que subsiste, e, inversamente, a busca pela substância leva inevitavelmente à pergunta: o que é o real em sua plenitude? A história do pensamento, desde suas origens linguísticas até sua formalização na filosofia escolástica, revela uma tensão criativa entre esses dois conceitos — realidade e substância — que, embora distintos, são mutuamente implicados.

Etimologicamente, os termos expressam camadas diferentes do ser. Realidade, como vimos, deriva de expressões como sat (sânscrito), alētheia (grego), ḥaqīqah (árabe) e realitas (latim). Em todos esses contextos, ela aponta para aquilo que é de fato, aquilo que não se oculta, não ilude, não desaparece. Realidade é o estado do ser enquanto manifesto, estável, verdadeiro ou presente.

Já substância, com raízes em dravya (sânscrito), jawhar (árabe), ousia (grego) e substantia (latim), designa o que permanece sob os acidentes, o que subsiste em si. Ela é o que sustenta o real, o suporte invisível sobre o qual repousam os modos mutáveis da existência.

Na tradição escolástica, essa distinção é refinada: a realidade (realitas) de algo depende de sua existência efetiva, mas essa existência se dá em uma substância. Assim, a substância é anterior à realidade enquanto estado atual do ente. Nada pode ser real sem ser algo — e esse algo é definido por sua substância. A realidade é o modo de ser da substância quando ela participa do ato de existir.

Contudo, se formos mais fundo, vemos que a realidade em seu sentido absoluto (isto é, o Ser mesmo) precede todas as substâncias criadas. Em Tomás de Aquino, Deus é o Ser subsistente (ipsum esse subsistens), em quem essência e existência se identificam. Assim, a realidade enquanto Ser puro precede a substância criada, mas em todas as criaturas, a substância precede logicamente os acidentes e torna possível sua realidade particular.

Há, portanto, um jogo duplo:

No plano ontológico absoluto, o Ser (realidade) precede e funda a substância: Deus não é uma substância entre outras, mas a própria realidade sem suporte, pura atualidade.

No plano do ente criado, a substância precede logicamente a realidade enquanto estado: algo só pode ser real se for alguma coisa — e essa "coisa" é sua substância.

Nas línguas antigas e suas respectivas filosofias, essa mesma dinâmica aparece de formas variadas. No sânscrito, satya (realidade verdadeira) e dravya (substância) se entrelaçam, mas o ser (sat) é o fundo primeiro. No grego, alētheia é o desvelamento do ser, mas é ousia que dá identidade estável ao ente. No árabe, ḥaqīqah aponta para a verdade do ser, mas só jawhar dá conta do que subsiste sem depender de outro.

Podemos concluir, então, que:

A realidade é o horizonte do ser manifesto, aquilo que aparece como existente.

A substância é o núcleo ontológico que permite a permanência dentro desse horizonte.

Em termos de fundamentação:

O Ser absoluto (realidade pura) é anterior a toda substância.

A substância criada, por sua vez, torna possível a realidade relativa dos entes concretos.

Unidos, esses conceitos compõem a estrutura da ontologia clássica: a realidade é o campo em que o ser aparece; a substância é o que garante que esse ser não se esvaia.

Complemento Adicional.

Trecho adaptado de Tomás de Aquino — Suma Teológica, I, q.3, a.4 e I, q.29, a.1:

> "Em Deus, ser e essência são idênticos. Ele é sua própria realidade (realitas) e sua substância (substantia). Nas criaturas, porém, o ser (esse) não é sua substância, mas algo que se acrescenta a ela, como o ato ao que é em potência. Assim, a substância criada é aquilo que possui a essência de modo determinado, mas sua realidade depende da participação no ser."

Comentário:

Neste fragmento, Tomás expõe a hierarquia ontológica:

Em Deus, substância e realidade se fundem — Ele é o Ser por essência, sem distinção entre o que é e o fato de ser.

Nas criaturas, a substância é a portadora da essência, mas só se torna realidade atual ao participar do ato de ser, que vem de Deus.

Este raciocínio exprime precisamente a lógica que discutimos:

A substância precede a realidade atual no plano das criaturas.

Mas o Ser em si (realitas pura) precede e fundamenta todas as substâncias criadas.

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