Todo sistema filosófico é, antes de ser uma arquitetura de conceitos, a expressão de uma imagem silenciosa, de um pensamento que não se vê, mas que pulsa por trás das palavras. Assim também o positivismo — esse corpo teórico que se ergueu no século XIX, vestindo-se de fatos, leis e métodos, como quem busca na armadura do visível uma defesa contra o abismo do invisível.
À primeira vista, ele se apresenta como clareza. Um discurso limpo, técnico, metódico. Uma proposta de abandono das ilusões teológicas, das fantasias metafísicas, das especulações vazias. Tudo deve submeter-se ao tribunal dos fatos. Tudo que não pode ser visto, medido, contado ou verificado deve ser descartado — como lixo da mente, como superstição persistente da infância da humanidade.
Mas essa aparência é só pele. Uma pele que esconde nervos mais sensíveis, tensões subterrâneas, feridas abertas.
Por trás do método, há uma angústia. Uma inquietação que não é apenas teórica, mas existencial. O positivismo não nasce simplesmente de uma exigência de rigor, mas de uma necessidade mais funda: a necessidade de ordem. Uma fome de estabilidade, de previsibilidade, de um mundo que funcione como um relógio, onde cada efeito tenha sua causa, onde cada fenômeno se encaixe docilmente numa lei, numa fórmula, numa regularidade.
Não é por acaso que a Lei dos Três Estados — teológico, metafísico e positivo — se ergue como uma narrativa de superação. É uma tentativa de escapar do caos do indizível, do imponderável, do inexplicável. O positivismo não se limita a propor um método de conhecimento. Ele propõe uma cura. Uma terapêutica contra o mal da incerteza.
Mas o que é essa incerteza senão o próprio real em sua forma crua? Aquilo que escapa, que excede, que não se dobra, que não cabe nos esquemas, que não se deixa capturar nem pela linguagem, nem pela ciência, nem pela razão.
E é aqui que, abrindo o corpo do positivismo até seu centro mais oculto, encontramos aquilo que de fato o gerou: uma imagem. Não um conceito, nem uma tese, mas uma imagem sensível, uma visão íntima que antecede toda lógica:
> O mundo como máquina.
Esse é o pensamento não dito, não pensado — mas sentido. O mundo como um organismo mecânico, composto de peças, engrenagens, relações constantes, onde tudo que existe é fluxo mensurável, onde tudo que se move obedece a uma regra.
Diante dessa imagem, todo o edifício do positivismo se ergue como inevitável. O fenômeno não é mais aquilo que aparece no jogo trágico do ser, mas uma peça do mecanismo. A lei não é mais o limite que roça o mistério, mas o manual de instruções da máquina. O saber não busca mais o que as coisas são, mas apenas como elas funcionam.
Aqui se consuma o gesto. O gesto invisível de um pensamento que, para não naufragar no mar do indizível, opta por viver na terra firme do mensurável. Uma escolha ontológica travestida de método. Uma metafísica da negação da metafísica.
O positivismo, portanto, não é o fim da filosofia. É o triunfo de uma filosofia que se recusa a se reconhecer como tal — e que, ao negar o invisível, revela, sem querer, o próprio medo que lhe deu origem.
O Mundo Como Ferida — A Anatomia Filosófica do Marxismo.
Todo sistema filosófico nasce de um gesto invisível. Um pensamento que não se vê, mas que antecede toda palavra, toda teoria, todo conceito. É uma visão íntima, subterrânea, anterior ao próprio pensar discursivo — uma espécie de epifania silenciosa, que primeiro se sente, para depois se organizar em doutrina.
Assim também nasceu o marxismo.
À superfície, ele se apresenta como ciência. Uma análise rigorosa da economia, da sociedade, da história. Fala de mais-valia, de luta de classes, de alienação, de infraestrutura e superestrutura. Seu discurso é claro, matemático, quase mecânico: diagnosticar as forças produtivas, compreender as relações de produção, mapear as engrenagens que movem a história — para, a partir disso, intervir, transformar.
Mas essa pele teórica esconde algo mais denso. Mais vivo. Mais antigo que qualquer equação ou modelo.
O marxismo não é, no fundo, apenas um sistema teórico. É um grito. Uma recusa. Um gesto de negação diante de uma percepção primeira: a de que o mundo, tal como está, é uma violência normalizada.
Não se trata de ver a pobreza como acidente, nem a desigualdade como falha. Trata-se de perceber, com crueza, que o sofrimento não é marginal — ele é o próprio funcionamento da máquina social. A exploração não é desvio — ela é regra. A alienação não é erro — ela é estrutura.
Essa percepção não surge no plano da lógica, mas no plano do sentir. Antes de ser tese, ela é imagem. Uma imagem silenciosa que queima por trás dos olhos:
> O real como campo de forças em conflito.
O mundo como ferida aberta.
A sociedade como máquina que só vive porque devora quem a mantém viva.
Diante dessa imagem primordial, tudo se articula. O método dialético, que vê no conflito o motor do devir, não é uma escolha técnica — é o desdobramento natural de quem percebe o mundo como tensão permanente. A história não é progresso linear, não é marcha triunfante — é guerra velada, guerra constante, guerra de classes.
O marxismo, então, se ergue como máquina teórica não para contemplar, mas para intervir. Porque toda ferida, uma vez vista, exige fechamento. E todo sistema que se revela como opressão carrega, dentro de si, sua própria sentença de morte.
É por isso que o marxismo não é apenas análise — é também profecia. Profecia histórica, escrita não em linguagem mística, mas na lógica da própria matéria: tudo que vive de contradição está condenado a transformar-se, ou a perecer.
E, no limite mais íntimo, o gesto invisível que deu origem ao marxismo pode ser expresso assim, com palavras que não são de teoria, mas de visão interior:
> "Nada que se sustenta sobre a dor do outro merece existir."
Essa é a centelha oculta. O fogo que acendeu o edifício. A imagem que veio antes da palavra. A ferida que pariu o pensamento.
Entre a Ordem e a Ferida — O Eixo Invisível que Une Positivismo e Marxismo.
À primeira vista, o positivismo e o marxismo caminham por trilhas opostas. O primeiro ergue-se como celebração da ordem, da regularidade, da submissão dos fenômenos à lógica das leis; o segundo, como denúncia da ruptura, da contradição, da história como campo de batalha. Um sonha com estabilidade; o outro, com transformação.
E, no entanto, quando os submetemos ao bisturi filosófico — quando abrimos suas peles, rasgamos seus músculos, tocamos seus ossos — algo perturbador emerge: ambos nascem da mesma fome primitiva.
Ambos são filhos de uma angústia comum: a percepção de que o mundo, tal como se apresenta, é intolerável se não for compreendido e, de algum modo, dominado.
O Objetivo Central — A Domesticação do Real.
O positivismo quer domesticar o real pelo método, pela lei, pela previsibilidade. Nasce do terror diante do caos, da desordem, do imprevisível. Sua pulsão secreta é uma busca por estabilidade ontológica. O mundo precisa funcionar como uma máquina — e se não funciona, deve ser pensado como se fosse, para que assim possa ser controlado, administrado, previsto.
O marxismo, por sua vez, quer domesticar o real pela transformação. Nasce do horror diante da injustiça, da dor estruturada, da opressão que não é acidente, mas norma. Sua pulsão secreta não é o desejo da ordem, mas o desejo da ruptura: expor a ferida para fechá-la, fazer colapsar a máquina que se alimenta de sofrimento, e parir outra forma de vida, outra organização social, menos cruel, menos alienante.
O Eixo Comum — O Real Como Intolerável.
Ambos compartilham, portanto, a recusa do real tal como ele é. Ambos emergem de uma experiência primeira que diz: “Isto que vejo — este mundo, esta sociedade, esta realidade — não é aceitável.”
No positivismo, essa recusa se volta contra o caos epistemológico, contra o imponderável, contra o mistério, contra aquilo que não se deixa medir. Sua violência é uma violência contra o indizível — um massacre metodológico do invisível, do metafísico, do incerto.
No marxismo, a recusa é ética e material. É dirigida contra a opressão, contra a alienação, contra a exploração, contra a lógica que transforma homens em engrenagens, em mercadorias, em instrumentos de enriquecimento de outros.
O Divergente — O Objeto da Recusa.
O ponto em que divergem não está na estrutura do gesto — que é similar —, mas no objeto desse gesto:
O positivismo mira o não-saber, o não-explicável, o não-controlável. Seu inimigo é o obscuro, o caótico, o metafísico.
O marxismo mira o sofrimento organizado, a exploração, a alienação. Seu inimigo é a desigualdade, o domínio, a violência institucionalizada.
A Semelhança Oculta — O Desejo de Redenção.
Se, no fundo, toda filosofia nasce como um desejo de redenção, tanto o positivismo quanto o marxismo são tentativas, à sua maneira, de curar uma ferida primordial:
O positivismo quer redimir o mundo do caos do desconhecimento, da superstição, da instabilidade.
O marxismo quer redimir o mundo do caos da opressão, da exploração, da dor.
Ambos se querem ciência, ambos se querem verdade, ambos se querem instrumento de salvação. Só divergem no que entendem como doença e no que reconhecem como cura.
A Ironia Final — A Máquina e a Ferida.
A ironia trágica é que, na ânsia de curar, ambos acabam, em algum nível, reproduzindo parte daquilo que combatem.
O positivismo, ao tentar eliminar o incerto, constrói uma visão de mundo que esmaga o sujeito, que reduz o real a fenômeno sem essência, a dado sem interioridade, a superfície sem abismo.
O marxismo, ao tentar abolir a exploração, constrói narrativas que, em certas leituras e implementações históricas, também esmagam o sujeito singular em nome do coletivo, da classe, da história — uma nova máquina, um novo organismo, que às vezes devora seus próprios filhos.
Conclusão Filosófica — O Mesmo Gesto, Espelhos Opostos.
O que a autópsia revela, com clareza quase desconfortável, é que o positivismo e o marxismo são espelhos invertidos de um mesmo gesto humano fundamental:
> O mundo é intolerável enquanto não for inteligível e/ou transformável.
Diante do abismo do ser, ambos optam por não contemplar — optam por agir. Um agindo contra o mistério; outro, contra a dor. Ambos tentando, à sua maneira, reparar o real.
A diferença não é, portanto, de estrutura, mas de direção.
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