quinta-feira, 8 de maio de 2025

Um Toque do Destino: ecos do invisível.

Amigos...
O conceito de liberdade — do latim libertas, derivado de liber, que designava o estado de quem não é escravo — transcende em muito o que sabemos a seu respeito. Ser livre é não ceder, não estagnar, não impedir, não interromper, não paralisar, não bloquear, não barrar. Em última instância, ser livre é não parar. Liberdade é movimento, é verbo — e verbo é ação.

Contudo, quando dizemos que a coisa transcende — do latim transcendere, formado por trans (além) e scandere (subir, escalar), ou seja, ‘subir além’, ‘ir além de’ — queremos nos ater ao ambiente no qual a transcendência deve ocorrer. Para tal, são dois os ambientes de superação — um com mais ênfase do que o outro; irei explicar.

No mundo de qualquer ser, existem duas abordagens às quais ele deve se ater:

Externo — o mundo ao redor, os objetos delimitadores, o mundo de fora, aquilo que, de forma equivocada, o senso comum passou a chamar de ‘vida’, considerando apenas os objetos com os quais se relaciona.

Interno — o mundo de dentro, os objetos construtores: pensamentos internos moldados pela imaginação, memórias onde são alocados, sensações que, em última instância, influenciam nossas tomadas de decisão.

Esses dois ambientes, para fins de explicação, são duas partes de um todo: a alma em constante tentativa de equilíbrio. Esse equilíbrio — do latim aequilibrium, formado por aequus (igual) e libra (balança), ou seja, ‘balança em posição igual’, ‘estado de igualdade entre forças’ — é o que permite a vivência e o movimento do ser.

Todavia, como afirmei anteriormente, é necessário que haja um mover-se. E é em um desses ambientes que o ‘subir além’ — a verdadeira transcendência — deve assumir uma importância maior do que no outro.

É no mundo interno que isso deve ocorrer. Existe, na lógica, um discurso que alude à relação de movimento entre as coisas. Esse discurso tem início em Aristóteles, que, em sua interpretação cosmogônica do mundo, atribuiu a uma relação — ato e potência — o mecanismo pelo qual tudo opera. Séculos depois, São Tomás de Aquino retomaria essa visão com uma ênfase mais teológica, sem, contudo, romper com o núcleo conceitual do estagirita.

Para Aristóteles, o ato (energeia) é a realização plena de uma possibilidade, aquilo que já é, o estado de completude de uma forma; é o ser em sua efetividade. A potência (dynamis), por sua vez, é a capacidade de ser, aquilo que ainda não é, mas pode vir a ser — a predisposição ao movimento, à mudança, à atualização.

Assim, o movimento do ser — sobretudo em seu interior — deve acontecer como passagem da potência ao ato, como atualização de uma possibilidade que habita silenciosamente a alma.

Em outras palavras, é no coração que essa liberdade deve operar. No coração do homem, há formas e forças das quais ele desconhece por completo, uma energia que opera livre de qualquer influência, inclusive da sua própria. Tal ambiente, que gosto de classificar como ‘mundo mentis’, é uma terra hostil; eis a razão pela qual, em um cenário onde esse mundo seja totalmente descartado, o homem sofre com qualquer regresso na tentativa de controlar tais forças.

Não é nenhuma novidade que hoje existam campos de atuação que buscam esse mergulho no mundo interno, ciências criadas tão somente para um mergulho assistido. Essa psicologia — psico (alma) + logia (estudo) — surgiu como essa tentativa.

Demais: qualquer pessoa senciente sabe que esse mergulho, quando feito de maneira desleixada, pode conter um risco que, ao fim, revela-se muito mais perigoso do que se imagina. A abordagem da alma, e de qualquer injúria que a afete, deve ser sempre operada de dentro — e nunca assistida de fora, numa tentativa de corrigir o que pulsa ‘aqui dentro’. A transcendência legítima é movimento que se dá de dentro para fora. O controle para que a coisa — o fluxo, o ser em movimento — não cesse, é uma operação que começa no ‘domar’ os cavalos, e nunca a carruagem.

Domar — do latim domare, que significa ‘subjugar’, ‘amansar’, ‘tornar doméstico’ — é, portanto, tornar possível a condução das forças brutas por meio da consciência. É fazer com que o impulso obedeça à direção do espírito, e não o contrário.

Portanto, essa liberdade — esse livre-não-parar — é, antes de tudo, movimento. É conduzir, como um cocheiro, os cavalos que são as perturbações da alma. Trata-se de uma operação interna, em ato, que se equilibra com o externo, potência. Não há caso inverso: é o interior que deve ordenar o exterior, jamais o contrário. O mundo externo, no máximo, coopera — aludindo com o que tem — para que essa operação de domínio e harmonia seja possível e eficiente.

Dito tudo isso, vamos a um causo.

C — era seu nome — encontrava-se imerso numa angústia desenfreada, fruto das situações que, ainda na juventude, fora obrigado a enfrentar: mãe e pai ausentes, falta de recursos, nenhuma perspectiva. Estava envolto nas misérias que, por essas bandas, insistem em corromper até mesmo as almas mais límpidas.

Na adolescência, teve seus primeiros contatos com a miséria da sociedade humana. Fora cooptado por sujeitos desonestos que, na ânsia de corromper, o lançaram no submundo do crime. Foi preso. E ali, na prisão, conheceu o que de fato se pode chamar de inferno na Terra.

O tempo passou. E com ele, a sombra do fracasso, antes encoberta no fundo do poço, teve sua pedra removida. Como tudo na vida se move em ciclos, a miséria, em algum momento, dá lugar à fartura. Foi nesse entretempo que C conheceu uma mulher — a metade que preenche e permite a felicidade.

Sua vida mudou. Casou-se, conseguiu um emprego estável, teve filhos. À vista de todos, sua existência havia finalmente encontrado ordem — uma narrativa de superação e redenção. Mas isso era apenas o exterior. Por dentro, algo permanecia suspenso, não dito, adormecido.

Dois anos depois, C foi acometido por um pavor sem nome — uma espécie de catatonia do espírito — que fez com que todas as partes do seu ser entrassem em colapso. O chão lhe foi arrancado como num arrebatamento, e ele já não conseguia mais viver. Não queria mais se relacionar, não encontrava ânimo para o trabalho, para os filhos, para a esposa.
Seu único objetivo, embora nunca dito em voz alta, passou a ser a corrosão da própria alma — e para isso, se servia das sombras do passado, das lembranças que sangram, das memórias que envenenam.

Aqui, permito-me um adendo — não sou nenhum especialista. Sou apenas um operário de fábrica, mas meu interesse me leva a buscar, na alma, as respostas que meus olhos não enxergam nas coisas. Não falo a partir de cátedras, mas do chão. E é do chão que, muitas vezes, se avistam os abismos com mais nitidez.

Dito isso, voltemos a C. Ele estava em apuros — e como todo sujeito em apuros, correu na tentativa de se salvar."

Procurou especialistas. Por influência de amigos e parentes, visitou templos. Fez uso do que tinha e do que diziam a ele que possuía — na tentativa de frear, estagnar, parar o sofrimento interno do qual estava acometido. Foi nesse ponto que meu encontro com C se deu.

Uma das rotinas que desenvolvi na juventude era visitar consultórios de psicologia. Não porque eu precisasse — sempre carreguei comigo a firme ideia de que os erros cometidos já não dizem mais respeito a nós. Nada pode ser feito; a pedra lançada só se detém quando encontra o alvo. Mas eu gostava — buscava entender como uma ciência que nada representa além de recortes da verdade ousava domar a verdade da alma. Como pretende ajustar o que, por natureza, não está ajustado, mas em luta, em tensão, em movimento?
E sentado numa cadeira, na antessala, me deparei com aquele olhar triste, sem vida, envolto apenas no momento, tentando justificar por que o momento era tão perturbador. Olhei, me atentei, e falei:

— Bom-dia.

C respondeu, mas como quem não queria responder coisa alguma.

— Bom dia.

Naquele instante, percebi: aquele homem carregava muito mais do que deixava transparecer.

— Essa psicóloga... ela é boa? — me perguntou C.

— Boa pergunta. Não dá pra saber. No fundo, o que eles querem é chegar a uma conclusão que justifique a receita dada.

Senti, nesse momento, um certo receio nele — receio quanto ao especialista que, finalizando uma consulta, já se preparava para chamar um de nós dois.

— Sabe... não quero tomar remédios. Tenho um conhecido que começou com esses tratamentos... o sujeito parece que está sempre aéreo. Se for pra tomar remédio, eu não quero.

Bem, eu digo a vocês, amigos: o sujeito estava estagnado, envolto num sofrimento silencioso, mas ainda existia nele aquele ar de lucidez — um brilho tênue na alma. Aquele insight que resiste. Aquela centelha que intui verdades que não vêm da razão, mas de algum lugar profundo, remoto, talvez esquecido — e ainda assim vivo.

Todo aquele ar, toda aquela atmosfera foi interrompida pela atendente que, adentrando a antessala, disse em alto e bom som:

— Senhor J, a doutora irá atendê-lo.

Ao me levantar, reparei nele — de braços cruzados, com aquele olhar vazio, mas carregado de uma certa esperança. E, antes de nos separarmos naquele pequeno ambiente, ele me disse:

— Boa sorte.

Dizia um certo provérbio que a sorte é o caminho dos tolos. Não acredito. Creio mais que ela é o toque de Deus: quando nada mais fizer sentido, ela — na forma de providência — vem de encontro ao homem para que tudo se consuma.

— Olá, doutora, como vai? — digo.
— Bem, e você? — responde ela.
— Bem... tentando digerir nossa última sessão. A doutora fez uma pequena reforma no consultório?

Ela — Sim, foi necessário. O piso já estava incomodando... [risos] Sempre é bom mudar um pouco.

Assim, a sessão correu como de costume: ela me ouvia com atenção, intercalando com perguntas pontuais, às vezes devolvendo minhas palavras com um novo contorno, como quem acende uma lâmpada num canto escuro da alma.

Já perto do final, me dei a ousadia de saber mais sobre o sujeito que esperava do lado de fora:

— Doutora, mil perdões... sei que é algo antiético o que vou fazer, mas... quem é aquele sujeito ali fora?

Para meu espanto, ela apenas riu.

Ao sair da sala, me deparo novamente com C. Ali, imóvel — como aqueles monumentos do passado que nem o tempo consegue destruir; no máximo, com alguma sorte, alterar. Estava lá, de braços cruzados e olhos fixos no nada.

Retornei ali mais umas duas vezes. Foram sete sessões ao todo — quando minha curiosidade se deparava com a constatação, por parte da médica, de que havia algo errado, como dizem por aí, me vi obrigado a sair pela tangente. Como numa das sessões, quando ela me questionou sobre meus medos internos.

— Doutora, tenho eles em bom grado. Afinal, fazem parte de mim.

Isso, claro, não é algo que um psicólogo quer ouvir.

— Às vezes acho que a paciente aqui sou eu — disse ela numa das últimas idas.

Bem, não estou aqui para tratar com vocês desse hobby tão inusitado. Quero dizer que, nas outras vezes, também vi nosso amigo, C. Para ser sincero, depois daquele nosso encontro, o contato com suas injúrias da alma era o que mais me motivava a ir àquele lugar — Campolim.

Foram mais dois encontros, o suficiente para levantar as informações de que eu precisava. Estava determinado a fazer alguma coisa por aquela alma — não me perguntem o porquê, não saberia responder. No nosso último encontro, sugeri que lesse, que se distraísse, então prometi lhe enviar um livro.

Quem me conhece sabe que tenho muitos. Mas também sabe que nenhum deles serviria àquela pobre alma. Sabia que era um pretexto. E com isso, consegui seu endereço.

A verdade é filha do tempo — veritas filia temporis, já dizia São Tomás. Duas semanas depois do nosso último encontro, recebi um e-mail. É... nada de carta [risos]. Era C. Estava me escrevendo para agradecer pela carta que eu havia enviado — sim, eu mandei uma carta, e nela coloquei meu e-mail.

No e-mail, ele dizia algo assim:

"J., obrigado pelas suas palavras. Elas me fizeram pensar muito. Por um tempo, achei que ia afundar de vez... mas, como você mesmo disse, era tudo ou nada. Agora vejo que consegui passar por isso. Eu venci."

É... quero dizer uma coisa a vocês. E sei que alguns vão ficar putos comigo. Mas não posso — não mesmo — dizer o que escrevi para o nosso querido C.

Só posso dizer que, em certos casos, não existe prognóstico junguiano, freudiano, behaviorista, logoterapêutico ou qualquer outro que faça alguém acreditar que possui aquilo que, na verdade, nunca perdeu. Em suma, para se recuperar, em certos casos, a única solução que a vida oferece... é a morte.

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