sábado, 24 de maio de 2025

Mal o Corpo Esfriou, a Viúva Já Casara: Um Ensaio Sobre a Liberdade e Seus Algozes.

 
Há um assunto muito em voga hoje, que trata justamente de uma certa regulamentação: a das redes sociais. Vamos, então, explanar um pouco essa temática.

Nossa primeira parada nessa viagem deve ser na compreensão do que entendemos por redes sociais.
As redes sociais são espaços virtuais que promovem a interação, o compartilhamento de ideias, informações e experiências. Elas configuram-se como arenas digitais nas quais o indivíduo experimenta uma certa liberdade para se expressar, construir sua identidade, participar de debates e estabelecer conexões diversas. São, em essência, ambientes onde os limites entre o público e o privado se tornam tênues, ao mesmo tempo que ampliam o alcance da voz individual.

A nossa segunda parada nos detém no conceito de liberdade.
A liberdade, esse conceito tão antigo quanto disputado, é a faculdade que o ser possui de agir segundo sua própria vontade, dentro dos limites que não violem o direito do outro. No entanto, não é um conceito absoluto; ela se dá sempre no seio de uma comunidade, de uma coletividade, e carrega consigo o peso da responsabilidade. Liberdade não é licença irrestrita, mas antes, o delicado equilíbrio entre a afirmação de si e o respeito ao outro, entre o desejo pessoal e as normas que garantem a convivência social.

Dito isso, vamos entender um pouco como se dá a coisa em si.
A tentativa de certas áreas do Estado em promover essa regulamentação das redes sociais surge, em grande medida, como resposta aos inúmeros desafios que esses espaços digitais passaram a representar. A disseminação de desinformação, os discursos de ódio, a manipulação política, as violações de privacidade e a propagação de conteúdos ilícitos são alguns dos elementos que mobilizam a atuação estatal.

Assim, órgãos legislativos, judiciários e agências reguladoras procuram construir mecanismos que imponham responsabilidades às plataformas, exigindo maior transparência sobre seus algoritmos, deveres no controle de conteúdos e na proteção dos dados dos usuários. No entanto, esse movimento não se dá sem controvérsias, pois toca diretamente no fio sensível que une a liberdade de expressão aos princípios da ordem pública.

De um lado, há quem defenda que a ausência de regulamentação transforma as redes em territórios de caos informacional e violência simbólica. De outro, há o receio de que tal regulação abra caminho para formas veladas — ou até explícitas — de censura, controle político e restrição das liberdades civis. O embate, portanto, se dá entre a necessidade de garantir um ambiente digital mais seguro e ético, e o imperativo de não sufocar a livre manifestação.

Em suma, há uma desconfiança de que, juntamente com esse discurso de proteção das chamadas minorias virtuais, esteja velada a imposição de medidas que, de algum modo, cerceiem a liberdade do indivíduo. Vejamos alguns exemplos históricos em que a regulamentação, sob a promessa de ordem, segurança ou moralidade, acabou por dar origem a regimes de opressão:

1. Idade Antiga – O Império Romano sob o governo de Tibério e depois de Calígula.
O aparato legal e o controle estatal, que deveriam garantir a ordem e a estabilidade do império, foram progressivamente usados como instrumentos de repressão política e social. Leis de majestade, que supostamente protegiam a dignidade do imperador e do Estado, passaram a justificar perseguições, execuções e censura contra qualquer forma de crítica ou dissenso.

2. Idade Média – A Inquisição.
Instituída oficialmente no século XIII, a Inquisição surge como um mecanismo da Igreja para preservar a ortodoxia e proteger os fiéis dos perigos da heresia. Contudo, sob esse pretexto de proteção espiritual e manutenção da ordem social, consolidou-se um regime de terror, no qual o controle das ideias, das crenças e da própria intimidade das consciências levou à supressão de liberdades fundamentais, à perseguição e à morte de milhares de pessoas.

3. Século XX – A União Soviética sob Stalin.
No discurso, tratava-se da construção de uma sociedade justa, igualitária e livre da exploração. Na prática, a regulamentação total da vida econômica, social e política resultou em um sistema profundamente autoritário, onde o controle da informação, a censura, os expurgos, os campos de trabalhos forçados e a repressão brutal suprimiram qualquer forma de liberdade individual.

Citei aqui esses exemplos tão díspares em termos de tempo para demonstrar duas coisas: a primeira, é que não é de hoje essa necessidade de camuflar, sob ideais de valor e proteção, a égide de terror e tirania; e, em segundo lugar, que essa necessidade de domínio não é algo novo, mas um traço recorrente das estruturas de poder ao longo da história.

Atualmente, diversos países vêm implementando medidas que, sob o pretexto de regulamentar as redes sociais, acabam por cercear a liberdade de expressão e controlar o fluxo de informações. Entre eles, podemos citar:

China, onde a internet é rigidamente controlada pelo governo. Plataformas estrangeiras são bloqueadas, e os cidadãos vivem sob constante vigilância digital, com filtros automáticos, censura de palavras-chave e punições severas para quem viola as diretrizes do regime.

Rússia, que vem adotando leis cada vez mais restritivas, exigindo que plataformas removam conteúdos considerados "ilegais" e permitindo o bloqueio de serviços que se recusam a cooperar com as autoridades. Desde o agravamento do conflito na Ucrânia, o controle sobre a internet se intensificou drasticamente, restringindo acesso a fontes externas e reprimindo vozes dissidentes.

Irã, onde o governo mantém forte controle sobre o acesso à internet, bloqueando redes sociais, impondo filtros, rastreando usuários e prendendo aqueles que publicam conteúdos considerados contrários aos valores do regime. A internet é, em muitos momentos, desligada em todo o país durante protestos, como forma de sufocar mobilizações populares.

Esses são apenas alguns exemplos de como o controle sobre o espaço digital se tornou uma extensão dos mecanismos tradicionais de repressão, travestidos de discursos sobre segurança, ordem e proteção social.

Porém, não se espantem e nem acreditem quando alguém lhes disser que tais tentativas ocorrem apenas em países como Rússia, China ou Irã. Engana-se quem pensa que o desejo de controle é exclusividade de regimes autoritários. Cito aqui abaixo dois exemplos extraídos, ironicamente, do próprio berço da Revolução pela Razão:

França – Em 2023, o governo francês propôs uma legislação que permite, em nome da segurança pública, que as autoridades acionem remotamente câmeras, microfones e geolocalização de celulares, sem o consentimento dos usuários, durante investigações criminais. A proposta gerou forte reação da sociedade civil e de organizações de defesa dos direitos digitais, que alertaram para o risco de vigilância massiva, sob o pretexto de combater o crime. Além disso, a França já mantém há anos legislações rigorosas sobre discurso de ódio, que, embora necessárias em certos contextos, frequentemente são alvo de críticas por potencial restrição à liberdade de expressão.

Estados Unidos – A pátria autoproclamada da liberdade também não escapa dessa tentação. Após os atentados de 11 de setembro, foi aprovada a Patriot Act, uma legislação que expandiu exponencialmente os poderes de vigilância do Estado. Sob o pretexto de proteger contra o terrorismo, o governo passou a monitorar comunicações privadas, acessar dados de usuários sem autorização judicial clara e pressionar plataformas digitais a colaborar com agências de inteligência. O escândalo das revelações de Edward Snowden, em 2013, expôs ao mundo a extensão dessa vigilância, mostrando que até cidadãos comuns eram monitorados sem qualquer relação com atividades criminosas.

Esses exemplos demonstram que nem mesmo as democracias estão imunes ao desejo de domesticar o espaço digital, dobrando-o aos imperativos do controle, da vigilância e, muitas vezes, da manutenção de estruturas de poder que se dizem, paradoxalmente, protetoras da liberdade.

Por fim, vemos que há, mundo afora, uma necessidade quase visceral de domínio — de restringir a liberdade de pensamento —, mesmo quando tal pensamento é tido como óbvio, elementar, quase inofensivo. Recordo-me de ter lido, certa vez, num desses periódicos modernos, uma crítica feroz dirigida à Santa Igreja, acusando-a de, em determinados períodos da história, ter cerceado a liberdade de pensamento. O texto, devo confessar, era de uma força retórica admirável — suas premissas dançavam como notas de uma sinfonia, ora sublime, ora solene, e seu tom se elevava como um manifesto aos céus, clamando por liberdade.

Mas, para minha amarga surpresa, mal a tinta daquele discurso havia secado, eis que, na semana seguinte, o mesmo periódico se lançava em entusiástico apoio à regulamentação das redes sociais — aquela que, com outros nomes, outras vestes e outros pretextos, carrega no ventre o mesmo desejo de controle, de silenciamento, de domesticação do espírito. Que hipocrisia! Mal o corpo esfriou, e a viúva já casara — como se a história não tivesse memória, como se o nome da liberdade pudesse ser invocado ora como bandeira, ora como tapete, conforme sopra o vento dos interesses.

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