Crônica de uma anão-zada anunciada.
Dizem que por estas bandas o calor é intenso — há quem duvide. Como testemunha direta, só posso dizer: o vapor é inebriante. Aqui não faz apenas calor; há de tudo um pouco. Hoje, sentei-me e abri um periódico. Notícia quente: “Jornalista é aceita na ABL.” Eita! Meu espanto foi interrompido pelo som ensurdecedor de um teco-teco. “Venham, venham, últimos dias!” — era o anúncio de um circo que chegou à cidade. Olhei, refleti e pensei: vão jogar um anão? Ao meu lado, uma gargalhada. Que hipocrisia... Se há um palhaço como piloto, nada mais natural do que jogarem um anão.
Tomo o café num relance, olho umas contas — será que vou conseguir pagar? Nos dias de hoje, essa dúvida é constante. Visto uma calça; uma caminhada talvez me faça bem. Saio sem rumo, com a matéria do periódico na cabeça e o som do teco-teco ainda me perseguindo. Não que eu não consiga me livrar do ruído na mente — mas o medo de um anão despencando é real. Fico imaginando a cena final e como seria registrada nesses periódicos modernos: “Homem, sem eira nem beira, leva 'anão-zada' na cabeça e morre.”
Continuo minha caminhada. Ao alto, prédios cinzentos; sob os pés, um chão ainda mais cinzento — tudo é cinza. Ao longe, numa direção horizontal, vê-se um verde, só pra variar. Meu espanto ainda não se dissipou; segue em conformidade: teco-teco e periódico. Do primeiro, só a atenção. Do segundo, as lembranças de Brás Cubas — não o defunto-autor em si, mas o tom com que tratava a própria desimportância.
“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
Ele estava errado — mas a intenção era certa. Quem, em sã consciência, entregaria a alguém o terror de viver com a possibilidade real de levar uma anão-zada na cabeça?
Tudo vai passando, e me lembro de que tudo passa. Pessoas se esbarram, outras se desviam, e nada mais parece ter importância — exceto as duas coisas que ainda tomam de solavanco minha atenção: o periódico e o teco-teco. Que coisa... Paro, e percebo: o teco-teco já não se ouve mais. Mas o espanto do periódico ainda insiste em me buscar.
Tomo uma reflexão: por quê?
Lembro-me do que sei sobre a instituição em questão. Além do prédio e das cadeiras — as que estão e as que já se foram —, ela foi fundada por um dos dois escritores que mais respeito. O outro é aquele que o fundador tanto amava: Dostoiévski.
Deve ser isso — respondo a mim mesmo —, deve ser meu ego inflado. Quem já se viu? Ocupar uma cadeira que fora de alguém que levantou sonhos, criou mundos, desceu ao inferno com Virgílio e subiu aos céus com Homero. Deve ser isso.
A caminhada me fez bem, fico a pensar.
Num relance — como tudo por aqui —, a coisa muda.
“Ei, ei, ei!” — ouço ao longe.
Não reconheço de imediato, mas ao me aproximar, enxergo: é Zandinni, o dono da banca de jornal. Esse é o sobrenome. Seu nome verdadeiro nunca saberei.
Esse homem — calvo, de meia-idade — só fazia uma coisa melhor do que reclamar: resmungar. Seus olhos se voltaram para os meus.
— E aí, Paraíba, já viu a matéria? Que coisa, não?
Eu não sabia o que dizer. Pensei: tudo o que eu falar aqui será apenas o meu ego bocejando. Respondo:
— É… tempos estranhos.
Mas, novamente, minha atenção é desviada.
“Venham, venham, últimos dias!”
Era de novo o teco-teco — marketing genial.
— Me diga, Paraíba, vai no circo?
Como numa tentativa de escapar dos meandros do tempo, respondo:
— Ah! Acho que não... Os espetáculos não são mais como antigamente.
Olho, agradeço pela atenção e me ponho a caminhar. Zandinni... Tento conter a gargalhada em silêncio — seria um belo nome de circo. Talvez, com um nome desses, não fosse preciso o palhaço pilotando, tampouco o receio de uma anão-zada na cabeça.
Lanço um olhar ao chão: um sapato. Quem deixaria um sapato na rua?
A verdade é filha do tempo, disse um grande homem.
Penso e reflito sobre o que pensei: se é o tempo nosso juiz, que seja o momento nosso advogado — pois a promotoria já é do passado.
Por fim, retorno ao lar. A gargalhada agora estava a fazer afazeres domésticos: roupa, comida, crianças.
— Como foi a caminhada?
Respondo:
— Normal, como tudo por aqui.
Ela:
— E a anão-zada, veio?
Respondo:
— Não... Acho que não aconteceu porque fora anunciada.
Fim.
Nenhum comentário:
Postar um comentário