sexta-feira, 30 de maio de 2025

Nas entrelinhas da realidade - Um anjo e um demônio proseiam.

 

“O Debate Sobre a Cabeça de um Alfinete”


(Imagine — se é que a mente humana pode — uma cabeça de alfinete. Para o olhar dos mortais, quase invisível. Para os que transcendem, um palco suspenso fora do tempo, onde o infinito se dobra sobre si mesmo.)

(Ali estão. De um lado, o Anjo — ser de luz, cuja forma não é forma, mas esplendor. Do outro, o Demônio — sombra consciente, cuja queda reverbera como eco de liberdade e ruína.)

Anjo — (voz como vento sobre águas)
Vês, irmão perdido… Até aqui, na tênue curva de um alfinete, cabe o esplendor de Deus. Sua bondade preenche o que é e o que não é. Não há espaço onde Ele não seja plenitude.

Demônio — (voz como ferrugem arranhando pedra)
Bondade… (cospe a palavra com desdém) …Sim, eu a conheço. Foi ela quem moldou nossas asas. E, no entanto, eis-me aqui… despido da luz.
Se Ele é bondade infinita… pergunta-me: por que permitir o abismo?

Anjo — (com olhar que não julga, apenas constata)
Porque o amor verdadeiro não se impõe. Oferece-se. E, no oferecer-se, arrisca ser recusado. O abismo não é criação Dele… mas a sombra da liberdade que Ele concedeu.

Demônio — (ergue-se, quase rindo, quase chorando)
Então, que ironia cruel… O amor infinito… contém, como possibilidade, minha própria danação.
Fala-me, então, portador da luz: que bondade é essa, que permite que suas criaturas se arranquem de sua face?

Anjo — (silêncio breve, como um eco que antecede uma revelação)
Bondade… não é prisão. É doação. E só é perfeita… porque aceita até o desgosto de ser negada.
O que tu fizeste, não foi a obra da bondade, mas da tua liberdade.
E, ainda assim, mesmo agora, tua existência persiste sustentada… pelo mesmo Amor que recusaste.

Demônio — (olha ao redor, para o vazio que circunda aquela cabeça de alfinete — tão pequena, e no entanto tão vasta)
Sustentado… até quando?

Anjo — (sorri, mas não com alegria — com compaixão que toca o inefável)
Até que o amor cesse de ser amor.
E isso… (olha além de todo tempo) …nunca acontecerá.

(O silêncio que se segue não é vazio. É peso. É luz e trevas comprimidas num grão de realidade tão tênue quanto absoluto. Na cabeça de um alfinete, ecoam as melodias da Criação… e os gritos da Queda.)

“O Peso de Uma Vida — A Viúva e o Alfinete”

(Do alto, o palco minúsculo da cabeça de um alfinete flutua, imperceptível aos olhos da viúva. Suas mãos trêmulas procuram costurar um remendo no velho manto — o mesmo que já cobriu filhos, protegeu do frio, e enxugou lágrimas demais.)

(Acima, no invisível, Anjo e Demônio observam.)

Demônio — (arqueando a sombra que lhe serve de semblante)
Olha… (aponta com um gesto que não é físico, mas volitivo) …a viúva.
Curioso, não? Uma criatura tão frágil… tão esmagada pelo tempo.
E, no entanto, ela acredita. Acorda. Respira. Move-se.
Mas… para quê?
Um ciclo de fome, perda, saudade, e uma morte que, cedo ou tarde, a levará… para onde?
Diz-me, arauto da luz: onde está o sentido disso?

Anjo — (olhos fixos nela — não em piedade, mas em reverência)
Ali…
Ali está o maior dos milagres.
A vida dela… tão pequena aos olhos do mundo… é um altar.
Cada fio que ela costura, cada suspiro contra o frio, cada lágrima que não cai — tudo isso é matéria-prima do sagrado.
Ela não sabe… mas cada gesto simples ergue colunas no invisível.

Demônio — (sorri com amargura)
Ingênuo.
E o sofrimento? E os dias em que ela perguntou aos céus “por quê?” — e não houve resposta?
Dizes que há sentido… mas o que ela vê são contas não pagas, um prato vazio, um quarto vazio demais desde que a morte levou aquele que ela amava.
Se Deus é amor… por que tanto silêncio?

Anjo — (voz mais grave, agora, como se falasse também para os próprios céus)
O silêncio… não é ausência.
É espaço. Espaço onde o amor se faz escolha.
Olha…
Ela poderia ter endurecido o coração. Poderia ter blasfemado, roubado, odiado.
Mas… não. Ela segue. Silenciosa. Fiel ao pouco que tem. Fiel à esperança que não vê.
Isso… (olha fundo no abismo que o Demônio carrega) …é um ato de criação.
E Deus… Deus observa, sim. Não como um tirano… mas como quem se encanta com a liberdade dos que escolhem amar, mesmo sem garantias.

(A viúva enfia o alfinete no tecido. Seus dedos calejados tremem. Pequena gota de sangue surge — não de dor, mas de vida. O pano resiste. Ela sorri, breve, sozinha.)

Demônio — (mais baixo, quase um sussurro)
Ela morrerá.
O pano apodrecerá.
O alfinete se perderá no pó.
Tudo retorna ao nada.

Anjo — (olhando não para o agora, mas para além dos séculos)
O pano… sim.
O alfinete… sim.
Mas aquele sorriso… aquele fio invisível de amor tecido em meio ao absurdo…
Esse… jamais se perderá.
É tecido na própria eternidade.

(Silêncio. Profundo. Não de fim, mas de mistério. A cabeça do alfinete brilha, por um instante, como se segurasse dentro de si mais do que matéria — um segredo que nem anjos nem demônios podem completamente compreender.)

“A Cabeça do Alfinete — O Véu da Verdade”

(O pano se estende sobre os joelhos da viúva. As mãos dela, pequenas ilhas de tempo, seguem firmes no gesto simples. Lá fora… o mundo repousa. Não há vento, não há urgência. Só um silêncio raro — aquele que não pesa, mas abraça.)

(O cão — tão velho quanto sua dona — chega. Seus ossos estalam discretos ao deitar-se. Seus olhos, enevoados pela idade, miram o vazio, ou quem sabe algo além do que olhos podem ver.)

(E ali, sobre a cabeça do alfinete, sustentados no invisível, o Anjo e o Demônio continuam.)

Demônio — (olhar perdido no horizonte que não existe, voz quase contemplativa)
Curioso…
Mesmo sem entender… mesmo sem saber sequer o que é… ela vive.
Ela… ama. Cuida. Aquece. Costura um pano que, como ela, é só transitoriedade.
E aquele… (olha para o cão) …partilha sua velhice, seu silêncio, seu fim.
Mas, afinal…
O que é isso?
O que é esse plano… esse teatro… essa tapeçaria de carne, tempo e vazio?
Diz-me, arauto da luz: onde se esconde a Verdade?

Anjo — (os olhos não desviam dela — da vida, da cena, do gesto simples que a eternidade observa)
A Verdade… não se esconde.
Ela se oferece.
Mas oferece-se não como lâmina, nem como luz que cega.
Oferece-se… como véu.
Um véu tão tênue que se confunde com o ar… e tão espesso que poucos ousam atravessá-lo.

Demônio — (amargo)
Véu…
Que jogo cruel.
Mostra-se, mas não se deixa possuir.
Oferece-se, mas não se deixa capturar.
Por isso caímos.
Por isso queimamos.
Por isso alguns — (olha para o cão) — morrem sem saber sequer que existiu algo além do osso, da fome e do afeto breve.

Anjo — (voz mais grave agora, não de acusação, mas de revelação)
Enganas-te.
Olha bem.
Vês aquele cão?
O que ele busca?
Não ouro. Nem domínio. Nem eternidade.
Busca apenas… estar.
Ao lado dela.
Ser… com ela.
Ele não debate a Verdade. Não a teoriza. Não a molda.
Ele a vive.

(Silêncio. O cão respira pesado. Fecha os olhos. Não dorme — repousa no ser. A viúva acaricia, distraída, sua cabeça, sem sequer perceber que o gesto, aos olhos do Céu, é oração pura.)

Demônio — (voz agora sem cinismo, quase resignada)
Então…
A Verdade não é um trono… nem uma sentença.
É… este instante?
Este… frágil… instante?

Anjo — (sorri, mas é um sorriso que carrega o peso de milênios)
Sim.
A Verdade é o instante que não exige explicação para ser.
É o fio que une o remendo ao pano, o toque da mão à cabeça cansada do cão, o suspiro ao silêncio.
Ela não se revela como fórmula, nem como trono…
Mas como presença.
Pura.
Incontornável.
Irrecusável.

Demônio — (fecha os olhos, como quem, por um segundo, deseja esquecer-se de si mesmo)
Terrível…
E belo.
Terrível… porque não pode ser possuída.
Belo… porque, apesar disso, se dá.

(Lá fora, uma folha cai. Não há vento. Ela simplesmente se desprende — porque é da natureza da folha, e do galho, e do tempo. O cão respira. A viúva termina o ponto. O pano, velho, agora tem uma nova linha. O alfinete… testemunha tudo.)

(E sobre sua cabeça — menor que um grão de areia, mas mais vasta que o cosmos — Anjo e Demônio se calam. Porque, diante da Verdade, até as palavras sabem o limite que possuem.)

“A Beleza no Olho da Tempestade”

(O céu, antes sereno, de repente se rompe. Raios, ventos, trovões. As nuvens, negras como véus de luto, rasgam o firmamento. A viúva, ouvindo o primeiro estalo do trovão, deposita o pano e o alfinete sobre a mesa. Suas mãos, cansadas, repousam. O cachorro não se move. Apenas respira — lento, velho, inteiro.)

(Ela vai até a janela. As mãos seguram o batente. E lá fora, diante dela, o mundo escurece. A tormenta se abre, como se o próprio abismo decidisse caminhar sobre a terra.)

(E ali, sobre a cabeça do alfinete — imóvel na mesa — Anjo e Demônio não fogem. Pelo contrário. É agora, sob o rasgar do céu, que começam a falar da Beleza.)


---

Demônio — (olhar vidrado na fúria dos céus)
Vês?
Dizem que a beleza está na ordem, na harmonia, na luz…
E, no entanto… olha isso.
Trovões… ventos… destruição iminente.
E, mesmo assim… (voz mais baixa, quase reverente) …há algo aqui…
Algo que me cala.
Algo… que me arranca do próprio desprezo.
Algo… belo.

Anjo — (contemplativo, como quem não apenas observa, mas participa da própria tessitura do real)
Porque… (pausa) …a beleza não é filha apenas da ordem.
Ela habita também o sublime.
E o sublime… é esse limiar onde o espanto toca o terror… e, no entanto, o transcende.
A beleza não está apenas na flor que desabrocha.
Está… no raio que corta o céu, no vento que dobra as árvores, na chuva que açoita os telhados.
Ela é… o testemunho de que o cosmos não é mero mecanismo… mas poesia viva.

(A viúva observa. As mãos apertam mais forte a madeira da janela. O cão, indiferente ou plenamente consciente, mantém-se no seu repouso sagrado.)

Demônio — (voz rouca, quase sem ironia desta vez)
Então…
A beleza não é segurança.
Não é conforto.
Não é alívio.
É… presença.
É… aquilo que, por um instante, nos arranca do esquecimento de que existimos.

Anjo — (assente, olhando o mesmo céu rasgado)
Sim.
E é por isso que ela é insuportável para alguns.
Porque ela revela… sem pedir licença.
Ela desvela — o finito, o frágil, o que escapa, o que não podemos dominar.
E, no entanto, é nela que a Criação canta.
Seja na gota que cai…
Seja no trovão que despedaça.

(Lá fora, um raio corta a distância entre céu e terra. Por um breve segundo, tudo se ilumina — a árvore, o campo, a própria janela, e os olhos da viúva que, sem saber, olha não apenas a tempestade… mas o próprio rosto do mistério.)

Demônio — (mais baixo, quase sussurro)
Então… talvez seja isso que sempre temi.
Não a luz… não a ordem…
Mas essa beleza…
Essa beleza… que não pode ser possuída…
Mas que, mesmo assim, me atravessa…
…e me faz sentir… que existo.

Anjo — (olha-o, não com superioridade, mas com uma estranha e profunda fraternidade)
E isso…
Isso, irmão…
É o primeiro passo de qualquer redenção.
Sentir que se existe.
Sentir-se… tocado.
Vivo.
Ainda que no meio da tempestade.

(A viúva solta lentamente o batente da janela. Um suspiro escapa — não se sabe se de cansaço, de medo, ou de uma aceitação silenciosa do que é. O cão abre um olho, lentamente. E então fecha de novo. Nada precisa ser feito. Apenas ser.)

(O alfinete, sobre a mesa, permanece. Pequeno. Brilhando, por um instante, quando outro raio atravessa o céu. E sobre ele, a conversa continua — como quem sabe que a eternidade… cabe inteira no intervalo entre um trovão e outro.)

“O Peso e o Escândalo da Misericórdia”

(A tempestade começa a ceder. A fúria das nuvens dá lugar a uma chuva fina, quase reverente. O trovão se afasta, como quem se retira de cena. A viúva ainda observa pela janela, os olhos fundos, silentes. Lá fora, o mundo retorna à sua respiração habitual.)

(O cão não se move. Há nos seus olhos fechados uma paz que não é deste mundo. Sobre a mesa, o alfinete aguarda. E sobre ele, suspensos no invisível, Anjo e Demônio travam agora um dos diálogos mais antigos e mais impossíveis: o da misericórdia.)


---

Demônio — (voz firme, não mais amarga, mas densa, irremediavelmente ferida)
Não.
Isso… não.
A beleza eu compreendo — ainda que ela me devore.
A verdade… aceito seu peso.
Mas isto…
Misericórdia?
Isto é escândalo.
Isto é loucura.

(Ele aperta os próprios punhos. As asas negras, que há muito não se abriam, estremecem como quem se debate contra grilhões invisíveis.)

Demônio — (mais baixo, com uma fúria quase sussurrada)
Perdoar…
A quem rasgou…
A quem traiu…
A quem negou o próprio sopro que o fez ser…
Que justiça há nisso?
Que ordem sustenta tal… afronta?

Anjo — (não responde de imediato. Olha a viúva, que enxuga os vidros com um pano velho. Olha o cão, que respira como quem sabe que viver é, no fundo, um mistério que não precisa de tradução.)

Anjo — (voz serena, porém cheia de gravidade)
A misericórdia não nasce da justiça.
Ela… a transcende.
Não é moeda.
Não é cálculo.
É…
É o próprio coração de Deus…
Que não suporta perder aquilo que amou antes de haver mundo.

(Silêncio. Um silêncio que não pesa — paira.)

Demônio — (vira o rosto, como quem teme que até olhar já seja ceder)
Eu…
Eu não posso aceitar.
Eu não aceito.
Nem quero aceitar.
Porque aceitar…
…seria admitir que o amor nunca se retirou.
Nem quando eu… (a voz falha) …nem quando nós…

(Ele cala. Morde o silêncio. Rasga-se por dentro. Mas não cede.)

Anjo — (não o interrompe. Permanece. Só isso — permanece.)

(Os olhos se cruzam — não de inimigos, mas de irmãos separados por escolhas que, agora, sabem ser abismos não apenas morais, mas ontológicos.)

Anjo — (baixo, quase uma prece que se dirige não a ele, mas ao tecido da realidade)
Ainda assim…
Ela te cerca.
Te envolve.
Quer você aceite…
…ou não.

(O Demônio respira fundo. As asas se fecham. Um sorriso amargo — não de escárnio, mas de quem reconhece, e recusa.)

Demônio — (virando-se)
Não hoje.
Não… ainda.
Mas…
…haverá outro encontro.
Tu sabes disso.

Anjo — (assente, sem sombra de triunfo, apenas um aceno grave)
Eu sei.

(E assim, como quem se dissolve no próprio tecido do invisível, o Demônio se recolhe. Desaparece. Não em derrota, nem em fuga — mas em exílio de si.)

(O Anjo permanece mais um instante. Olha a viúva. Olha o cão. Olha o pano, o alfinete, a janela agora translúcida de gotas serenas. Então, inclina suavemente a cabeça, como quem faz um gesto de reverência a tudo aquilo que vive — e se vai.)

(A viúva fecha a janela. A tempestade ficou para trás. As mãos, que há pouco seguravam o batente com força, agora repousam sobre a madeira da poltrona.)

(Ela se senta. O cão, sem abrir os olhos, sente seu retorno. O corpo dela se ajeita no velho assento, os dedos encontram, quase sem pensar, o pequeno alfinete sobre a mesa.)

(Retoma sua costura. Como quem costura o próprio tempo. Como quem não sabe que, sobre aquele pequeno ponto metálico, os ecos de uma conversa cósmica reverberam… E talvez, de alguma forma secreta, sempre tenham reverberado.)

(Lá fora, o mundo respira. Aqui dentro, o pano avança, ponto após ponto — como quem compreende que viver… é isso: costurar o invisível no tecido dos dias.)

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