sexta-feira, 30 de maio de 2025

“O Último Diálogo”

 


(Luz alguma penetra as pedras úmidas. Apenas o som de gotas que caem, compassadas, como um relógio cósmico. Correntes apertam os pulsos do homem. Ele percebe, no canto mais escuro, uma silhueta. Não é sombra, nem carne — é ausência. É a Morte.)

Homem — (voz rouca, ferida)
Quem… quem é você? Veio, enfim, buscar o que resta deste corpo?

Morte — (voz sem timbre, nem grave, nem aguda — apenas presença)
Venho quando me chamam. Venho quando não podem mais fugir de si. Aqui, no ventre do esquecimento, teu grito chegou até mim.

Homem —
Se é tu, a Morte, diga-me… Por que tanto esforço? Por que toda essa comédia amarga, essa luta vã? Para que a vida… se o desfecho é você?

Morte —
A vida… Ah… ela não me pertence. Sou apenas seu limite. Não sou o sentido — sou a borda. Sou aquilo que a vida não pode ultrapassar.

Homem — (rindo com ironia)
Então é isso? Somos peças de um jogo que não escolhemos, empurrados pela esperança, pela fome, pelo medo… Até que você nos recolha como um varredor recolhe as folhas secas?

Morte — (aproximando-se, mas nunca se deixando ver por inteiro)
Talvez. Mas te digo… se há um crime no existir, ele não é meu. Eu sou só a pausa. Quem te deu a existência te deu, também, o espinho da pergunta.

Homem — (encarando o vazio)
Mas… o que é, então, o sentido? Será sobreviver? Será iludir-se? Ou será, quem sabe, confrontar-te e dizer: "Ao menos, eu soube que iria morrer."?

Morte —
O sentido... não é dado. O universo não te deve respostas. Assim como este chão frio não te oferece consolo, nem as pedras te oferecem abrigo. O sentido nasce onde a vida tem coragem de olhar para mim… e, mesmo assim, escolher ser.

Homem — (silêncio. Depois, quase um sussurro)
Escolher ser… apesar de ti?

Morte — (voz que se dissolve no eco)
Exato. Apesar de mim. Eis o milagre. Eis o escândalo. Eis o que nem eu posso tocar.

(O silêncio volta. Mas não é mais o mesmo. As correntes continuam pesadas, o chão permanece frio — mas, agora, há algo que não estava antes. Algo que nem a Morte pode arrancar.)

“O Último Diálogo – Epílogo”

(A silhueta da Morte dissolve-se lentamente no breu, como se jamais houvesse estado ali. Logo depois, passos secos, duros, reverberam no corredor de pedra. A luz trêmula de tochas rompe a escuridão. Dois soldados, de rostos impassíveis, aproximam-se da cela.)

Soldado 1 — (batendo com a ponta da lança nas grades)
Levanta, verme. Chegou tua hora. O patíbulo te espera.

Soldado 2 — (desdenhando)
Vai fazer teu último espetáculo. No fim, todos urram, todos choram, todos pedem aos céus que jamais ouviram.

(O homem, antes arqueado, levanta-se devagar. As correntes tilintam, mas ele não parece mais curvado. Seus olhos, embora cercados de sombras, agora brilham com algo diferente — algo que nem a fome, nem o medo, nem a morte conseguiram apagar.)

Homem — (voz firme, estranhamente serena)
Escutem, vocês dois… Antes que façam o que devem… saibam disto:
Hoje… eu conversei com a Morte.

(Os soldados trocam olhares, meio zombeteiros, meio inquietos.)

Soldado 1 —
Delírios de quem sabe que vai morrer.

Homem — (sorrindo de leve)
Talvez. Ou talvez… seja só a única lucidez que me restou.
A Morte… não leva nada que não seja dela. Ela é só o fim do que nunca foi nosso. O corpo… a posse… o nome… tudo isso pertence ao pó. Mas… existe uma coisa que nem ela pode tocar.

(Silêncio desconfortável. O segundo soldado engole seco, embora tente disfarçar.)

Soldado 2 — (tentando soar cínico, mas a voz falha)
E o que seria, então? Que tesouro leva um miserável como tu?

Homem — (encarando-os, como quem olha além deles)
Aquilo que escolhi ser… apesar dela.
Entendam, rapazes… A vida não é um prêmio, nem um castigo. É uma chance. Só isso. Uma chance breve, fugidia, absurda… mas real.
Vocês podem atravessar seus dias obedecendo ordens, golpeando carne, guardando silêncio… Ou podem, antes que ela — (aponta para o vazio onde a Morte esteve) — lhes bata no ombro, perguntar-se: Por que caminho ando? E se ele, de fato, é meu.

(Os soldados, antes tão sólidos, parecem menores agora. O segundo desvia o olhar. O primeiro, por um instante, quase abaixa a lança.)

Homem — (aproxima-se até onde as correntes permitem, em tom baixo, como uma confidência que o universo inteiro escuta)
Saibam… vocês também são prisioneiros. Algemados à ilusão de que estão vivos só porque ainda respiram.
Mas viver… viver começa no dia em que se olha a Morte nos olhos… e, mesmo assim, escolhe caminhar.

(Longo silêncio. Os soldados não dizem mais nada. Apenas destrancam a cela, em movimentos mecânicos, como se algo invisível pesasse mais que a armadura.)

(Enquanto conduzem o homem, agora não é mais ele quem parece condenado — mas sim, eles.)

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