sexta-feira, 23 de maio de 2025

Notas - Sobre o Carnaval.


 
  


Carnaval: O Rito Perdido entre Deuses Mortos e Símbolos Vazios.

Introdução.

O Carnaval, no imaginário moderno, parece ser apenas uma festa — um tempo de música, de corpos expostos, de riso, de álcool e de permissividade. Porém, sua raiz é muito mais profunda. Esconde, sob a superfície da folia, os traços de um ritual arcaico que atravessa milênios, carregando em si as marcas da luta simbólica do homem com seus próprios limites — o caos, o corpo, a morte, a fertilidade e o sagrado.

De sua origem nas festas pagãs à sua integração no calendário cristão, e, finalmente, à sua atual configuração como espetáculo de massa, o Carnaval revela não apenas a história de uma celebração, mas a própria metamorfose espiritual do Ocidente: a perda progressiva do sentido do rito, do mito e da transcendência.

Desenvolvimento.

1. As Raízes Esquecidas

O termo Carnaval deriva do latim carne levare, significando "retirar a carne", uma alusão direta ao início da Quaresma cristã. Mas suas raízes mergulham mais fundo, muito antes do cristianismo. São ecos das Saturnálias romanas, dos cultos a Dioniso, das festas agrárias e dos ritos de fertilidade que celebravam o ciclo eterno da vida, da morte e do renascimento.

O Carnaval antigo era, essencialmente, um rito de inversão: por alguns dias, o mundo se permitia ser o avesso de si mesmo. As hierarquias ruíam, o grotesco se tornava belo, o marginal era coroado, e o corpo — reprimido no cotidiano — assumia o protagonismo. A embriaguez, o sexo, a comida e a dança não eram apenas excessos, mas instrumentos de uma renovação simbólica, onde o caos era uma força regeneradora.

2. O Encontro com o Cristianismo

Ao ser incorporado ao calendário cristão, o Carnaval não perdeu seu caráter de liminaridade, mas ganhou um novo enquadramento simbólico. Tornou-se o último suspiro da carne antes da penitência, uma espécie de liberação controlada dos desejos, permitindo ao homem esgotar suas pulsões antes do recolhimento quaresmal.

Nesse ponto, o rito mantinha sua integridade simbólica: a carne era celebrada, mas sob a sombra da cruz; o excesso precedia o jejum; o caos, a volta à ordem.

3. A Desintegração no Mundo Moderno

Com o avanço da modernidade, da racionalização e da mercantilização da cultura, o Carnaval passou por uma transformação profunda. Deixou de ser um ritual e tornou-se um evento. O sagrado foi expulso, o mito foi esvaziado, o rito tornou-se espetáculo.

No Brasil, por exemplo, o Carnaval se converte em uma indústria — das escolas de samba às micaretas, dos blocos às transmissões televisivas. A inversão simbólica cede lugar à encenação coreografada. O corpo, antes instrumento de regeneração mítica, se torna vitrine estética, mercadoria, avatar do desejo capturado pela lógica do consumo.

As máscaras já não ocultam para revelar; ocultam para performar. O grotesco perde sua potência ontológica, tornando-se apenas humor raso ou sensualidade esvaziada de transcendência.

4. A Perspectiva Junguiana

Sob a ótica da psicologia analítica, o Carnaval sempre foi o palco onde a Sombra coletiva — tudo aquilo que a sociedade reprime — se manifestava sem culpa. Era a explosão do arquétipo do trickster, do bufão, do caos necessário para a saúde psíquica da coletividade.

Mas na modernidade, sem a moldura do mito e sem o suporte do rito, essa Sombra se manifesta de forma fragmentada, descontrolada e, muitas vezes, vazia. O que era catarse simbólica transforma-se em consumo compulsivo, em performance para a aprovação social, em uma busca desenfreada por sensações que não atravessam a superfície da experiência.

Conclusão.

O Carnaval moderno é o retrato de um homem que perdeu ambos os eixos que, por séculos, sustentaram sua relação com o sagrado:

Perdeu o aspecto simbólico pré-cristão, que fazia da festa um rito cósmico, agrário, erótico e regenerador, onde o caos era aceito como parte do ciclo da vida.

Perdeu também o significado ritualístico cristão, que articulava o Carnaval à lógica espiritual da penitência, da redenção e da reconciliação com o transcendente.

O que sobra é um simulacro: uma festa que mantém os gestos, os sons e as formas, mas esvaziada de sentido ontológico. O homem dança, bebe, exibe o corpo, mas não sabe mais por que. O Carnaval já não é nem portal para o mistério, nem preparação para a ascese. É apenas um interlúdio, uma suspensão artificial do cotidiano, rapidamente absorvido pelo mercado, pela mídia e pelos algoritmos.

Assim, o Carnaval contemporâneo nos devolve, como um espelho rachado, o retrato da condição espiritual moderna: órfã dos deuses antigos, surda à voz do transcendente, entregue à celebração de si mesma — e ao vazio que disso decorre.

Entre o Vazio e o Vestígio: A Persistência do Rito na Ruína.

Se, por um lado, constatamos que o homem moderno, órfão dos deuses e separado do transcendente, transformou o Carnaval em um simulacro de rito — uma celebração esvaziada, entregue ao mercado, à performance e à repetição inconsciente —, por outro, não podemos ignorar que a ruína ainda carrega a forma do templo que um dia foi.

O gesto que hoje parece vazio ainda carrega, como um fósforo apagado, a memória do fogo que um dia ardeu. O Carnaval, mesmo mutilado de seu eixo ontológico, não consegue se libertar completamente das forças arquetípicas que o engendraram. Como todo rito que atravessa séculos, mesmo em estado de decomposição simbólica, ele preserva traços vivos de sua estrutura original.

O corpo que dança sem saber por quê, a máscara que oculta sem revelar, o tempo que se suspende sem se compreender — tudo isso são fragmentos de uma liturgia esquecida, ecos de um teatro sagrado que a modernidade tentou profanar, mas que, paradoxalmente, resiste sob a forma de hábito, de desejo, de pulsão coletiva.

Assim, antes de concluir que o Carnaval moderno é apenas um vazio, é necessário reconhecer que ele é também, e simultaneamente, um campo de sobrevivência dos arquétipos, onde a Sombra, o Caos, a Máscara, o Corpo e o Tempo Rituais ainda vibram — mesmo que despidos de sua consciência simbólica, mesmo que reduzidos a gestos mecânicos ou a espetáculos desidratados de transcendência.

O que se segue, portanto, é a exploração desse paradoxo: como o rito sobrevive na própria condição da sua morte simbólica, como o Carnaval, mesmo esvaziado, ainda reverbera os mitos e as forças que lhe deram origem.

A Sobrevivência dos Traços Genuínos: Ecos do Rito no Carnaval Moderno.

Embora o homem moderno tenha, em grande medida, perdido a consciência dos significados profundos que estruturavam o Carnaval — tanto em sua matriz pagã quanto na moldura cristã —, a festa, paradoxalmente, ainda carrega, como uma cicatriz ou um fantasma, traços genuínos do que outrora foi um rito de potência ontológica.

1. O Caos Ainda Vive.

Mesmo esvaziado de seu lastro simbólico, o Carnaval moderno preserva a lógica da suspensão das normas: a rua como espaço de inversão, onde o traje social cede espaço à fantasia; onde o pudor, a compostura e a formalidade são temporariamente abolidos. A permissividade que aflora — embora hoje frequentemente mediada pelo mercado e pelo espetáculo — ainda ecoa aquele velho chamado do caos regenerador, onde a dissolução das formas fixas permite, mesmo que inconscientemente, uma descarga das tensões acumuladas na vida cotidiana.

2. A Máscara, Mesmo Sem Saber, Ainda Opera.

A prática de mascarar-se, de vestir-se com outra identidade, ainda é central. Embora o gesto tenha se tornado estético, performático ou lúdico, sua raiz simbólica permanece: a máscara ainda oferece a possibilidade de suspensão do eu cotidiano, de experimentar o outro, o estranho, o proibido. É um eco inconsciente dos antigos rituais de possessão dionisíaca e dos cultos de transfiguração.

3. O Corpo Como Eixo Central.

O corpo continua a ser protagonista. Exposto, exaltado, adornado ou erotizado, ele retoma — ainda que de modo inconsciente e desritualizado — sua centralidade como lugar de expressão do desejo, da vitalidade, da vida que se afirma contra a morte. Isso reflete os velhos ritos agrários e dionisíacos, onde corpo e natureza eram extensões uma da outra, pulsando no mesmo ciclo.

4. A Catarse Coletiva Sobrevive.

A explosão de música, dança, suor, grito e êxtase coletivo ainda cumpre, mesmo que superficialmente, uma função catártica. Há uma purgação simbólica das frustrações, das opressões, da rigidez social. O indivíduo, diluído na massa, experimenta — mesmo que brevemente — a dissolução do ego, eco longínquo da comunhão mística dos ritos antigos.

5. O Tempo Suspenso.

Durante o Carnaval, o tempo linear, produtivo, capitalista — aquele do relógio, do expediente, da rotina — é suspenso. Substitui-se por um tempo circular, festivo, mais próximo do tempo mítico. Ainda que isso aconteça de modo inconsciente e fragmentado, permanece o eco do tempo ritual, onde o presente se dilata e o passado arquetípico toca, por um instante, o agora.

Síntese.

Portanto, o Carnaval contemporâneo é um corpo morto que, paradoxalmente, ainda pulsa. É um rito quebrado, mas onde os cacos ainda brilham com a luz residual dos deuses antigos e dos símbolos sagrados. A sociedade não sabe mais o que faz, não entende mais os gestos que repete, mas repete-os — como um organismo que, mesmo ferido, tenta manter-se vivo.

Seja no delírio das multidões, na embriaguez dos sentidos, na suspensão do cotidiano, na exibição dos corpos ou na máscara que ainda esconde, o Carnaval preserva, como uma sombra do que foi, os gestos, os ritmos e os arquétipos de uma humanidade que, mesmo desconectada do sagrado, não consegue esquecer completamente que um dia dançou não para si, mas para o cosmos.

Nenhum comentário: