Continuemos. Vejamos como essa ideia está a afetar certas esferas da vida prática, como o casamento e o trabalho. Em ambas as esferas citadas existe o que chamamos de contrato (do latim contractus, “acordo”, particípio passado de contrahere, “trazer juntos, unir”). Essa relação entre sujeito — pessoa — e o objeto — casamento, trabalho — também sofreu a inversão de eixo a que me referi. Anteriormente, o casamento se dava num amor, num compromisso entre as duas partes em torno da unidade do objeto. O mesmo ocorria com o trabalho: sua relação visava à manutenção do objeto, com um retorno — em forma de salário — para o sujeito que o exercia.
Nessa linha — a da inversão do eixo do objeto para o sujeito — o ideal de direitos e deveres também sofreu essa inevitável transmutação. O casamento passou da manutenção do objeto para a satisfação do sujeito. Casais já não buscam o sacrifício do ser em nome da integridade do objeto; agora lutam pela realização plena dos prazeres do sujeito. Homens e mulheres lançam ao fogo uma unidade em troca de uma felicidade que deve satisfazer o elo mais forte da relação — com isso, acabam por subjugar a vontade e a liberdade do outro. O que, num monólogo, pode funcionar bem, num diálogo é vela e caixão preto.
O mesmo ocorre com o trabalho, onde a felicidade se dava pelo fim realizado, como quando pedreiros tratavam sua obra como sacra — assim foram construídas as catedrais e tudo o que vemos como arte. Eles passavam de pai para filho um saber sagrado, um conhecer que transcendia o mero ofício. Porém, esse conceito se transformou: hoje, o trabalho tornou-se simplesmente a entrega do suor em troca da possibilidade de satisfação dos desejos pessoais em uma sociedade de consumo. Trabalha-se por um salário para poder comprar o que meu coração determina.
Nessa inversão, a cabeça baixa perante os céus acaba por fazer com que o sujeito procure uma via de escape — e tal via é a da vergonha (do latim verecŭndĭa, “respeito, recato, temor reverente”, de vereri, “temer, respeitar”). Ela se apresenta fazendo com que o sujeito reflita sua própria dor não mais em silêncio, mas antes bradando aos quatro ventos: direitos, direitos e mais direitos — esquecendo que, nessa inversão, o dever também deveria ser levado em conta. Entretanto, como em toda inversão, o eixo passando do objeto para o sujeito trouxe ao dever o inverso daquilo que antes compreendia como prazer e sofrimento, felicidade e realização, e fez com que o dever que o tornava sanciente passasse a ser o direito que o faz feliz.
Só que isso tem um preço — e é muito caro. Essa inversão fez com que o mundo, que antes girava ao redor, não apenas gire, mas também ofereça. As pessoas passaram a acreditar que tudo ao seu redor lhes é extensão, de bom grado, de seus desejos — tão somente porque os possuem. Uma espécie de ego pairando sobre Deus. As raízes dessa ideia são profundas, e não pretendo me alongar nelas agora.
O fato é que essa concepção carrega em si uma insatisfação corrosiva por parte de quem não tem seus sonhos realizados — do modo como quer, na hora em que quer. Isso faz com que as esferas da vida prática entrem em colapso. Portanto, antes de crermos facilmente nessa ideia de perseguição a certas minorias ou de como o preconceito deteriora a camada social, pensemos no eixo invertido — e em como minha crença no que deve ser feito pode ou não comungar com os direitos que me foram dados.
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