Entretanto, algumas pessoas, pela inocência ou até mesmo burrice, confundem o objeto da fé com a própria fé — como se, ao atravessar a rua, eu buscasse a fé não naquilo que meus olhos ou meu julgamento me revelam, mas, antes, neles mesmos. Seria uma espécie de: “Tenho fé de que isso é um olho, por isso ele há de me dar uma certeza” — [risos] a coisa foi pras cucuias.
Essa deficiência na absorção se dá por uma dicotomia mal compreendida quanto ao objeto. Um objeto nunca pode ser tomado por sujeito, na medida em que, na relação, ele é o objeto. Imagine você assumir, numa relação onde você é o sujeito e determinada coisa é o objeto, uma inversão — tomando, sei lá… uma colher… por sujeito, e você, por objeto. Não que você não possa ser objeto numa relação, mas isso só se dá por uma consciência que, ao se observar, se percebe enquanto objeto — e, ainda assim, objeto para si, jamais objeto enquanto si.
E aqui reside justamente o ponto crítico: quando se perde a capacidade de distinguir o que é fonte, o que é meio e o que é fim, a fé degenera em delírio. Confunde-se o instrumento com a razão do instrumento; a mediação com o absoluto; e o resultado é um colapso da própria faculdade de discernir, que deveria, paradoxalmente, ser aquilo que antecede a própria fé. Afinal, a confiança que se deposita em algo pressupõe que esse algo não seja, ele mesmo, um ato de fé, mas uma instância válida, um dado, uma fonte — seja ela sensível, racional ou espiritual.
A palavra fé tem sua etimologia no latim fides, que significa "confiança", "lealdade", "crença", "credibilidade". Este termo deriva do verbo latino fidere, que significa "confiar", "acreditar", "ter confiança". Por sua vez, fidere tem raízes indo-europeias, vinculadas à raiz bheidh-, que carrega o sentido de "confiar", "persuadir", "convencer". Curiosamente, essa mesma raiz está na origem de palavras como confidência (con-fidere, confiar junto), fidelidade e fiduciário, todas orbitando semanticamente a ideia de confiança e lealdade a algo ou alguém.
Em suma, na própria origem do termo encontramos uma relação direta que nos remete à existência de um outro, pois, para confiar ou acreditar, é necessário que exista o objeto da confiança — aquilo, ou aquele, pelo qual o processo se dará. Para que a fé exista, é preciso que esse "outro" encontre, em nós, a confiança que dá ao processo o nome de fé.
Essa confiança, no entanto, não surge do nada. Ela se estabelece por alguns motivos bem definidos, que são os fundamentos racionais — ou intuitivos — que legitimam a entrega da confiança.
Irei Listar cinco deles:
1. Evidência Direta – Quando há percepção sensível, experiência imediata ou dados que sustentam a confiabilidade da fonte. Exemplo: confiar no que os olhos veem ao atravessar a rua.
2. Autoridade Reconhecida – A confiança se estabelece na credibilidade de quem transmite a informação ou oferece a garantia. Isso se aplica a mestres, especialistas, tradições ou instituições cuja competência é reconhecida.
3. Consistência e Coerência – A confiança surge da harmonia lógica e da ausência de contradições internas no que é apresentado. Um discurso coerente, uma prática consistente, ou uma realidade que não se contradiz geram confiança.
4. Experiência Reiterada – A confiança se consolida pela repetição bem-sucedida de um fenômeno ou relação. Algo que se mostra funcional, verdadeiro ou estável em múltiplas ocasiões torna-se objeto de fé prática.
5. Intuição ou Certeza Interior – Quando a razão não é suficiente, mas há uma convicção íntima, imediata, muitas vezes não discursiva, que se impõe como certeza. Essa é a fé fundada no espírito, na intuição ou em uma percepção supra-racional.
Esses cinco fundamentos já nos oferecem uma visão, ainda que superficial, de algo que é o cerne deste texto — aquilo sobre o que falei até aqui e aquilo sobre o qual peço, agora, um pouco mais de atenção. Em todos esses fundamentos, sem exceção, há uma característica única e indispensável: o testemunho.
Evidência direta, autoridade reconhecida, intuição, repetibilidade — qualquer que seja o fundamento, todos carregam, invariavelmente, o fator testemunhal. Algo — ou alguém — precisa nos oferecer seu testemunho, para que, nele, depositemos a confiança que sustenta a crença e nos conduza àquela certeza profunda que chamamos de fé.
A ideia de fé, tão necessária à nossa condição de buscadores de um prazer último, nos coloca em uma situação delicada: em qual testemunho podemos crer para termos alguma certeza que nos garanta essa fé?
É óbvio que a resposta está escancarada: é em Jesus Cristo que devemos depositar nossa fé. Agora, buscaremos entender o porquê.
Se pretendemos estabelecer alguma seriedade no assunto, o ponto de partida não pode ser a fé, já que ela, sendo o resultado, o fim último, não pode ser a causa material de si mesma.
O que é a vida?
Existe um amontoado de ações que se desenrolam desde o dia em que nascemos até o dia em que morreremos. Dito de outra forma, no dia da nossa morte, ao olharmos para trás, só veremos lembranças e pensamentos. Estes, naquele momento, precisarão fazer algum sentido — oferecer-nos o prazer de termos vivido uma vida plena.
Mas, para muitos, isso não acontece. Somos arrastados pelos sentidos lógicos que essas lembranças nos oferecem, envolvendo-nos numa amargura, fruto de um passado cujas memórias tomamos como danosas. E então, afundamos.
Esse mergulho no profundo, porém, interpretado de forma danosa, não ocorre pela força dos pensamentos em si, mas pela força de uma lógica — um Logos — que dá algum sentido ao conjunto.
É como se eu pegasse seis signos — r, d, c, o, a e outro a — e dissesse que, além da sequência que lhes atribuí, não existe nenhuma outra maneira de ordená-los. Seria uma sandice, sobretudo sabendo que há pessoas que conhecem o alfabeto.
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Cnt...
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