Dos Estados do Ser e da Hierarquia Ontológica.
O ser, em sua essência mais profunda, não se esgota na manifestação sensível, nem tampouco se limita às contingências da existência corpórea. O que ordinariamente se concebe como realidade — este mundo fenomênico, regido pelas leis espaço-temporais — representa apenas uma das inúmeras modalidades de manifestação do ser, a mais densa, a mais obscurecida pela rigidez da forma.
Por trás da tessitura do visível, há uma ordem mais ampla, um tecido ontológico onde múltiplos estados coexistem, cada qual correspondendo a um grau distinto de realidade. Esses estados não são espaços, nem tampouco lugares no sentido físico, mas modos de ser, definidos pela qualidade do ser que neles se exprime. O estado humano, tal como é vivido na experiência sensível, não é senão um ponto no espectro ilimitado da possibilidade total do ser.
O erro fundamental do homem moderno consiste em absolutizar este estado transitório, ignorando que sua natureza é apenas uma modalidade contingente de uma essência que o ultrapassa infinitamente. Aquilo que se costuma chamar de ‘vida’ é apenas a manifestação exterior de uma possibilidade entre outras, pois o ser total compreende, além da esfera corpórea, os estados sutis e supra-individuais, os quais, embora invisíveis ao olhar profano, são tão reais — e até mais — do que este mundo tangível.
Esses estados se organizam hierarquicamente, segundo uma ordem que vai do mais denso ao mais sutil, do mais condicionado ao absolutamente incondicionado. Cada degrau dessa hierarquia representa não uma progressão espacial, mas uma intensificação ontológica, uma aproximação crescente ao Princípio, ao Ser puro, que, em sua realidade suprema, transcende não apenas o mundo físico, mas também todo o conjunto dos estados manifestados.
Compreender os estados do ser não é, portanto, um exercício meramente especulativo, mas uma chave para a reintegração do homem à sua própria totalidade. A travessia que conduz dos estados inferiores aos superiores não se realiza por meio de deslocamentos externos, mas pela transmutação interior, pelo rompimento das amarras que ligam o ser à ilusão da separatividade e da finitude.
E, no entanto, além de toda manifestação, além de qualquer dualidade, há aquilo que não é ser nem não-ser, aquilo que nenhuma linguagem pode abarcar, pois é anterior a toda determinação. E é desse mistério que todos os estados emergem, e a ele todos retornam.
Dos Estados do Ser, sua Fundamentação Ontológica e sua Consonância com a Revelação.
Na consideração dos estados do ser, tal como se deduz pela via da metafísica perene, evidencia-se uma arquitetura ontológica cuja legitimidade não repousa em construções arbitrárias, mas no próprio real, tal como ele é, e como pode ser compreendido à luz da intelecção pura. Esta doutrina não se apresenta como hipótese, mas como descrição exata da hierarquia das possibilidades do ser, cuja raiz se encontra no Princípio Supremo, fonte de todo o possível e de todo o real.
Ao cruzar essa concepção com a filosofia tomista, observa-se não apenas consonância, mas robusta confirmação. Em Santo Tomás, o ser (esse) é ato, e o ato de ser é participado segundo graus. A distinção entre essentia e esse — essência e ato de ser — permite compreender que cada ente possui sua existência como participação limitada do Ser puro e subsistente, que é Deus.
O anjo, por exemplo, possui uma essência simples, sem matéria, cuja existência é recebida diretamente de Deus. O homem, composto de matéria e forma, expressa um modo de ser mais condicionado, inserido no domínio corpóreo. No entanto, a própria filosofia tomista reconhece a existência de graus ontológicos — não apenas entre os entes corpóreos e espirituais, mas também na diferenciação entre o ser criado e o Ser Incriado, absolutamente necessário e subsistente por Si.
Assim, aquilo que a metafísica tradicional chama de ‘estados do ser’ se articula perfeitamente com a doutrina tomista dos graus do ser, da participação e da analogia entis — a analogia do ser. Cada ordem de realidade manifesta, segundo seu grau, uma participação na plenitude do Ser divino. A existência material é o grau mais denso; a existência sutil, angélica ou espiritual, é superior; e acima de tudo está o Ser que é Ser por essência, Aquele em quem não há composição, mudança ou potencialidade.
Portanto, afirmar que há múltiplos estados do ser não é postular mundos fantasiosos, mas reconhecer que a realidade não se esgota na experiência sensível e que há modos superiores de ser, mais próximos do Ser absoluto, exatamente como o tomismo ensina ao distinguir o ser finito, participado, do Ser infinito, que é ato puro.
Síntese à Luz das Escrituras.
Esta doutrina não apenas se harmoniza com a filosofia, mas encontra eco claro nas Escrituras, que frequentemente aludem a diferentes planos de existência. O apóstolo Paulo fala de “corpos celestes e corpos terrestres” (1 Coríntios 15:40) e distingue entre o corpo animal e o corpo espiritual. Cristo, ao transfigurar-se no monte (Mateus 17), manifesta um estado de ser que transcende as condições ordinárias da matéria.
O livro do Apocalipse, com sua descrição de céus, tronos, anjos e hierarquias espirituais, é um testemunho explícito da existência de ordens além do mundo físico. E as palavras do próprio Senhor — “Na casa de meu Pai há muitas moradas” (João 14:2) — indicam a multiplicidade dos estados ou dos modos de participação no Ser divino, segundo os méritos, as disposições e a graça.
Assim, a ontologia tradicional dos estados do ser, corroborada pela filosofia tomista, não é outra coisa senão a descrição metafísica do próprio cosmos tal como a Revelação nos apresenta: uma hierarquia de existências, todas ordenadas ao Princípio, no qual “vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17:28), e para o qual toda a criação tende como fim último, até que “Deus seja tudo em todos” (1 Coríntios 15:28).
A Ideia Moderna dos Estados do Ser: A Queda na Horizontalidade.
A modernidade, ao romper com a metafísica tradicional, substitui a concepção hierárquica e vertical do ser por uma visão unidimensional, horizontal e materializada da realidade. O ser já não é mais compreendido como uma participação graduada no Ato puro, nem como manifestação de uma realidade supracósmica, mas reduz-se à pura facticidade empírica, à extensão, à quantidade, ao dado sensível ou, no máximo, aos fenômenos psíquicos interpretados segundo categorias psicologizantes.
Aquilo que antes era visto como estados superiores de existência — modos espirituais, angélicos, supra-humanos —, é hoje descartado como superstição, mitologia ou projeções do inconsciente. As próprias possibilidades internas do ser humano, que na metafísica visavam à realização espiritual e à reintegração nos estados superiores, são rebaixadas à busca de bem-estar psicológico, desenvolvimento emocional ou maximização de performances cognitivas e produtivas.
O ser, na perspectiva moderna, dissolve-se no devir. Ele deixa de ser princípio para tornar-se processo. A ontologia cede lugar à fenomenologia, à epistemologia, à análise linguística ou a sistemas que descrevem apenas a aparência dos fenômenos. A ciência, que originalmente poderia ser um conhecimento das causas secundárias, autonomeia-se como o único discurso legítimo sobre o real, confinando o ser ao domínio do observável, do mensurável e do replicável.
Se há alguma noção de ‘estados’ na modernidade, ela aparece deformada em teorias psicológicas, sociológicas ou, mais recentemente, em simulações tecnológicas e especulações sobre realidades virtuais, multiversos ou inteligências artificiais. Mas todas essas são expansões quantitativas, horizontais, nunca verdadeiras ascensões qualitativas no ser.
No limite, a modernidade realiza uma inversão completa da ordem: nega os estados superiores, absolutiza o estado corpóreo e, paradoxalmente, abre espaço apenas para os estados inferiores — a dissolução, a fragmentação, a despersonalização, a entrega aos abismos infra-humanos, seja nas patologias psíquicas, seja nas idolatrias tecnológicas.
Assim, onde a metafísica vê graus ascendentes de realidade, a modernidade vê apenas superfícies. Onde antes se buscava o retorno ao Princípio, agora se busca a expansão ilimitada da periferia.
Conclusão: A Ordem dos Estados e o Retorno ao Princípio.
O Ser, em sua realidade total, é plenitude inexaurível de possibilidades. Cada estado, cada modo de ser, manifesta uma participação na Possibilidade universal, cuja fonte é o Princípio absoluto, necessário, infinito e eterno. Nada existe fora desse Princípio, pois Ele é a fonte, o meio e o fim de toda manifestação.
O estado humano, tal como hoje se conhece, não é senão uma etapa, uma condição transitória dentro da ordem total dos estados possíveis. A condição corpórea não constitui nem o princípio nem o ápice da realidade, mas apenas um dos níveis — o mais contingente, o mais limitado pela matéria e pelo tempo.
Por sua própria natureza, o ser está ordenado ao retorno. A existência manifesta é uma saída (exitus) que demanda, por sua própria estrutura, o retorno (reditus) ao Princípio. A passagem pelos estados não é aleatória, nem cega, mas ordenada segundo uma hierarquia que reflete a própria ordem divina.
O itinerário do ser consiste, portanto, na reintegração: ascender dos estados mais densos aos mais sutis, do composto ao simples, do múltiplo ao uno, do condicionado ao incondicionado. Esta ascensão não é local, mas ontológica; não se dá no espaço, mas no ser.
E, no ápice dessa ascensão, o ser ultrapassa até mesmo o domínio da manifestação. Pois se os múltiplos estados são modos de ser, há também aquilo que é além do ser — o Princípio supremo, não condicionado, não manifestado, absoluto, que é causa, raiz e fim de tudo o que é.
Na linguagem da Tradição revelada, isso se expressa na fórmula eterna: “Eu sou Aquele que sou” (Êxodo 3:14), onde o próprio Ser se afirma como absoluto, puro, subsistente. E todo o cosmos — visível e invisível, corpóreo e espiritual, manifestado e não manifestado — não é senão uma irradiação desse Ser, ordenada, hierárquica e sacral.
Por isso, não há outro caminho senão aquele que retorna ao Uno. Tudo o que é, tende necessariamente ao que É. Todo o múltiplo, ao seu Princípio. Toda a criação, ao Criador. Toda a existência, à Essência. E todo o ser, ao Ser.
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