terça-feira, 13 de maio de 2025

Honesto.

CAPÍTULO UM - HONESTO.

Alguns nomes dizem mais do que querem dizer.
Honesto era o seu nome, e convenhamos, que nome, meus amigos — que nome.
Ele não era muito sociável, e acredito eu que o fato se dava pelo cartão de visitas, que era o seu nome. Era como se o nome não diferenciasse o próprio do particular com o termo do universal — Honesto sempre ia na frente do sujeito, que de honesto, tinha apenas o nome.

Alguns relatos das peripécias de Honesto pairavam sobre a pequena cidade de Tomotôco, vilarejo ao sul de lugar nenhum.
Dizem os moradores de Tomotôco que, com 12 anos, Honesto já tivera gambelado o vigário, o escrivão e o senhor Jubiscreudo. Este, não aguentando mais as desonestas inserções de Honesto, junto com outros moradores, armou na surdina da noite uma emboscada para arrancá-lo da casa dos pais e vendê-lo a um circo que passava pelas redondezas.

— Nada mais justo. Quem sabe essa aberração não dê algum lucro — honestamente — e nos traga alguma paz, mesmo que de forma desonesta — disse a senhora Pegapelo.


Mas, por ironia do destino, Honesto naquela noite fora dormir no chiqueiro dos porcos. E, não encontrando o menino no leito, os moradores de Tomotôco desistiram da empreitada.
Em outra ocasião, Honesto negociara as galinhas de Zé do Carvão, um homem de meia-idade, viúvo, que morava com sua filha Pedaço de Lenha — uma moçoila que, dentre os poucos habitantes de Tomotôco, era a única que via em Honesto mais do que apenas um fardo.

— Há honestidade no Honesto. Esperem o fio de bigode nascer — dizia ela.

A vida naquele pequeno lugar era pacata, e tirando as notícias que corriam de batente em batente sobre as aventuras de Honesto, que agora contava com 18 anos, o resto se resumia a pequenas narrativas sobre a capital — Lugar Nenhum.
De lá, algumas notícias chegavam:

— O Governador irá fazer uma visita às cidades da redondeza.
— O primeiro carro-puxado chegará a Lugar Nenhum, uma aquisição do governo para transporte das crianças e dos idosos.

— Jubiscreudo vai até Lugar Nenhum, irá ter com o bispo. Vai ver se arruma um sino novo para a igreja — lia no pequeno papel o título da matéria a senhora Língua-Grande.

Pedaço de Lenha gritava ao sol do meio-dia para as crianças que ainda insistiam em não voltar para a sala de aula:

— Corram logo, senão amanhã fica todo mundo sem recreio!

E elas vinham, como aquele bando que responde ao som da comida.
Tudo em Tomotôco era desse jeito: simples, rápido e fácil.

Só que não era fácil — nenhum pouco fácil — para Honesto, que por força das circunstâncias arrumara um emprego na venda de Zé do Carvão.

— Honesto, dona Róla Falso disse que você cobrou trinta conto pelo saco de batatas?
— E a dona Língua-Grande me disse que anda a espreitar a plantação de milho do Chico Penico. Menino, toma jeito.

O seu Zé do Carvão nutria um carinho todo especial por Honesto. De tanto a filha insistir que ali havia alguma esperança, ele começou a olhar para o rapaz como quem olha para a lua — agora na espera de que o brilho não se esconda tão rápido entre as nuvens.

E a vida se dava daquele jeito em Tomotôco: pequenos causos, pequenas histórias, pequenas resenhas. Tudo ali era pequeno — mas como falei — simples, rápido e fácil.
Faziam três semanas que chegara a notícia de que o Governador e sua comitiva passariam por aquelas bandas, e um alvoroço se deu.
Os moradores, querendo fazer bonito com os mandachuvas, ensaiavam situações para agradar ao Governador. O prefeito de Tomotôco, senhor Gole de Pinga, junto com o cidadão mais ilustre, o senhor Jubiscreudo, encomendaram um show com um parque itinerante que, de vez em quando, dava as caras por ali.

— Precisamos impressionar — dizia Gole de Pinga.
— Se fizer bonito, pode ser que mandem um daqueles carro-puxados da capital — sonhava o senhor Jubiscreudo.

O alvoroço com a visita do Governador instalou em Tomotôco uma verdadeira algazarra: pessoas pintando casas, outras decorando, a igreja do padre Salva-Salva mandara fazer uma grande faixa com os dizeres:

“BEM-VINDO, GOVERNADOR GRANDE PEDAÇO. OS CIDADÃOS DE TOMOTÔCO SE ALEGRAM COM SUA PRESENÇA ILUSTRE.”

Todos ali reverenciando a possível chegada dos mandachuvas — com exceção de Honesto.
Ele via aquilo como uma perda de tempo:

— Quem já se viu? Quanto dinheiro gasto com Grande Pedaço... Seria mais sensato pagar pra calar a senhora Língua-Grande — teria mais serventia — dizia ele.

Os dias se passaram, e o grande momento chegou. Por volta das dez horas, o emissário do governo pulou à frente da comitiva e chegou a Tomotôco.

— Quero falar com o senhor prefeito — atônito, disse o pobre homem.
— Pois não — falou o prefeito.
— Me chamo Vou na Frente. A comitiva do Governador foi emboscada.

O senhor prefeito e todos os moradores ficaram parados, sem saber o que dizer.

— Espere! Espere! — levantou a voz o padre Salva-Salva. — Quem faria isso?

O que ocorrera foi o seguinte: algumas horas antes, a comitiva estava transitando entre Mal-Fazer e Para-Abaixo, cidades vizinhas de Tomotôco.
Um bando de aves de rapina malgradas — numa quantidade que até os céus duvidam — encantadas com a formosura da primeira-dama, a mulher do governador, atacaram a comitiva, levando a primeira-dama e sua filha, Pequeno Pedaço.


A notícia rolou como uma avalanche na cabeça de todos os moradores — ninguém sabia o que fazer, tampouco o que dizer.

— E agora? — perguntava um.
— O que vamos fazer? — indagava outro.

Honesto, com um canivete na mão e um pedaço de madeira na outra, escutava tudo do alto da escadaria da igreja.


— Que os céus não deixem cair aquilo que subiu até eles — murmurava, quase em prece.

O emissário — o pobre homem — andava de um lado para o outro, sem saber se sentava, corria, ia ou voltava.

Do lado de fora da cidade, a comitiva ainda dispersa tentava recolher os pedaços... na falta de Pedaço e Meio e Pequeno Pedaço.

O governador Grande Pedaço pedia calma — mas sem nenhuma calma — e, como um relâmpago que risca o céu numa tarde escura, deu um berro:

— Parem! Tive uma ideia! Peguem um saco de milho e joguem no chão! Vai que esses urubus aceitam trocar um saco com vários pedaços pelos pedaços que me faltam!

CAPÍTULO DOIS - MAL-FAZER E PARA-ABAIXO.

Capítulo Segundo – Mal-Fazer e Para-Abaixo

Na região de lugar nenhum, havia poucas cidades. A maioria das pessoas morava à beira da estrada. Era costume, de vez em quando, sair andando pelo mundo afora e dar de cara com aglomerados de casas — umas de frente para as outras — pertencendo ao mesmo tempo em que não pertenciam a lugar algum.

Na região, havia três cidades: Tomotôco, Para-Abaixo e Mal-Fazer. Cidades que foram fundadas na esperança de que as pessoas largassem aquela mania — a de viver à beira da estrada. Uma mania que começava em lugar nenhum e ia saltando, saltando, e saltando, até chegar nos confins da Terra do tal cego que vê.

Deixe-me explicar: havia uma história nas redondezas de que o mundo tem fim. E você sabe que chegou ao fim quando encontra o cego que vê. Por isso se diz que, quando alguém encontrar o cego que vê, é porque o mundo acabou.

São apenas histórias que alimentam a imaginação dos moradores da redondeza.

Para-Abaixo era, das três, a maior cidade; e Mal-Fazer, a menor. Tomotôco, por sua vez, não era grande nem tão pequena. Os moradores de Para-Abaixo tinham algo em comum: quase todos — para não dizer todos — carregavam um ar meio deprimente, como se nada fosse o suficiente.


O prefeito da cidade, o senhor Pena-Pena, era um homem rude, insípido, alguém cuja presença nenhum outro suportaria por mais de cinco minutos.

Em Para-Abaixo também havia aqueles personagens marcantes, como é o caso do senhor Não-Tenho-Não. Esse homem foi um dos responsáveis por fazer a cidade, certo dia, sair nos folhetins da capital — tudo por causa do seu peculiar hobby de criar cabras.

Ele tem tanta cabra que guarda parte delas na serra. Uma vez por ano, precisa limpar a serra, sendo então obrigado a migrar as cabras para um lugar chamado Canto do Rio. E é tanto o “bé” que elas fazem nesse dia, que até os defuntos usam tampão.

E falando em cova rasa, a cidade de Mal-Fazer era, das três, a mais traiçoeira — um lar de pessoas inescrupulosas. Alguns, em Tomotôco, acreditavam que os pais de Honesto tivessem vindo de lá. O que, segundo eles, explicaria tudo o que o sujeito é.

Em Mal-Fazer, tudo é feito para não dar certo. O governo de Lugar Nenhum, por algum tempo, chegou a considerar fechar o acesso à cidade. Queriam evitar que alguém de lá desse as caras no mundo — uma espécie de quarentena permanente.

Da cidade, pouco se sabe. Só que lá não se pode confiar em ninguém.

O prefeito, senhor Coisa Ruim, de tempos em tempos precisa prestar contas ao governo — eis por que ainda não fecharam:

— Se fecharem, ficam sem o dinheiro dos jogos — disse o tal Coisa Ruim.

E digo: a cidade é uma caxeta a céu aberto.

Mas digo: não se espantem. O tamanho, às vezes, não revela a dimensão da coisa — erro que nasce da deficiência da nossa visão.

Em Mal-Fazer, o medo era o que imperava. Fica até difícil acreditar que, ao lado de uma cidade como Tomotôco, onde tudo é simples, rápido e fácil, possa existir um lugar onde o ódio, a hipocrisia e, principalmente, o medo, se façam tão presentes.

Certa vez, um sujeito chamado Ando-Curto errou o caminho e foi parar em Mal-Fazer. Chegando lá por volta das cinco, só lhe restaram duas opções: voltar e tentar chegar a Para-Abaixo, ou ficar ali mesmo. O pobre coitado decidiu ficar.

Meses depois, um folhetim desses da capital registrou:

— Sujeito fez mal, dançou com o dia e perdeu para a noite. Dorme no tempo e para em Mal-Fazer.

O sujeito sumiu.

CAPÍTULO TRÊS  -  O CEGO QUE VÊ. 

Houve um tempo dentro do tempo em que a lama das coisas não era obra de coisa alguma — uma espécie de espaço que pairava sobre a vontade e julgava a liberdade. Tentar entender ou decifrar qualquer coisa não era tarefa de almas errantes. Entre as estradas da vida e a soleira da porta de alguém, estava o caminho que ainda não dizia a que viera; só se sabia que havia um desejo de que ele repousasse em lugar nenhum.


A comitiva, agora dispersa, não conseguia se reagrupar. Seu Grande Pedaço, separado do resto, lançava ao ar punhados de milho, numa tentativa de que aquelas aves aceitassem o que, de sua parte, ele considerava um belo negócio.

Grande Pedaço nascera à beira da estrada — sina recorrente entre os moradores daquelas bandas. Menino buxudo, baixo, ranzinza, mas com um coração imenso.
— Esse menino só não tem a barriga maior do que o coração — dizia o caixeiro-viajante, que de tempos em tempos passava pela beira da estrada, lar de Grande Pedaço.

Quando um pouco mais moço — mas ainda baixo, e com aquela barriga que avançava à frente dos pés —, meteu-se na traseira de um roda-roda, partindo na esperança de, naquele veículo, chegar a Lugar Nenhum.
— Não fico mais aqui — dizia Grande Pedaço.


Em Mal-Fazer, assim como em Para-Abaixo e Tomotôco, as notícias sobre a comitiva do Governador chegavam como chega o tempo ao homem que ainda não fez o que decidiu fazer da vida — num espanto. Um bando de aves de rapina, sem respeito e com audácia, levara de sobressalto Pequeno Pedaço e Pedaço e Meio.

— Não tenho pena — dizia o Sr. Coisa Ruim ao seu secretário.
— Abram as apostas. Grande Pedaço vai se partir em muitos pedaços.

Ria como um alucinado o Sr. Não Tenho Pena:
— Mil pra um que os Voa-Voa não soltam nem Meio Pedaço, nem Pequeno Pedaço!

Um murmurinho corria de boca em boca. Todos iam de um lado para o outro com pequenos pedaços de papel nas mãos, acenando ao prefeito suas singelas apostas.


Já em Para-Abaixo, o que se via com as notícias era uma espécie de pena, de tristeza enrustida. As pessoas não acreditavam no que se dera.

— Grande Pedaço é um bom homem — diziam uns.
— Pobre Pequeno Pedaço, ontem ela corria e brincava com as cabras — dizia outro.

O prefeito, o Sr. Pena-Pena, gritara em alto e bom som para quem quisesse ouvir:

— Vamos assar o mundo afora, ele há de nos devolver Pequeno Pedaço e Pedaço e Meio!

Em Tomotôco, todos ainda incrédulos organizavam uma partida, na esperança de que houvesse alguma esperança.
Senhora Língua-Grande arrumara alguns mantimentos, e o Senhor Jubiscreudo, juntamente com o Padre Salva-Salva, contavam as cabeças que se prontificavam a ajudar a comitiva dos manda-chuva.

— Você, emissário, viu para que lado levaram Pequeno Pedaço e Pedaço e Meio? — perguntou o prefeito Gole de Pinga.
— Não, foi tudo muito rápido. Só vi que subiram aos céus...

Honesto, ainda sentado, decidindo se levantar e tomando a direção contrária ao aglomerado que se juntava para partir, escuta ao longe os gritos de Zé do Carvão e Dona Róla Falso:

— Aonde vai, rapaz? O caminho é por aqui!

Honesto, não dando muita importância, pega um roda-roda e sai sem rumo.

Todos, num conchavo, começam a falar pelos cotovelos:

— Nesse não dá pra confiar...
— De Honesto, só carrega o nome.

Como falei no início, naquelas bandas havia bandas que não preenchem nada, e lugares onde a lama não era obra do acaso nem tampouco do tempo. Onde a quantidade não passava de um amontoado sem nome e sem forma.

Lá por essas bandas, o que era um sonho de fato existia. E como existência, sua vontade não era mais do que liberdade em germe.

Ali, numa pequena sola de batente, sem esquina e que dá em lugar nenhum, vivia um cego. Um cabra idoso que não tinha vizinhos, amigos, nem se atrevesse qualquer caixeiro a passar por aquelas bandas.

Ele não conhecia ninguém, mas a todos via. Ele, não sendo, era. Não existindo, vivia.


De sua cegueira já nem lembrava. Só escutava. Sentia.
Seu nome, não tendo nome, nunca fora registrado nos cartórios de Lugar Nenhum.
E por ironia dos termos que não definem, ele só podia ser chamado daquele que nega ao afirmar: o cego que vê.

CAPÍTULO QUATRO  -  O DESTERRO DE ZÓI-TORTO.

Todo nome tem um motivo de ser — é o que achamos razão. Os gregos davam a isso o nome de lógos: algo que desce e infunde, naqueles que veem a verdade do objeto, o seu fim último — para que veio.

Vejam vocês: longe da música desses dias, de todo o alvoroço que tomava Tomotôco e as cidades vizinhas, entre Lugar Nenhum e seus limites havia uma taberna — ou melhor, aquilo se parecia mais com um mausoléu para vagabundos, caixeiros, desiludidos, e toda essa gente que não passa por nada e para em qualquer esquina. Disse certa vez o emissário do governo durante um evento na capital. Vai na frente — além de emissário do governo, era também o geógrafo: homem culto, responsável pelos mapas e pelos limites da fronteira de cada lugar, na região de Lugar Nenhum.

O dito estabelecimento tinha um nome peculiar: Vida-Curta. E mais peculiar ainda era seu proprietário — um sujeito sem história aparente que, de aparente, só carregava a marca que dava ao seu nome um sentido que fizesse sentido: Zóio-Torto. Um belo dia ele apareceu em Lugar Nenhum. Ficou por lá uns dois meses — tempo suficiente para que os moradores da capital vissem nele, além de um homem que carrega uma marca vívida, um intruso, alguém que não podia ficar ali. Tudo isso se deu porque, certa manhã, ele, diante do Palácio do Governo, bradou em alto e bom som:

— LUGAR NENHUM NÃO É LUGAR PARA SE VIVER!


Os moradores recorreram ao governador, e este foi aos juízes, pedindo que prendessem Zóio-Torto. Mas, acreditem, meus amigos, não podendo com o homem — que dava medo em quem o visse — resolveram exilá-lo.

Disse o chefe da polícia:

— Ninguém quer olhar para Zóio-Torto. Mandemos ele embora.

O exílio não correspondia a mandá-lo para a região de Lugar Nenhum — então empurraram o pobre sujeito para a frente.

— Vá para o começo — disse o chefe de polícia, o comandante Pega-Pega.

Assim, no começo de Lugar Nenhum, Zóio-Torto, entre mulheres mal amadas e homens desesperançados, abriu a sua taberna.

Vida-Curta era um lugar interessante. Todo mundo que queria entrar na região de Lugar Nenhum era obrigado a passar por ali. São muitas as histórias.

Certa vez, às cinco da tarde, entra no lugar um homem na faixa de seus trinta e poucos. Senta-se e pede um prato:

— Me vê o melhor que tiver.

A atendente, uma moça surrada pela vida — e que, na sua jornada de poucos anos, mas muita intensidade, fora expurgada da beira da estrada e, não podendo ir adiante, dera um passo para trás — foi parar em Vida-Curta.

O nome da sujeita era Morte-Longa. Risos — que nome mais sugestivo para a atendente de um lugar como Vida-Curta.

— O melhor que temos já está na mesa. Bom proveito — disse Morte-Longa.

O sujeito olhou, comeu e partiu.

Em outra ocasião, se deu por ali ninguém menos do que Coisa Ruim, esse mesmo.

— Quero falar com Zóio-Torto — disse ele.

— Ele tá no afazer — respondeu Morte-Longa.

— Diga a ele que vim acertar a Querela do Tempo — enfatizou, bravo, Coisa Ruim.

Querela do Tempo… Os negócios de Mal-Fazer são escusos, mas de interesse do Governo, que, não se importando como fazem, permite que façam.

— Aqui é aonde a coisa começa, e em Lugar Nenhum onde termina. Deixe o dinheiro e vá embora — disse Seu Zé.

São muitos os casos, e longos são os anos que precisaríamos para debulhar cada um.

— Hoje tá sereno — disse um caixeiro que por ali passara.

— Há sempre essa calmaria antes de encontrar o fim — respondeu Zóio-Torto.

— Fui lá nas bandas de Tomotôco. Semana passada atravessei a ponte do Pega-Ligeiro e fiquei sabendo que a região tá entregue às traças — falou novamente o errante.

— Traças são bichos que incomodam — Zóio-Torto falou em alto e bom som.

— Veja você, ouvi uns boatos de que o Governo, ao fazer uma visita pelas bandas de lá, foi emboscado. Umas aves de rapina subiram aos céus com a mulher e a filha do governador — contou o homem enquanto bebia um copo de cana.

Seu Zé nunca fora muito fã de governo algum — muito menos o de Lugar Nenhum. Seu desterro nunca foi bem visto por ele.

— Quem já se viu punir alguém por dizer a verdade? — disse ele certa vez a uma mulher que queria apenas uma refeição e um lugar para repousar os lombos.


Em Para-Abaixo, o prefeito já estava a sair com a multidão em direção a sabe-se lá onde, quando lá longe um roda-roda, vindo entre a ponte do Pega-Ligeiro e a mangueira de Janela Aberta, cruza como um raio de luz que trava uma luta contra a escuridão: era Honesto.

— Quero falar com o prefeito — disse Honesto, num tom sério e sem conversa.

Responde um transeunte do meio da multidão:

— O que você quer com o homem?

Responde Honesto:

— Trago notícias sobre a comitiva do governador.

— Deixe o moço passar! — salta Pena-Pena, se impondo a qualquer um que decidisse barrar Honesto.

Longe dali, em Mal-Fazer, o prefeito e o secretário contavam os bilhetes.

— Ninguém duvida do salto dos Voa-Voa — dizia Não Tenho Pena.

— E se soltarem os pedaços no chão? — completava Pena Nenhuma.

Esse era o braço direito do secretário — puxa-saco, era só ele.

E, falando em puxar o saco…

— Já faz dia e meio que levaram elas — disse Pago-Pouco, um dos secretários de baixo escalão do governo, para o governador.
— Se não devolverem, o senhor pode ficar com meus pedaços.

O governador, Grande Pedaço, ouvindo aquilo, caiu em prantos.

Dia e meio, como disse, já se fazia desde o infortúnio da comitiva do governo. Toda a região já sabia do ocorrido — e nada de Pedaço e Meio, tampouco de Pequeno Pedaço.

Em Tomotôco, o prefeito, o emissário e todos os que podiam ajudar já haviam metido o pé no mundo. Em Para-Abaixo, o prefeito e os que se prontificaram já haviam baixado as armas, pois Honesto lhes informara que a mulher e a filha tinham sido encontradas. Segundo ele, os Voa-Voa não são fãs de qualquer pedaço — o que lhes interessa é um grande pedaço.

Em Mal-Fazer, o prefeito e toda a trupe de saltimbancos já tinham recolhido as apostas e mandado chamar a Raposa Ligeira. Disseram-lhe:

— Vá à beira da estrada, onde fica o ninho dos Voa-Voa. Viu qualquer pedaço, corre de volta e avisa.

CAPÍTULO CINCO - LUGAR NENHUM - OU COMO DANÇAMOS ENQUANTO TUDO AFUNDA.

Eram meio-dia de um dia e meio da alçada de Pequeno Pedaço e Meio Pedaço aos céus. Honesto negociava qualquer coisa com Ando-Mole — esse residente antigo de Para-Abaixo era uma espécie de faz-tudo da cidade. Tinha um problema? Procura o dito homem.

Gabava-se de ser de família importante, do canto do galo ao da coruja, e fazia questão de lembrar a todos que era irmão do comissário Ando-Curto.

Os ânimos por aquelas bandas haviam se acalmado, quando, por detrás da ponte que liga a cidade à região, um som ensurdecedor se fez ouvir.

Dezenas de pessoas, carregando foices e tochas, atravessaram o outro lado da ponte bradando sons incompreensíveis — eram os moradores de Tomotôco, que vinham ao resgate da comitiva dos mandachuvas.

As pessoas de Para-Abaixo se amontoavam em frente à ponte, confusas. Foi então que Honesto saltou diante de todos:

— Acenem, levantem as mãos! Compadeçam-se! Estão em júbilo pela vida salva dos pedaços do governo!

Nesse momento, algo inusitado se deu: de um lado, os moradores de Tomotôco exaurindo ódio; do outro, os de Para-Abaixo, em festa.

Gritavam de um lado: — Venham! Juntem-se a nós!
E do outro: — Nós já vamos!

— Uma coisa é faltar na dor... Agora, gastar no desfile... Aí já fica difícil — resmungou baixo o prefeito Pena-Pena.

Num batente de esquina, com um copo numa mão e o mingau na outra, um cego contava uma história a uma raposa — sua melhor companheira.
Tocou essa melodia.

Nos tempos da Luz que Volta, foram criados dois registros.
Um foi dado Ao que Importa, e o outro, ao Desperdício.
O primeiro se chamou Nenhum Lugar, e o outro, Lugar Nenhum.


Alguém já sentiu, em algum momento, a brisa daquela leve loucura?
Um toque sutil, uma percepção direta — tem alguma coisa errada.
Dedos frios que colocam em xeque o motivo pelo qual lutamos.
Por um minuto, ou segundo, essa coisa toca a todos.
Alguns seguem na esteira do toque; outros, simplesmente procuram esquecer.
E quando se dá por conta… já se esqueceu.

No Palácio do Governo, reunião de emergência.

Entra pela sala central — toda adornada por coisas que não dá para descrever — um homem baixo, de bigode meio excêntrico, caminhando em direção a uma porta onde se lia, em letras garrafais: GOVERNADOR.

O homem entra.
Do outro lado da porta, um sujeito trajado em farda militar, sentado numa poltrona ornada com coisas que ninguém consegue descrever.

— Trouxe o relatório, homem? — disse a figura.

— Trouxe, senhor. As notícias… não dizem nada.

Relatório:
Ao comando de Lugar Nenhum, por volta de Tanto Faz, Grande Pedaço e aquele outro bando de Pedaços foram emboscados por um grupo de Não Fazem Nada.
Um outro bando — os Sem Peso — está a caminho para o resgate.

Desmorona na sala um desânimo que não existe — uma ausência densa, como se o ar perdesse propósito.
Numa rapidez assustadora e inquietante, o homem de farda suspira.
Volta a si com um estalo seco nos olhos e olha com desprezo para o outro.

— Pedaços por pedaços — diz ele, num tom suave, porém carregado de vontade.

Alguns não entendem que a vida é um meandro de coisas aparentes —
Ora fazem sentido, ora não têm sentido algum.

Vejam vocês: Lugar Nenhum possuía dois portões de acesso, duas entradas.
A primeira era uma estrada pequena e íngreme, daquelas que exigem mais do que força — exigem esquecimento.
Passar por ela não era tarefa para qualquer um.

Dizem que três homens, tentando escapar da polícia do Lugar, escolheram fugir para a frente.
Acabaram por cair num poço de cova rasa.
E, segundo contam, estão lá até hoje —
sem saber se descem ou se sobem.

Na outra ponta, está um monte de caminhos — são as estradas que dão acesso à Região.
Largas, espaçosas, rodeadas por casas que começam dispersas e terminam separadas.
Os únicos lugares onde se ajuntam são em Tomotôco, Para-Abaixo e Mal-Fazer.

Em Lugar Nenhum, os moradores só pensam numa coisa: viver.
Mas não de mãos dadas com aquele espírito que busca dar sentido à vida que carrega.
É antes um outro tipo de sentimento.
Um no qual a vida não é nada mais do que o peso que carrega uma obrigação não dada —
Uma espécie de fardo por algo que nunca se soube, nem se saberá.

Havia, em Lugar Nenhum, os lugares que há em qualquer cidade —
Maiores, por sua vez, por ali ser a capital.
Contudo, carregavam o sentido habitual que acompanha qualquer nome,
mesmo quando não retribuem a graça que lhes foi dada.

Como disse: dos dois caminhos, um é traiçoeiro, e o outro, convidativo.
Poucos conhecem e transitam pelo primeiro com a mesma naturalidade com que os outros andam pelo segundo.

Zóio-Torto, Morte-Longa, Coisa-Ruim, e mais alguns sabiam como ninguém
passar por aquelas bandas sem sofrerem qualquer dano.

Dentre os muitos que, com aquele caminho, bailavam sem perder o ritmo, havia um em especial.
Um que não só dançava, mas dava o som da coisa: Raposa Ligeira.

Era quando queria, e como queria.
A bicha era um verdadeiro hiato no tempo quando o assunto era atravessar a estrada entre a Região de Lugar Nenhum e o Começo da História.
Lá onde termina: na taberna de Zóio-Torto.

Ela saía às seis, com o nascer do sol,
e antes do meio-dia já voltava com qualquer mingau ou alimento,
trazido lá das bandas de Vida-Curta.

Raposa Ligeira encontrava-se agora à beira da estrada.
À sua frente, a Toca dos Voa-Voa.

Lá dentro, uma festa imensa —
uma alegria desconcertante, feita de pulos, trinados e farpas de luz.
Os pássaros voavam em círculos, saltavam de um lado para o outro,
como se a própria gravidade houvesse se rendido ao êxtase.

Quem visse, imaginaria que os espólios da conquista foram gordos.
Fartos Pedaços, distribuídos como quem distribui ouro num mundo que já esqueceu o valor do suor.

Raposa Ligeira, na surdina,
olhando sem que ninguém a percebesse, viu um dos Voa-Voa —
inebriado pelo sucesso —
erguer as asas, girar em pleno delírio e gritar:

— Voa-pra-baixo! Voa-pra-cima! Voa-pro-lado! Voa-Voa! Voa-Voa!


Era um canto estranho, eufórico, sem direção —
mas que vibrava como se soubesse exatamente para onde levar o mundo.

Ela, num pulo, salta de onde estava.
Seus olhos piscam uma vez,
e num instante —
desaparece em meio à festança e ao desperdício.

Como o silêncio que atravessa o meio do trovão.
Como quem sabe o caminho que não pode ser descrito.
Seu próximo destino, já imaginamos qual seja.

Em Lugar Nenhum, a Calmaria era a moeda do dia —
uma espécie de preocupação que vinha com uma despreocupação desmedida.
Era como olhar para um abismo e pensar que, no fundo, ele também deve estar entediado.

— Todo Pedaço importa — dizia um morador ao outro.
— Nenhum mais do que aquele? — indagava o vizinho, sem apontar qual.
— Foram doze carro-puxado, foram doze — referia-se um deles à aquisição recente do Governo.

Dos confins da cidade ao outro extremo,
uma nostalgia pairava no ar —
pelo que quase se tem,
mas não se sabe que se detém.

Os moradores caminhavam.
Sentavam.
Conversavam.

O assunto? Ele — sempre ele,
com suas mesmas palavras, seus mesmos espectros:
— Não Fazem Nada,
— Sem Peso,
— só Pedaços…

Longe dali, sentado à beira da soleira de uma casa torta,
um cego vê.
Vê como só os que já perderam tudo conseguem ver.

Num suspiro triste e sem vida,
ele olha para aquilo que não tem forma.

E canta, com voz baixa,
a canção que poucos escutam,
mas que ninguém esquece:

Com dois sacos de carne e sem vontade,
há aqueles que não veem o futuro.
Com dois sacos de carne e sem vontade,
voltam eles sem rumo.

CAPÍTULO SEIS - A FEIRA DOS FINS.


Em Nenhum Lugar — fosse onde fosse, de cima abaixo ou de baixo pra cima — havia figuras como aquelas, homens e mulheres das mais variadas formas, dos mais variados gostos. De Brisa Fresca, o cortador de ventos, a Quatro Zói, o contador dos tempos — indivíduos de habilidades únicas: juntam, separam, cortam, contam, dançam, riem, choram.

E eis que apresento a vocês: CERTEZA PROFUNDA!
A maior feira itinerante de Lugar Nenhum, pertencente ao começo de algo e alegrando o fim de tudo. Ela está aqui. Nela, não se pode deixar de vir. Nela, não se pode deixar de rir. Nela, a vida fala por si. Venham! Diretamente vinda de Nenhum Lugar para shows exclusivos em Lugar Nenhum. Venham, venham, venham…

Em Mal-Fazer, a coisa estava a mil, como dizem por aí. O prefeito e todos haviam levantado quadros e disposto bancas nas quais agora gerenciavam as apostas, que naquele momento já envolviam muito além da cidade — pessoas da beira da estrada, através dos asa-branca, faziam sua fé no fim ou no resgate dos pedaços do governo.

— Como estamos? — perguntava o prefeito.
— Nada ainda — respondia o secretário.

Foi quando, de repente, aparecendo como que um vulto para quem vê de perto, Raposa Ligeira cruzou a casa de Peixeira-Afiada, lá a trezentos metros de onde se encontravam os gerentes da banca.

— Eita, bicho ligeiro — lembrou Peso-Morto.

— Me diga — disse o prefeito.
Raposa então lhe contou que os Voa-Voa, no seu ninho, estavam em festa, com pedaços suculentos de carne sendo lançados ao alto. Disse ela que, na viagem de volta — já tendo percorrido duas léguas — ainda era possível escutar os gritos e ver a comida, que, lançada por eles, já alcançava ali.

Pensativo, o prefeito se vira para seu secretário e diz:

— Só espero que os céus reconheçam quem foi à forra com seus pedaços.

Todos em silêncio. E o fio, novamente, é rompido.

— Não tenho pena — disse o prefeito, que continuou:
— Baixem os quadros, recolham as mesas. Vamos deitar as apostas.

Não Tenho Pena e mais alguns, gerenciando a casa, contam, somam, recontam, separam… quando, de repente:

— Prefeito!
— Sim, homem — responde Coisa Ruim.
— Quebraram a banca.


Em Tomotôco, um roda-roda entrava na cidade. Nele, um homem assobiava uma antiga melodia da região:

> “Não tem tempos difíceis,
O que se tem é o que se pode ter.
Não tem tempos difíceis,
Sina que todo homem deve saber…”

Era Honesto. Ali, tudo vazio, apenas algumas crianças que, curiosas, olhavam dentre as janelas. Todos aqueles que podiam fazer algo partiram para ajudar a comitiva. Honesto, sabendo do ocorrido, ia na direção do cemitério, pois atrás, numa pequena casa, era onde ele residia.

Parado na praça, de frente à igreja, continuava a assobiar a melodia:

> “Não tem tempos difíceis,
O que se tem é o que se pode ter…”

Não… — o som foi interrompido.

Saindo das porteiras do nada, em direção a Tomotôco, eis que vinha uma figura enigmática, sombria. Mas, ao mesmo tempo em que um ar de curiosidade nascia, o medo e a vontade de correr sumiam. Honesto nunca vira algo como aquilo. Lembrava de algum tempo atrás, quando decidira ir até as bandas de Vida-Curta. A coisa não deu certo, não conseguira atravessar a passagem estreita entre Lugar Nenhum e Vida-Curta. Encontrando um caixeiro, começou a prosear com o sujeito.

Disse ele a Honesto — e isso ficou gravado como ferro em brasa na memória:

— Tem lá em Vida-Curta uns dizeres numa mesa. Dizem que foi o próprio Cego que Vê que fez. Eu mesmo sentei nessa mesa. O Seu Zé num gostou, mas tava tudo ocupado e o homem não gosta de ver cliente em pé.

Perguntou Honesto ao caixeiro:

— O que estava escrito?

Responde o homem, já abandonando Honesto e seguindo viagem:

— Certeza Profunda julgará Lugar Nenhum.


E agora, ali, diante de si, aquele homem magro, alto, sombrio. Por detrás dele, um portão dando acesso a um parque. E, na parte de cima do portão, de frente para Honesto, em letras gigantescas estava escrito:

CERTEZA PROFUNDA.

— Como se chama, rapaz? — perguntou o homem sombrio.

Honesto então, respondendo, pergunta quem são eles, e o que fazem por aquelas bandas.

— Somos de tudo um pouco: parque, circo… e hoje somos uma feira de diversões. Viemos alegrar o povo de Tomotôco, em vista da visita de figuras tão ilustres — respondeu o homem.

Honesto então explica o que ocorrera, e que o prefeito, devido às circunstâncias, não cancelou o show.

— O espetáculo, Honesto, não pode ser cancelado. Seja com 12 anos se escondendo por medo, seja com 18 buscando alguma coragem… o fato é: o show tem que continuar, meu rapaz — falou suave a figura que fitava Honesto.

O pobre moço, buscando entender tudo aquilo — ditos do passado, nuances de um futuro, e aquela imagem ali, do presente — só pensava em juntar tudo aquilo em algo que fizesse sentido. E, olhem, dentre quase todos os nossos personagens, Honesto era um dos mais lúcidos.

Ele tenta se despedir da figura, mas ela, num gesto de respeito, o convida a conhecer a feira:

— Venha, entre — convida a figura.

Nesse instante, saindo por detrás da igreja, aparece Pedaço de Lenha.

— Honesto… e o restante? — pergunta ela.

Ela se referia à multidão que partira, e que até aquele momento não se tinha notícia alguma. Honesto simplesmente titubeou a cabeça.

O sol a pino. As nuvens, sem dizer para que vieram, insistem em vir. Vento leve, brisa suave. Nada tão calmo. Nada pode deter essa calmaria. Ao longe, apenas árvores secas anunciando o inverno. Um Voa-Voa, ao longe, espreita uma carcaça. No solo, os passos são lentos. E uma voz, à soleira da porta, berra em alto e bom som — apenas ela é escutada, e apenas ela, existindo em léguas e léguas de distância, repete mais uma vez:

— Quem vem lá?

Ao longe, sobre um barranco, com a mão escorada num cupinzeiro e os pés no solo seco, a figura responde:

— É um copo d’água e uma boa prosa.

Todos em Mal-Fazer não acreditam no que foi berrado. Atônitos, viam suas expectativas correr para baixo como escorre a areia pelos dedos.

— Honesto! Honesto! — espumava Seu Coisa Ruim.

O que ocorrera foi o seguinte: as apostas feitas eram escritas num papel, e uma pergunta encabeçava o bilhete premiado:

> “O Pedaço que conta: sobe ou desce?”

Todos, com exceção de Coisa Ruim, apostaram que descia.

> “Se já está pra cima, só pode descer” — era o lema que entoavam em alto e bom som.

Pensaram como pensa um Voa-Voa: que fim tem o ar, se onde está é só ar?

Seu Coisa Ruim, sabendo de tudo isso, optara pelo contrário. Fizera com que sua aposta fosse a única. E, após as palavras de Raposa Ligeira, certificou-se de que todos ficassem sabendo:

— Os Voa-Voa subiram, subiram e subiram, com pequeno pedaço e pedaço e meio. E, se ninguém mais viu, ninguém mais sentiu — concluiu o prefeito de Mal-Fazer.

Entretanto, na vinda de Raposa Ligeira, Honesto, atravessando seu caminho e sabendo das artimanhas do prefeito, pediu que fizesse para ele aquela aposta. Ela, rápida e imperceptível, apostou sem que ninguém visse ou soubesse.

— E agora? — ia com as mãos à cabeça Não Tenho Pena.

A razão de ser de algo torna esse ser único: ele existe porque existe essa razão, esse logos. E, como tudo está posto porque deve estar, como está — estavam postas também as peças do nosso tabuleiro.

Em Para-Abaixo, o povo já voltava à sua normalidade: cabras, escolas e hospitais. Tudo retornava à boa e velha vida deprimente dos moradores de lá.

Em Mal-Fazer, o clima era de desânimo. Mesmo que fossem desonestos ao ponto de subverter a verdade dos fatos, não eram loucos de negar a um indivíduo os frutos de sua conquista.
— Isso é coisa que regentes fazem. Somos da Nobreza: do ódio, do rancor, do desespero e do medo. Não vemos graça em roubar — mas sim em reinar — dizia Faca-Curta.

Esse, meus amigos, foi o único sujeito que encarou Zóio-Torto olho no olho. Querem saber? Dá tempo de contar.

Lá nas bandas de Ouro Falso, Faca-Curta construía um sonho. Era um sonho de infância. Juntara dinheiro na estrada, e agora queria descansar o lombo. Cem partes de nada. Dinheiro bom.

O problema é que parte desse dinheiro vinha de uma aposta em Mal-Fazer — ganha de maneira honesta. Afinal de contas, são reis. Mas até reis querem descansar. E até reis são feitos.

Zóio-Torto era um sujeito que estava por aquelas bandas, também construindo um sonho. Só que seu sonho era outro: ouro fácil. “Vamos pra cima”, dizia ele. Estava ali para fundar uma cidade.

Para-Cima era seu nome. Com ouro fácil, tudo sobe.

Com os alicerces da cidade em construção, gente das redondezas — da beira da estrada — ia se achegando, um depois do outro. Homens, mulheres, todos querendo subir pra cima com a glória do lugar, que não era nada mais, nada menos, do que o bom e velho ouro fácil.

Quando a igreja e o sino estavam prontos — pois é assim que se dá:
“Primeiro a gente faz o altar e toca o sino, que é pra espantar os que cospem na cara”, dizia ele — o bom Faca-Curta interveio junto aos primeiros moradores, lhes oferecendo uma aposta.

Por mais que dissesse que queria apenas encontrar descanso pro lombo, a natureza sempre fala mais alto. E sem a ciência de Zóio-Torto, uma aposta com todos os moradores se deu.
Resultado: Faca-Curta venceu.

Nesse momento, Zóio-Torto, revoltado, cuspiu na cara de cada morador — e nenhum deles, por medo, ousou encarar seu Zé. Abandonando a empreitada, deixou a construção para os moradores que, sem opção e desiludidos pelo fracasso, mudaram o nome da cidade para Para-Abaixo.

Só que antes de ir, ele se virou para Faca-Curta e, se aproximando, disse:

— Tu tem que me olhar nos olhos.


Faca-Curta, sabendo o que tinha feito, e não se inclinando, olhou profundamente nos olhos de Zóio-Torto.

— Gota por gota, pele por pele, e osso por osso. O homem dá tudo que tem… pelo que ama.

E assim se deu.

Em Tomotôco, os moradores, deslumbrados com a feira que chegara à cidade, saíam de suas covas em direção ao lugar acomodativo.
— Venham! Entrem, não deixem para depois, uma certeza profunda lhes espera — dizia um copo d’água, acompanhado de uma boa prosa.
A figura, com aquele sorriso enigmático, porém aconchegante, despertava em Honesto certo receio. Ele não conseguia esquecer as palavras do caixeiro vindo das bandas de Lugar Nenhum.
Já Pedaço de Lenha, preocupado com seu pai e com os demais moradores, forçava Honesto a sair em busca deles.

E enquanto isso ocorria em Tomotôco, os moradores que saíam no resgate da comitiva passavam rente à ponte do Pega-Ligeiro, continuando a gritar palavras de salvação — com Gole de Pinga e Vou-na-Frente à frente da marcha.

Em Lugar Nenhum, o clima era tenso — não por conta do ocorrido com os pedaços do governo, mas por causa de um julgamento que se desenrolava no tribunal da capital.
Uma das famílias mais importantes, os Porta-Retratos — dizem os mais antigos que são descendentes diretos do Primo-Irmão-Sobrinho do Cego-que-Vê — enfrentava agora um escândalo.
A filha mais velha do monte, a senhorita Clique Certeiro, tivera suas joias roubadas por um bando de arruaceiros que passava pelas redondezas.
Seis homens, munidos de muita audácia, invadiram a residência, amarraram-na junto com alguns empregados e fugiram levando os pertences roubados.

CAPITULO SETE - O ESPELHO DE CERTEZA PROFUNDA. 

Anca-de-Ouro era o seu nome. Sua vida sempre fora à beira da estrada, nascera à beira, crescera à beira. Um belo dia — como tudo na vida — a luz reluziu para ela.

Mas antes de contar que luz clareou seu caminho, vale dizer por que tinha esse nome:
— Essa menina é bela.
— Que formosura.
— Tudo se clareia quando ela passa.
— Que ancas!

Não preciso dizer mais nada ao ser que, conforme Anca-de-Ouro foi crescendo, a beira da estrada foi acompanhando seu ritmo — uma verdadeira desordem de casas, sem ordem, sem regras, sem nenhum traço de civilização.

Ali, não existia cidade nenhuma. A mais próxima ficava um pouco longe, lá no começo da história: chamavam ela de Lugar Nenhum. Pensando de maneira mais centrada, os moradores da beira estavam entregues à própria sorte. Não havia sinal de que alguém aparecesse e resolvesse juntar aquele bando de almas errantes — até mesmo porque sabemos que, para tal compromisso, seria necessário uma palavra que poucos conheciam: Amor.

E eis por que decidi contar sobre Anca. Sua formosura era imensa, e não podendo ser lançada por qualquer, era necessário homem forte, destemido, que encare o Sol e proseie com a Lua.

Nessa narrativa, a outra metade deve dar as caras — e deu.

Certo dia, chega ali um circo. Coisa mais linda. Ninguém nunca tinha visto, nem sabia que existia.
O show: muitos personagens, homens que pulavam, cantavam, contavam histórias, faziam o povo rir. Entre um quadro e outro, entre pulos, mágicas e gargalhadas, me entra no picadeiro um homem — magro, alto, de uma presença enigmática e um sorriso suave.

Ele carregava um espelho.

— Quem vem aqui se ver nesse espelho? O reflexo de alguma verdade. A imagem de uma certeza profunda?

Todos fixados no palco, entre sonhos e pesadelos, gritam como num coro:
— Anca! Anca! Anca!

Aos berros daqueles, Anca se dirigiu ao picadeiro. De frente ao espelho e ao lado da figura, Anca começa a fitar o reflexo.

— Só me vejo, seu moço — disse ela a uma boa prosa.

Se demorando um pouco mais, ela começou a ver formas se desenhando: primeiro um chão seco, rachado, sem vida.
Olhou com mais afinco, viu uma raposa. A bicha corria como se o espaço não existisse.
Foi quando viu então um cego, que com uma semente na mão plantava no solo seco.
A semente germinou, mas a árvore nasceu torta.
Então o velho, cantando uma canção que Anca não conseguira interpretar, plantou mais duas sementes — e essas germinaram unidas, dando uma pimenteira.
E dela, mais duas nasceram.


Rapidamente, a figura cobriu o espelho e agradeceu à moça.
— O show tem que continuar — disse um copo d’água.

Meses depois, apareceu por aquelas bandas um cabra alto, magro, vestindo um chapéu de couro longo e, na bainha da cintura, a morte.
Seu nome: Faca-Longa.

Como tudo se cruza, e é no cruzamento que obtemos alguma resposta, Faca-Longa se apaixonou por Anca, e tomando-a como sua mulher, lhe fez uma promessa:
— Tu não vai mais viver à beira da estrada.

Faca-Longa funda os alicerces de uma cidade, e, para deleite de Anca, a batizou de Bem-Fazer.

É, meus amigos, mas até o maior dos amores conhece o infortúnio.

Anca, prenha do seu primeiro filho, Corte-Longo, alguns dias antes do berrento conhecer os piás dos pássaros, é acometida de uma doença grave. Ninguém sabia o que se dava com a mulher.
Chama uns daqui, outros dali, e nada.
Faca-Longa correu até os confins do que se pode imaginar — e nada.

A miserável mulher morreu.
Entretanto, conseguiram salvar a criança.


Numa torrente de amor, basta um pingo para tudo virar desgraça.

Bem-Fazer ia bem nos primeiros anos. Pessoas já acostumadas a viver como gente civilizada tinham em Faca-Longa e Corte-Longo seus tutores. Nada acontecia sem que antes não tivesse o aval dos dois.

Foi quando, numa bela tarde — todos à soleira e despreocupados — veem chegar à cidade dois sujeitos:
Coisa Ruim e Não Tenho Pena.

E eles, como num gesto sem gesto, decidem afrontar Faca-Longa e Corte-Longo.
O prêmio? Um nome.

Pois é... um nome. Como se nome fosse tudo, quando na verdade não é nada.
Nome é uma coisa que damos a outra coisa só na esperança de lembrar depois.

Lembram do Caixeiro Viajante? Pois é... essa história vou ter prazer de contar.
Vejam vocês:

Ele nunca se atreveu a ir pras bandas do Cego que Vê, mas avisou a Zoio Torto, alertou Honesto, viu Anca fitar o espelho, cruzou a ponte do Pega-Ligeiro, alimentou a Raposa, ajudou o buxudo do Governador — e aqui ninguém se lembrou do pobre coitado.

Há no tempo uma incógnita: seu começo não pode ser o seu fim.
Como há na vida uma dúvida — e essa aparece de tempos em tempos, muitas vezes em formas que você nem imagina.

Um caixeiro, em última instância, é aquele sujeito que sai mundo afora vendendo novidades em caixas. Daí deriva o dizer:
"Caixeiro igual a Caixa."

— Esse cabra tem história pra contar. Ele anda do começo ao fim. Que disposição — disse Morte Longa, certa vez, lá em Vida-Curta.

Com a morte de Anca-de-Ouro e a perda da aposta para os dois tinhosos, a cidade estava agora entregue à própria sorte — que de sorte parecia não ter nenhuma.
Bem-Fazer ruiria sem alicerce nenhum.

Foi quando um Roda-Roda, entrando na cidade com aquele sujeito abarrotado de caixas, deu de cara com uma algazarra sem tamanho.

Coisa Ruim, esquivando-se dos golpes que Faca-Longa e Corte-Longo davam, gritava para todos que quisessem ouvir:

— Nenhum lugar começa dobrando a própria sorte. Cumpra o prometido!

E os céus, escuros com nuvens densas, davam o ar do teatro.

E, em meio à luta que se dava, o Caixeiro, puxando uma caixa, retira dela — retira dela um livro, abre... e fecha contra o ar.

Silêncio.
A luta para por um minuto.
Coisa Ruim e Não Tenho Pena já estavam encurralados, com a peixeira na garganta.

O som que fizera o livro se fechando era semelhante a mil trovões no silêncio do deserto.

— Como vão? Me chamo Caixa-Pequena. Venho de onde a história começa, e estou aqui para registrar um Nome.

O silêncio foi interrompido.

Daquele dia em diante, a cidade passou a ser chamada Mal-Fazer, pois o bem que se esperava não trouxe mais do que infortúnio e sofrimento.
Faca-Longa e seu filho Corte-Longo pegaram suas coisas e decidiram correr sós mundo afora.
Coisa Ruim e Não Tenho Pena passaram a tratar dos causos da cidade.


Em Tomotôco, todos encantados com a presença da feira já abandonavam suas casas — idosos, crianças e mulheres que ali ficaram agora iam na direção da feira.
Honesto, ainda meio atordoado com tudo aquilo, tentava acalmar Pedaço de Lenha.

Nota-se que aquilo que é visto sozinho pode, às vezes, esconder o resto. Uma realidade, às vezes, ingrata.
Como falei, em Tomotôco as coisas andavam em conluio com a feira. Parecia que ali nunca houvera um momento em que um emissário veio e avisou de um sequestro, nem que os moradores saíram em debandada carregando foices e tochas em direção à toca dos Voa-Voa, nem que existisse um senhor Jubiscreudo ou qualquer Gole de Pinga. Tudo ali, agora, se resumia na feira.
Ruas agora davam seu ar da graça às crianças, mulheres, idosos, todos aqueles que sobraram da partida de logo cedo, envoltos naquele ar mágico que Certeza Profunda carregava.

Honesto, ainda digerindo toda aquela cena, parecia surdo às palavras de Pedaço de Lenha, que apontava para a entrada da cidade. E ele, sem entender nada, tem seu braço agarrado de supetão, e como uma descarga elétrica que percorre todo o corpo, ele vai e depois volta:
— Achei você! — disse, de frente para ele, Não Tenho Pena.

Ao lado, o prefeito de Mal-Fazer, Coisa Ruim, e todos os seus saltimbancos. Honesto empalidece.
— Vim lhe pagar, Honesto — disse o prefeito.

Como dizem por aí, a desgraça vem a galope. Nesse exato momento, temos em Tomotôco: Certeza Profunda, Honesto, tudo que não presta de Mal-Fazer — como se algo prestasse — e, como se não pudesse ficar pior, me adentra a cidade uma comitiva de Para-Abaixo, que, mudando de ideia para não ficarem mal vistos na capital como mãos de vaca, e acreditando que havia ali um desfile para comemorar o resgate dos pedaços do governo, decidiu ir até Tomotôco para comemorar — sabe-se lá o quê.

Existem na vida caminhos, estradas diversas, mas que, por certas leis, sempre resultam no mesmo fim. Da feira, como que fantasmas de um passado recente, me saem dois personagens: um alto e magro, com as mãos sujas; e outro, baixo, mas de espírito tenebroso — Faca-Longa e Corte-Longo.
Todos de Mal-Fazer estremecem. Já conheciam, de outros tempos, aquelas figuras. O prefeito Pena-Pena estremece, pois sabia do que se tratava. Já que, sendo um dos que levara cusparada de Zóio-Torto por causa de Faca-Curta, sabia que aquele nome era uma sátira àquele que agora se apresentava à sua frente — o verdadeiro Faca-Longa, juntamente com seu filho.


CAPÍTULO OITO - O INÍCIO DO JULGAMENTO. 

Meus amigos, vou lhes dizer algo que acredito que já saibam: tudo tem seu contrário. Para o preto, o branco; para o dia, a noite; para o alto, o baixo; e para a luz, a escuridão. Já lhes falei do começo, agora falarei do fim.

E o fim... o fim é longo, contado a mim por um caixeiro.

Ele começa assim: havia uma terra que não era terra. Como era e não era terra, tinha e não tinha nome. Quem a criou decidiu deixá-la de lado. Então, vou chamá-la de Lugar Nenhum — dado um nome, fica mais fácil continuar.

Só que, nesse ser e não ser, havia uma coisa. Algo que domava esses estados, que bailava de um lado para o outro sem problema algum, sem culpa nenhuma. Seu nome: Dúvida Profunda. Essa senhora, de cabelos longos e olhar penetrante, andava sem rumo. Ora parava na escuridão, ora andava sobre ela. E caminhava.

Um certo dia, de tanto dançar entre um lado e outro, conheceu um belo rapaz. Ele não sabia por que estava ali — ele simplesmente estava. Seu nome: Querer Duvidoso. O encontro foi como todo aquele que o destino resolve tocar — não se percebe, até que tudo faz sentido.

Unidos no caminho, tiveram dois filhos. O primeiro nasceu cego, e o segundo via tudo. Ao primeiro deram o nome de Copo d’Água e Boa Prosa, e ao segundo, Cego que Vê. Esses dois foram os primeiros movimentos no tempo, em um tempo cujo o tempo não possuía tempo.

O primeiro saiu sem rumo e montou um circo, que às vezes parecia um parque, e às vezes chegava como feira — todos querem comprar; depois de ter, não querem usar; e usando, não ficam felizes.
O segundo, mais recatado, vendo o que não queria ver, decidiu apenas enxergar.

Todos estavam ali: o Passado, o Presente — e, faltando, o Futuro. Este resolveu chegar de supetão.

Entra em Tomotôco, no meio daquele cenário atípico: os malgrados de mal fazer, os desiludidos de Para-Abaixo, Honesto, Faca-Longa e Corte-Longo, a figura enigmática de Boa Prosa, e um grande número de homens fardados. Eram cem almas.


À sua frente, um sujeito em trajes militares. Junto com eles, seis homens maltrapilhos, surrados e acorrentados. Era o poderio militar de Lugar Nenhum.

— Gole de pinga! — grita um dos oficiais da força oficial.
— Queremos ter com o prefeito! — continua, sem cerimônia.

Num relance, como que vendo uma saída para uma entrada que não entrava, Honesto salta à frente.
— O prefeito não se encontra. Estão mundo afora — disse, com firmeza.

— Mundo afora ou mundo adentro, Lugar Nenhum é o que importa.
Esses homens — seis ao todo — dizem que aqui, em Tomotôco, é onde residem — respondeu o oficial.

Honesto, fitando as seis almas ali, não reconhecia nenhum sequer. Virando-se então para o homem de bigode, insiste:
— Posso falar pelo prefeito. Não conheço nenhum destes.

O General para por um instante. Pensa. Reflete. E então responde:
— Eles dizem ser Tomotôco seu lar. Mas palavra dita não é nome algum.
Aqui serão executados. E aqui será deitado o seu descanso.


Em Tomotôco, há seis caminhos. Seis estradas:
— A primeira leva a Mal-Fazer;
— A segunda, a Para-Abaixo;
— A terceira dá na Capital;
— A quarta leva à Beira da Estrada;
— A quinta ao Nada;
— E a última ao Tudo.

— Responda! — enérgico e forte, brada um dos oficiais ao grupo de maltrapilhos e esfarrapados homens.

O primeiro, não tendo como ser chamado por nome, então responde:

— Sou o primeiro caminho. Levo até a terra da ganância. Sou hipócrita, não nego. Carrego raiva e ódio, não nego. Mas nunca roubei dos porta-retratos — fiz com eles uma aposta.

Disse o homem, engasgando em palavras fracas, como quem mastiga lembranças pesadas.

O oficial se dirige ao segundo:

— Responda!

O segundo homem então ergue o rosto e diz:

— Sou o segundo caminho. Clique-Certo me viu triste, desiludido, e sem saber como me consolar, me ofereceu um anel de ouro. Não peguei. Já sei distinguir o que é ouro fácil.

O General, então, avança com desprezo. Cuspindo na fronte do pobre coitado, brada:

— Responda!

O terceiro fala:

— Sou o terceiro dos seis. Já conhecia a Capital, seus modos e jeitos. Nunca peguei nada, pois de vocês... nada há que valha pegar.

Os outros três, como que em coro, gritam com uma fúria que não era nem defesa, nem acusação:

— Do meio ao fim, do meio ao começo — o que temos não pode ser roubado. Então, por que furtaríamos?


Numa nota tão simples, rápida como um raio, e fácil como a mão que vai na direção daquilo que ela quer pegar, continua o caixeiro-viajante.

A ordem foi dada.
Os seis homens foram, ali, na frente de todos, enforcados.

Fim…? Não! Nem um pouco.

Nesse momento, as portas da cidade ruíram e, como tudo que acaba para dar início a outra coisa que se inicia, Tomotôco deixou de ser a cidade onde tudo era simples, rápido e fácil, tornando-se um emaranhado de histórias que, dali em diante, se cruzariam não só no tempo, mas também no espaço.

Todos foram ali trancados — homens e mulheres das cidades e da capital, ali presos. Amaldiçoados? Não sei dizer bem.
O que sei é que, naquele instante em que todos buscavam entender o que havia acontecido, o Governador, aos berros, gritava por Pequeno Pedaço e Pedaço e Meio.

Quando, contrastando com o sofrimento, o sujeito em farda militar berra mais uma vez:

— Se recomponha, seu Grande Pedaço. Sua filha e sua mulher estão bem. Nesse momento, esses pedaços estão se fartando com vários outros pedaços na capital.

O Governador, atônito, ainda digerindo os pedaços, se ajoelha.

Continua o sujeito:

— Quando o relatório chegou, falando desses pedaços que, atacados por não fazerem nada e na iminência de virarem mais pedaços, e se isso não bastasse, quase sendo arrastados por um bando de sem-peso, pedi que separassem centenas de outros pedaços mais interessantes aos indivíduos.
Quando mostramos, eles largaram aqueles pedaços por pedaços mais suculentos.

Um dos pedaços que acompanhavam Grande Pedaço responde:

— Nós oferecemos a eles milho.

Continua o comandante militar:

— Gota por gota, osso por osso, carne por carne — você troca o que odeia pelo que ama. Nunca o contrário.

Honesto, se virando para a figura ali presente — aquele que comandava aquilo que ora era chamado de feira, ora de circo, ora de parque — diz:

— Posso entrar, senhor Boa Prosa?

Ele, acenando com a cabeça, sim, figurava ali, onde quase todos o encaravam se perguntando quem era aquele sujeito.

— Espere! Viemos aqui te pagar, não vai a lugar nenhum…

Senhoras e senhores — começa Coisa-Ruim após levantar a voz, e diga-se levantar, o sujeito parecia ter a voz levada pelo vento: alcançava a tudo e a todos.

— O que temos aqui… podemos dizer que ouviremos vários casos. Imaginando que os pedaços já eram pedaços, é esse homem, Honesto, que ganhará o bilhete premiado, juntamente comigo.
Mas, tendo ele sido falado primeiro, é ele o vencedor. Regras da casa.

O prêmio? Muitas almas.
Que os céus não me julguem, mas acreditando que venceria, apostei a dívida que os senhores têm comigo.

Gole de Pinga — aquilo que te alimenta: a embriaguez, a preguiça, a hipocrisia… eu apostei.

Pena-Pena — sua dívida com Mal-Fazer era a melancolia, a tristeza, a amargura, e muitas outras coisas que você sabe… sabe. Eu apostei.

Comandante — todas as almas que me deve para manter aquele chiqueiro que só não é pior porque Morte Longa acende uns incensos e o vento leva… Quanto me pediu da última vez? Cinco mil almas.
Tudo de apostas que vocês não pagaram.
E para quê? Para manter sua arrogância e sua justiça falsa? Homens e mulheres vazios, que só se importam com aquilo que não vale se importar.

Pois é… eu apostei.

Nesse momento, o comandante dá um passo à frente.

— Não houve aposta.

Coisa-Ruim prossegue:

— Meu secretário está aqui, com todas as apostas. O nome de cada um de vocês que apostaram nesse lance… ou não.
Em algum momento, apostaram.
Não se esqueçam disso.

Cortando o som do vento, Faca-Longa rompe o silêncio:

— Qual era o bilhete?
O pedaço sobe ou desce?

Viu ele num, que um sujeito lhe põe na mão.

— E como todos podem ver... desceram.
Estão agora na capital, se empanturrando com vários outros pedaços.
— conclui o prefeito.

O caixeiro então, entre um gole e outro, me diz:

— Na vida, enquanto as portas estão escancaradas, não as percebemos.
Não damos a elas a devida importância.
As tratamos como partes de uma jornada que não entendemos muito bem — só passamos por elas, aceitamos, esquecemos.
Quando, na verdade, é ela — a porta — a coisa que dá todo sentido ao que não tem sentido.
E só nos damos conta… quando se fecham.