Entre a Tradição e o Abismo
Muitos, por inocência, má-fé ou ignorância, distorcem termos bíblicos de grande peso espiritual. Um exemplo comum, amplamente difundido nas redes sociais, é a frase:
“Em volta da tua casa, estarão sete anjos. Mal algum te ocorrerá.”
Essa expressão, embora aparentemente piedosa, perde sua força e verdade por ignorar o sentido profundo das Escrituras. Os termos utilizados — “casa”, “anjos”, “mal algum” — foram esvaziados de seu significado original. Não corroboram a verdade da interpretação, pois estão desprovidos da linguagem sagrada que os fundamenta. Reduzem-se a imagens sentimentais, quando na verdade são expressões densas da realidade espiritual.
Na transição da Idade Média para a Modernidade, houve uma mudança radical no eixo do pensamento: da fé para a razão, de Deus para o homem. O Iluminismo e, mais tarde, a dialética materialista deslocaram o centro da interpretação — da alma para o objeto, da revelação para a lógica, da interioridade para o mundo exterior. O homem, então, passou a transpor as coisas da realidade para a linguagem, e da linguagem para a realidade, de maneira puramente mecânica. Com isso, perdeu-se a capacidade de interpretar o próprio mundo interior — justamente aquilo que mais importa.
Essa mudança não é apenas um desdobramento histórico. Trata-se, em essência, de um projeto de afastamento do homem em relação a Deus. Sem uma forma correta de se expressar e de entender o que o cerca, o homem se torna refém. Um dos maiores males que afligem o homem moderno começa justamente aí: na deficiência de representar corretamente aquilo que vê e sente. E se ele não consegue dar nome ao que sente, como poderá adorar aquilo que sequer consegue interpretar?
A única alternativa é o retorno à tradição. É preciso mergulhar no depósito da fé, onde os termos conservam suas verdadeiras nuances, e recuperar sua transcrição autêntica. Caso contrário, muito em breve estará comendo pedras, acreditando serem pães.
Ampliando ainda mais a visão, podemos afirmar que a modernidade não é fruto de uma abordagem verdadeira do real, mas de um recorte — uma operação de corte e isolamento que a ciência, por vezes, agrava. Assim, ao pensar nos elementos que nos rodeiam, já não conseguimos organizá-los na verdade. A corrente materialista e histórica imposta fez com que o homem passasse a enxergar tudo sob o prisma da matéria. Mas isso não é verdade.
O homem, antes de ser um aglomerado de moléculas, é um ente pessoal, uma pessoa. Ele traz dentro de si medo, anseio, virtude, defeitos — elementos invisíveis que não podem ser medidos nem comparados. São valores ocultos, perceptíveis apenas pela interioridade. A vida, portanto, não é algo mensurável. Ela é sagrada, única. A alma, invólucro da perfeição, não pode ser reduzida a processos químicos. Isso é um erro grave — e recorrente.
Tomemos o exemplo da casa, tão recorrente na linguagem bíblica. Para o homem moderno, uma casa se resume a quatro paredes de concreto. Sua disposição no ambiente dá a ele a sensação de refúgio, descanso e proteção. Mas todo aquele que pensa com profundidade sabe: não há lugar mais seguro do que a fortaleza dos nossos pensamentos fundados em Deus.
Como diz o Salmo 18:2:
"O Senhor é a minha rocha, a minha fortaleza e o meu libertador; o meu Deus é a minha rocha, em quem me refugio, o meu escudo e a força da minha salvação, o meu alto refúgio."
Quanto aos anjos, seres celestiais tão presentes nas Escrituras, o pensamento moderno os reduziu a figuras decorativas, antropomórficas — apenas imagens humanas com asas. A mente contemporânea, fragilizada, só consegue conceber o invisível à imagem do visível.
Mas a tradição escolástica, sólida e precisa, ensina que os anjos são “entes espirituais puros” — sem corpo, sem matéria, mas dotados de inteligência e vontade superiores. Não são mitos, nem alegorias poéticas. São ministros do Altíssimo, participantes da ordem eterna.
Os antigos já percebiam essas realidades. Na mitologia grega, egípcia, nórdica e em tantas outras, os deuses representavam aspectos da natureza — forças que regiam a criação. Havia uma hierarquia: Deus, homem, natureza.
A modernidade inverteu essa ordem. Fez do homem o centro, e da natureza, um mero objeto de uso. Os deuses foram rebaixados a símbolos vazios. O transcendental foi domesticado. O invisível, descartado.
E assim, aos poucos, perdemos a linguagem do sagrado.
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E o Senhor disse:
A casa do justo é sua alma, onde Eu habito.
Sobre ela colocarei Minha mão, e Meus anjos estarão ao redor dela.
O mal passará por fora, mas não tocará o que é Meu.
Firme será o que confia em Mim, mesmo quando os ventos soprarem fortes.
Pois quem guarda Minha palavra, mesmo em queda, será levantado.
E sua alma florescerá, como jardim regado pelo Meu Espírito.
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Por fim, falemos acerca do mal.
Existe uma literatura vasta e densa sobre o tema, especialmente no seio da tradição cristã. Santo Tomás de Aquino, em suas Questões Disputadas sobre o Mal, oferece uma das análises mais profundas e sistemáticas a esse respeito. Para ele, o mal não é algo que possua existência própria ou substância, mas sim uma privação — a ausência de um bem que deveria estar presente. Ele distingue, com precisão, três formas principais pelas quais o mal se manifesta:
1. O mal como ausência (privatio boni) — o tipo mais fundamental de mal, que não é uma entidade, mas a falta de perfeição em algo que, por sua natureza, deveria possuir tal perfeição.
2. O mal moral (pecado) — reside na vontade livre que se desvia do fim último, que é Deus. Aqui o mal está no ato voluntário, contrário à razão e à lei eterna.
3. O mal angélico ou demoníaco — refere-se ao desvio das criaturas espirituais, os anjos caídos, que por um ato irrevogável de vontade se afastaram de Deus. Eles são seres reais, pessoais, e se opõem à ordem divina por escolha própria.
Dessa maneira, o mal não é um princípio rival de Deus, como sugerem algumas cosmologias dualistas, mas uma deformação da bondade criada. Ele depende do bem, parasita-se do bem, e só pode existir onde há uma ordem a ser corrompida.
O homem moderno, ao recusar a metafísica e reduzir tudo à matéria, perdeu a capacidade de compreender essa complexidade. Para ele, o mal é apenas um acidente social, psicológico, ou biológico — e não uma realidade espiritual, um drama da liberdade.
Sem essa compreensão, ele se torna ainda mais vulnerável, pois não reconhece o inimigo que o cerca. Pior: não reconhece o inimigo dentro de si.
Por isso, urge retornar à luz da tradição, onde os termos têm peso, os conceitos têm raiz, e o mal é nomeado com exatidão — para que possa ser combatido com as armas certas: a oração, a virtude, o arrependimento e a graça.
Portanto, agir na busca da santificação reside antes no confronto com o real do que na tentativa de descrevê-lo por meio de meros jogos de linguagem.
Um comentário:
Bonito....
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